jazz band na sala da gente, uma ode ao artista, por Ivam Cabral

jazz_band_capaJazz band na sala da gente, romance de estreia de Alexandre Staut, relançado, agora, dez anos depois pela Folhas de Relva Edições, é um livro que você deveria ler.

O enredo se passa em uma pequena cidade do interior paulista, Espírito Santo do Pinhal, nos anos 1940, precisamente no terrível 1945. A história gira em torno de uma família, pai judeu alemão e mãe italiana, donos da única funerária da cidade. O pai, Eduardinho Staut, flautista da Pinhal Jazz Band, vive às turras com sua mulher, a conservadora Ondina, que tem repulsa pelo trabalho artístico do marido. Como pano de fundo, a época de ouro da música, suas cantoras, o rádio e a perseguição aos judeus no fim da Segunda Guerra Mundial.

A narrativa da obra é construída através do olhar do filho do casal, também chamado Eduardinho, que não entende o ódio da mãe pela música do pai; nem porque sua casa é procurada pelo pessoal da cidade aos prantos e sempre em desespero.

Bonito como o autor trabalha as diferenças de personalidades entre o casal Staut. De um lado, a delicadeza e refinamento de Eduardinho; de outro, o temperamento da esposa, extremamente religiosa e questionadora da arte do marido que, na sua opinião, é para os desocupados.

Ponto alto do livro, os concertos secretos que Eduardinho faz para os filhos quando Ondina não está em casa. Enquanto a mulher se preocupa o tempo todo em procurar ajuda para mudar o nome da família — afinal, em tempos de perseguição aos judeus, ter um sobrenome semita não é lá visto com muita tranquilidade — o patriarca, que tem orgulho de seu sobrenome, “procurava mesmo era encher a casa de música”. Nesses dias, “o tempo parava quando o som da flauta invadia a casa”.

Eduardinho, que não cuida dos mortos, mas do “último suspiro dos vivos”, é uma personagem apaixonante. E Alexandre Staut constrói um livro que, além de ser uma ode ao artista, discute temas delicados como o preconceito, por exemplo. E é exatamente aí que Jazz band na sala da gente atinge seu cimo. A relação de Ondina com Buduçu, jovem negra que vem trabalhar com a família, faz parte desses bons momentos do livro. É de uma aspereza que primeiro impressiona, depois emociona.

O autor faz ratificação, ainda de que maneira discreta e subliminar, ao papel dos judeus no cenário musical mundial. Benny Goodman, Gene Krupa e Artie Shaw, só para citar três foram nomes importantes do jazz, considerada por muitos uma música de tradição puramente negra.

Alexandre Staut é autor de diversos livros, entre eles, Paris-Brest e O incêndio, além de ser o idealizador e o editor da revista literária São Paulo Review e da Folhas de Relva Edições.

Ivam Cabral é ator, diretor, dramaturgo e cineasta. É fundador da Cia. de Teatro Os Satyros, ao lado de Rodolfo Garcia Vázquez. É Doutor em Pedagogia do Teatro e Mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP. Já recebeu inúmeros prêmios e escreveu dezenas de textos traduzidos para o espanhol e o alemão. Atualmente, acumula o cargo de diretor executivo da SP Escola de Teatro — Centro de Formação das Artes do Palco.

resenha de ‘Inquietações em tempos de insônia’, de Leonardo Tonus

Por Jorge Antônio Ribeiro

capa_inquietacoesNo bosque das metáforas, um poeta precisa encontrar as trilhas que levam à poesia com seus encantos e suas associações harmoniosas. Ele necessita da plasticidade e do frescor da linguagem. Tem a árdua tarefa de pôr palavras na boca das coisas que não falam. Como afirma Octavio Paz, em seu livro O arco e a lira, “A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero”.

Neste livro, Inquietações em tempos de insônia, de Leonardo Tonus, publicado pela Editora Nós, o poeta encontrou as sinuosas trilhas na mata densa das imagens e oferece-as ao leitor como quem entrega comoção e enternecimento.

Apresentado em três partes distintas, na primeira, predomina o lirismo e o poeta inicia a viagem dizendo: “na superfície do infinito/ não quero respostas aos meus sonhos/ nem ao arrepio de teus cílios”. Trata-se de uma espécie de epígrafe em que se apresenta o que o poeta não deseja. É como uma advertência, indicando de saída a relação do poeta com o corpo do ser amado e com o seu próprio corpo. E a poesia flui no tempo, apresentada sem rodeios, sem adjetivação desnecessária, mas realçada com um modo metafórico que enriquece os versos e, por assim dizer, filtra a realidade e apresenta como resultado um modo novo de expressar o mundo. Invenção. Reinvenção: “não fui responsável pelas ondas/ ao recolher o sal de tuas coxas”. “Te amar para te perder/ a cada instante meu amor:/ ouriço a lamber seus próprios espinhos”. E segue: “sou um acúmulo de verbos,/ uma vida (des)finitiva/ sem preposições”. Nestes poucos versos, temos a imensidão de ondas, sal, espinhos, verbos e preposições, tudo ordenado com aguda percepção e muita sensibilidade poética.

O título desta primeira parte, “do tempo, teu corpo”, anuncia o conteúdo que se seguirá e a poesia de Leonardo Tonus passa, então, por lágrimas, paisagens e falésias do corpo, despedidas, abismos de bocas e olhos, cicatrizes, silêncios, errâncias e areias.

A segunda parte, “réquiem para folhas”, apresenta poemas em que a morte circunda os versos como se o poeta fizesse uma espécie de prece para o que já não há. Logo no primeiro poema desta parte, ele diz: “O lugar possível deixou de existir/ tornou-se nada,/ um tristemente nada”. Assim se constrói aqui o “diálogo com a ausência” de que fala Octavio Paz.

E nos poemas seguintes o poeta utiliza a metalinguagem para continuar seu discurso poético. As palavras falam das palavras para erigir a poesia: “falho doravante a palavra/ na certeza de nela nunca me construir”. E mais adiante: “a nada hão de retornar, as palavras/ que já não dizem o que dizem os verbos,/ que já não sabemos o que dizem”. Ele busca considerar e expressar com minúcias a natureza interior de cada um dos poemas. Procura e encontra a poesia. E a entrega ao leitor. Seu universo de palavras apresenta vida e morte num todo indissociável. Um mundo de imagens em que se sobressai a capacidade de expressar esteticamente uma visão particular da vida, mostrando o impacto da poesia nele e em nós, leitores, o murro que a palavra nos acerta, a língua que não há e a morte da palavra: “a poesia de corpos afogados no oceano de luz/ a que ela nos reduz”, “procuro no abismo do avesso/ o espaço soco da palavra”. E prossegue: “foi só depois de rasgar meu corpo ao meio/ que penetrei o tempo das palavras/ o tempo de perdê-las uma a uma/ nas manhãs de uma língua/ sequer sonhada”, “repito: a palavra hoje morreu,/ anônima,/ às seis horas da manhã”.

A terceira e última parte, com o título “(des)reencontros”, é como se fosse o prato principal do banquete que o poeta professor, Leonardo Tonus, oferece ao leitor que, a esta altura, já se acostumou com a elegância e pungência de seus versos. Metáforas, antíteses e personificações são o tempero ideal no sabor dos poemas que apresentam gritos, morte, inquietações, ausências e distâncias: “Quem me dera hoje sentir/ o hálito de uma leoa/ a lamber as faces do meu grito… e gritar ao mundo/ o meu silêncio infindo”. No arranjo das palavras, o poeta constrói seu ritmo que envolve e avança na direção de um mundo feito de lembranças, medos, silêncios e desemboca no desreencontro com a originalidade e o arrojo de sua linguagem: “bordo o tempo presente de meus mortos…” E os mortos que o poeta cita são Marielle Franco, Ahemed Osman, Sergio C. Gonzáles e outros, mostrando a carranca bruta da realidade atual: “bordo 33.293 mortos no Mediterrâneo/ no poemanto de Aleixo,/ no meu poemorto.” Realmente, o poeta borda suas palavras e seus versos na lousa do silêncio: “sobre a lápide quadrada desativada/ surge a angústia/ do silêncio”. Mas ele grita poesia contra a mudez e contra o medo: “que tenhamos medo/ é o que querem!”, “o medo que assassinou Marielle/ que torturou Herzog/ o medo que enforcou frei Tito/ que apagou o livre traço/ de Wollinski…”, “de dar as horas os relógios cessaram,/ de luzir as palavras/ que pelas paredes da casa/ choram o silêncio de meus desertos”, “quando a história reescreverem,/ não se esqueçam de contar o gosto/ das cinzas trituradas/ entre os dentes”.

Inquietações e insônias poetizadas com inteligência e emoção constroem o mundo do poeta, um universo alicerçado em compaixão, simpatia, piedade, empatia e tortura. Este é um livro que pede releituras e reflexões para que torne possível o mergulho profundo nas representações, ideias e sentimentos do autor. Reler e reler para que seja possível enveredar-se e embebedar-se no mundo que ele cria e recria. Para que se aceite de mãos estendidas o convite de poesia que ele faz em cada um dos poemas.

Jorge Antônio Ribeiro, paulista de Botucatu, professor de Português e revisor de textos, sempre gostou de escrever poemas e de contar histórias. Em 2011 publicou o livro de contos Esses dias pedem silêncio, pela Editora Edith, e já participou de diversas antologias. Escreve para desafiar o enigma das palavras.

Você pode ler três poemas do livro no [link] e a entrevista com o autor Leonardo Tonus no [link].

resenha do romance ‘Essa gente’, de Chico Buarque

Por Leonardo Valente

capa_buarqueMuitos gigantes vivem em um Chico Buarque, mas dois que sempre se destacaram de forma especial, ainda que em caminhos e estilos distintos, o compositor e o escritor, em Essa gente (Companhia da Letras, 2019), o mais recente e em minha opinião seu melhor romance, são convertidos em um só. Trata-se da obra do romancista que mais se aproxima do compositor. Aproximação na temática, onde a crítica sofisticada e ao mesmo tempo incisiva ao fascismo e ao elitismo colonialista de nossos dias remete ao Chico que se levantou contra a Ditadura Militar; aproximação no estilo narrativo, não raro sonoro e melodioso como suas músicas. Essa gente é um romance ao mesmo tempo simples e multifacetado, e sua história principal pode ser comparada a um rio carioca e caudaloso que desemboca no oceano profundo da formação social brasileira, e nas contradições, superficialidades e hipocrisias sui generis de suas elites.

Os pequenos capítulos seguem tendência da prosa literária contemporânea, especialmente a urbana, e a construção deles como um diário, o que permite com certa facilidade idas e vindas na história, concede dinâmica e facilidade de leitura a um texto denso, musical e ao mesmo tempo áspero, de vocabulário notoriamente bem calculado e repleto de camadas interpretativas. O resultado é um livro que pode agradar a leitores com diferentes níveis de exigência e de expectativa (alguma semelhança com as músicas do outro Chico gigante?), assim como provocar diferentes reações.

Duarte é o escritor decadente protagonista, sem dinheiro, mas sem perder a pose, destruído afetivamente, e que poderia se encaixar tanto em um livro de literatura policial quanto em um estudo de caso antropológico sobre nossa Casa Grande contemporânea. O Leblon é bairro nobre carioca protagonista e igualmente decadente, que no retrato de Chico consegue resumir em si todas as mazelas e tristezas de uma elite responsável pelos erros do passado e pelas mazelas distópicas do agora brasileiro. Duarte é o que Chico poderia ter sido, é o que muitos Chicos provavelmente viraram, seres indiferentes emocionalmente e ignorantes intelectualmente em relação ao país que despenca sobre suas próprias cabeças. Personagem que parece o avesso de seu criador, mas o avesso, apesar de ser o oposto, é muito mais próximo do que distante, pois está colado do outro lado. Duarte tem muito de Chico e é ao mesmo tempo tudo o que ele nunca foi. Já o Leblon é o que o Brasil queria ter sido, e Essa gente também mostra o quanto os desfavorecidos se deformam em valores e compromissos ao desejarem tornarem-se iguais aos que lá vivem; Essa gente, por mais que doa constatar, é formada tanto pelas dondocas e garanhões do bairro, quanto pelos passeadores de cães e moradores de comunidades que por ali circulam. Nossa elite é prodigiosa em converter Chicos potenciais em Duartes reais, e o Leblon em fazer com que os pobres aspirem uma sociedade ainda pior do que a que já temos.

Não se trata, contudo, de um romance político no sentido estrito do termo, nem de um romance histórico, apesar da enorme contribuição para o entendimento sobre o tempo presente. Assim como suas músicas que tocam nas feridas da Ditadura Militar, Essa gente é muito mais do que um texto crítico sobre nosso momento político, é antes de tudo, e principalmente, uma história sobre as relações humanas.

Ter o Rio e suas mazelas como cenário principal de uma obra com essa proposta também é extremamente significativo, traz de volta uma de suas características mais peculiares e há algum tempo perdida: a de se tentar compreender o país por meio de suas veias e de sua gente. Joga ainda a cidade — que por vários motivos andava meio distante da cena literária relevante do Brasil de hoje — no olho do furacão da produção ficcional e, consequentemente, no centro das atenções. Chico e seu novo romance têm força suficiente para produzirem esse movimento, ainda que por um tempo.

Essa gente é a primeira obra ficcional publicada, de peso e notoriedade, a se passar no desgoverno de Jair Bolsonaro e a retratar as relações sociais e afetivas nesses tempos sombrios. Bom que tenha vindo de Chico o primeiro romance com essa característica, e justamente o seu melhor livro. Sinal de que, assim como suas músicas, a obra extravasará sua função primeira e se tornará um grande instrumento na disputa futura pela narrativa e pelos afetos, tão fundamental para que essa gente não volte a fazer o que hoje faz com o Brasil.

Leonardo Valente é escritor, jornalista, cientista político, e diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. É autor do romance O beijo da Pombagira (2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, da antologia Apoteose (2018), finalista do Prêmio Sesc de Literatura, e do romance Charlotte Tábua Rasa (2016). É um dos autores da primeira edição impressa da revista gueto, com o conto “criogenia do inconsciente ou manifesto pelos prazeres perdidos”, além de ter participado de outras antologias e coletâneas. Participou da Primavera Literária Brasileira, na França em 2019, e é um dos autores convidados para a edição 2020.

em busca da terra sem mal, resenha de Dirce Waltrick do Amarante

carvao_capimGuilherme Gontijo Flores parece anunciar no seu mais novo livro de poesia, carvão :: capim, publicado em 2017 em Portugal e lançado agora no Brasil, a “terra sem mal” dos povos Tupi-Guarani, a qual deve ser buscada em vida; por isso a necessidade de migrar, de caminhar, de cruzar fronteiras, o que o poeta faz, passando por Beirute, Paris etc. Mas em vez da terra sem mal o que ele encontra é, na verdade, um mundo caótico, como o descrito em “Solo”, em que uma menina atravessa uma esquina “enquanto zunem/ centigramas de chumbo/ asfalto acima rumo a tudo/ que ela ainda considera/ chamar de terra”.

Numa das epígrafes do livro, Petxi Kisêdjê, indígena de língua Jê que vive no Parque Indígena do Xingu, diz: “neste lugar, sou índio e outro, mas falo pra vocês falo pra vocês envergonhadamente, falo pra vocês”. O poeta parece encarnar esse índio que se sente obrigado afalar, a narrar as situações cotidianas mais terríveis e absurdas: “E ele deixou quem berrava/ queimar em vão e sem combate serem cinzas/ enquanto o sol imerge e a noite roda o dia”, ou “felizes são os corpos/ daqueles mortos pelos inimigos/ que infectam águas de outros rios […]”.

Os versos tentam, à medida que avançam pelo mundo, alcançar alguma forma de “iluminação”, mas o xamã contemporâneo vê brotar diante dele, “por mágica do asfalto”, não uma flor, e sim “uma placa/ um prédio inteiro nascido/ empoeirado pelo tédio”.

A poesia atual de Gontijo Flores é política, sem abrir mão da pesquisa formal. Ela alerta para a morte de “pobres e pretos/ fuzilados pela polícia”, enquanto na “propaganda de desodorante” alguém “beija e é beijado”, como se nada impactasse seu marketing.

São muitas as vidas exemplares que carvão :: capim homenageia, numa tentativa de desobstruir o caminho: a de Roque Dalton, o poeta e ativista salvadorenho, que “foi morto nalgum canto/ pouco antes de ver/ os teus quarenta anos”; a de Bob Kaufman, poeta surrealista americano, negro, que viveu anos na pobreza em Nova York e sofreu com a perseguição da polícia, mas que, quando voltar, dizem os versos de Gontijo, as pessoas entonarão “o let my people go/ usando nuvens como alto falantes”; a da cantora negra brasileira, sempre à frente do seu tempo, Elza Soares, “a mulher do fim do mundo”; a do músico minimalista estoniano Arvo Pärt, que censura soviética obrigou a migrar para a Áustria; etc.

Num viés de autor fabulista (o poeta é tradutor de mestres gregos e latinos),são também protagonistas nessa poesia em ebulição animais inexistentes, doentes, ou fakes, saídos não da literatura clássica, mas de um delírio, como o alce vermelho cavalgado pela criança que “exibe no lombo de plástico inflado/ a possibilidade/ ainda que pequena// em seu vermelho plástico”; ou o inseto que termina cozido numa xícara de café expresso.

De repente, surge até “uma panela com patas”, e, quando parece que ela ganhará vida, remetendo à epifania ou ao perspectivismo ameríndio, o que se vê é que as patas são de um jabuti “fervido ainda vivo sem escolha”.

E ressurge a epígrafe de Kisêdjê nos versos finais de carvão :: capim: “você dizia índio & índio eu respondi/ & hesitamos perante as peles dos curtumes”.

Dirce Waltrick do Amarante é professora do Curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC, tradutora e ensaísta.

POEMA DO LIVRO

Solo

1

Prado cerrado soterra não tem corpo
a grama cresce em fúria
nos edifícios que ensaiamos
em construir nos edifícios
que preparamos por embasar
sobre edifícios que sonhamos
em erigir para edifícios
que agora tombam

erguido ao céu num rito
alegre das miradas
o AR15 entoa
e sob a cena os pés
acenam as passadas
um garoto acontece
de beijar o céu
excuse me while
a cena acaba`

2

Prata encerrada sob a terra não tem cor
a frase é velha vale pouco
perante a cara
que aparece nos jornais
velhacos das agendas
nacionais perante os pastos
que ensaiamos em sonhar

o ouro é preto e explode céu acima
nas gargantas metálicas das mídias
são hoje cento e quantos corpos
correntes nas esquinas
são toneladas de lama
a mesma sobre os rios
águas do rio ninguém bebe mais

3

Uma menina atravessa a esquina
e se concentra enquanto zunem
centigramas de chumbo
asfalto acima rumo a tudo
que ela ainda considera
chamar de terra

são clichês poesia será parca
sob a cena chumbo sem número
dos dias será fraca
diante dos instantes
metralhados nas câmeras será nula
nas feridas dos que expiram
sem sentido

4

A contagem dos corpos segue cega
na foz na fonte e nos estanques
alguém sussurra nomes como
senegal ou beirute ou meros nomes
alguém contou as pilhas pela síria
alguém mal fala porque
os anônimos se amontoam
num canto os anônimos
entoam novos cânticos
numa fumaça
são cânticos aos drones
a morte é um mestre em toda a terra
resta o carvão dos corpos

5

Minas não há mais
dali alguém responde minas
nunca houve
daqui alguém replica
o sangue é negro
e corre o sangue
e negro e chega
o sangue corre
e chega o sangue
chega e cantam
o mantra eterno
das religiões
quanto tempo
vai durar
meu choque
o sangue é seco
e sofre o manto
negro das religiões
o sangre é negro
e morre
no mantra seco
das religiões

6

Alguém volta correndo
a cena é lenta
alguém volta correndo
enquanto alguém espera
a cena é mais romântica
jovens que de pretos e pobres
ainda e sempre restam
por pobres e pretos
sempre restam
mesmo que nem tão
pobres e pretos
fuzilados pela polícia
alguém volta correndo
e num enlace envolve o braço
e beija e é beijado
a propaganda é de desodorante
alguém volta correndo
e sai beijado
por ciclones e queimadas
alguém volta correndo
as mãos se tocam num sorriso

7

Paris não é o fim do mundo
a lama explode além
e nunca pode ser a mesma
nunca entraremos na mesma terra
que sobe acesa pelo escapamento
ao raio opaco deste sol

escolas encerradas
se ocupam por garotos
que ocupam suas tardes
em descerrar as vidas
os corpos ganham corpo
frágil parco vivo
alguém procura por capim

8

Pasto surrado desterra não tem coro
se a lama abraça os braços
todos deste rio se este rio
teima e reteima em desaguar
no mar se nossos peixes
serenam sob as águas
um verso ainda

eu seria mulher da vida
eu corro nas entranhas do dia devagar
eu tenho filhos e não faz sentido
eu seria mulher do mundo
eu leio whitman para os desmembrados da manhã
eu cruzo serras e não faz sentido
eu seria a mulher do fim
eu canto quando a voz se arrasta
eu seria a mulher do fim do mundo
mas a voz não faz não chega à foz
a voz não traz não chega ao rés
a voz

9

Você constata triste

que já dinamitaram

a ilha de manhattan

talvez ainda reste voz

10

O sol no sal
alguém viu parece
alguma sauna
estalactites no concreto
estalam sobre máquinas
de costura entrelaçando
o nome sweatshop
a loja escorre o mesmo

beijamos novamente
as marcas de eldorado
achamos novamente
a terra sem mal
seguimos novamente
à terra de linchamentos

Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e leciona latim na UFPR. Estreou com os poemas de Brasa Enganosa, em 2013, finalista do Portugal Telecom. Em 2014 lançou o poema-site Troiades — Remix para o Próximo Milênio. Essas obras deram início à tetralogia Todos os Nomes que Talvez Tivéssemos. Como tradutor, entre vários outros, publicou A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (2011-2013, premiado com APCA e Jabuti).

um universo circular no fluxo das águas, resenha de Nuno Rau

capa_wandaLA liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019) será lançado amanhã, 16 de fevereiro, a partir das 19 horas no Patuscada — Livraria, Bar e Café em São Paulo.

1.

Adentrar um bom livro de poemas pela primeira vez nunca é uma aventura simples — é como entrar num espaço desconhecido que guarda surpresas em suas paisagens. A poesia convoca a um posicionamento do leitor, daquele que precisa ativar, com sua energia, o circuito impresso sobre o qual se assenta o conjunto de poemas, para, assim, atualizá-los em relação a si mesmo. No meu caso, considero instigante a busca sobre o que moveria a voz gravada nestes versos, que determinações a atravessam e o que ela nos abre em sua potência. A liturgia do tempo é um livro com muitas entradas, como se inúmeros pequenos afluentes nos levassem todos ao rio principal que é a poética de Wanda Monteiro, no exato momento em que ela se encontra, este aqui e este agora (sempre em curso contínuo). Wanda é uma poeta que nasceu em meio às águas da Amazônia, nelas se banhou, em seu entorno cresceu e delas carrega a marcante influência que seus poemas anunciam, uma poeta que já nos deu livros maduros e prenhes de questões como Anverso e Aquatempo, igualmente marcados a um só tempo por essa regionalidade e pela universalidade que nos aproxima de seus caminhos internos.

Interrogando essa voz, ela nos conta que roga pela “escuta de alguma voz/ voz que venha de todas as vozes” que enumera, então: a dos elementos — vento, céu, terra, fogo, águas —, a dos seres — as “coisas miúdas” —, a do mistério da vida e da morte, do sagrado e da ancestralidade. Estamos postos diante de uma cosmologia que se esboça por movimentos sutis, e precisamos interrogar a essa “voz do céu que guarda todas as vozes” por quais devires humanos (e, sem dúvida, também supra-humanos) seremos levados. Buscamos pistas, uma vez que estamos em meio a uma densa mata na qual pegadas são recobertas pelas folhas que caem incessantes, e atravessadas por rastros de outros animais, quando não lavadas pela chuva ou pelas aluviões delas decorrentes.

Não bastassem, como vimos acima, as interrogações acerca dos fluxos que atravessam e constituem esta poética (a um só tempo centrais e marginais em relação ao debate contemporâneo da poesia), observamos que o livro é construído por dois espectros de fala que, dialeticamente, não se mesclam, antes se diferenciam no diálogo que articulam entre si, comigo e com você, atônito leitor — é necessário desenvolver mecanismos para a escuta destas falas, localizar suas pistas. Um sinal nos acena da epígrafe: Heidegger se interroga sobre semelhança e oposição entre poesia e pensamento; entenda-se aqui pensamento, na mira do filósofo, como o responsável pelo triunfo da técnica na sociedade moderna e, por conseguinte, pela conversão da vida em simples procedimento burocrático dentro do aparato científico-tecnológico do Estado, tendo como resultante o esquecimento do ser. A poesia seria, então, esse caminho para o retorno à experiência original do pensamento — e esta experiência original é exatamente o que se persegue em A liturgia do tempo, por meio da própria linguagem e do lugar para onde ela se volta como ferramenta de representação e reflexão: ela busca lembrar o esquecido, isso que perdemos na contemporaneidade, no mergulho da vida urbana e, assim, superar essa crise e procurar reconstruir a experiência original do pensamento. Eis o abismo de que nos fala o filósofo, eis o abismo (ou um deles) que a poesia busca sobrepassar.

Tomando ainda a questão levantada pela leitura da epígrafe, podemos pensar sobre a querela entre Heidegger e o nominalismo linguístico da primeira metade do século XX, especialmente com Saussure e Wittgenstein. Simplificando os termos deste debate para o contexto de nossa apreciação de A liturgia, podemos tomar do nominalismo linguístico o pressuposto de que o ser humano está diante de um incontornável esquecimento do ser, do qual a arbitrariedade do seu uso social e científico é o mais recente sintoma. Isso ocorre porque estamos imersos numa nuvem de signos, todos autorreferentes e dotados de legalidade própria e independente, e não fundados numa forma lógica ou na própria substância do mundo.

No lugar de buscar a superação da crise acima detalhada, reconstruindo, na medida de seu possível, a experiência fundante do pensamento tal qual se deu na Grécia antiga, perdemos o pouco potencial reflexivo que ainda possuíamos porque nos dedicamos a compreender e praticar as regras e a arbitrariedade do signo. É devido a isto que, para Heidegger, o nominalismo linguístico da primeira metade do século XX é a forma mais recente, mais jovem, do estranho ou do estrangeiro se manifestar, ou seja, é a mais recente manifestação do esquecimento do Ser — caberia a nós, como alternativa, lembrar o esquecido: para Heidegger não são o cientista ou o administrador do Estado os cidadãos capazes de realizar a experiência da dignidade da palavra. Para tanto, só o poeta.

2.

Aqui tocamos o ponto de articulação entre a poética de Wanda Monteiro e a questão da linguagem, sua arbitrariedade. A poesia, como queria Heidegger, tenciona retomar o caminho até o Ser, ambiciona cumprir o arco entre o texto e a existência, de modo que nos reconectemos com esses princípios. Os poemas de Wanda nos aproximam desta ponte sobre o abismo pela via do que foi transmitido pelos povos ameríndios às populações ribeirinhas do Pará, determinando sua visão de mundo e, portanto, sua relação com a linguagem. Explico: desde que os gregos antigos disseram pela primeira vez a palavra physis (materializaram no próprio movimento do ar sendo soprado por entre os lábios que formam uma espécie de túnel estreito (pela forma da pronúncia), e articularam um vínculo entre o fenômeno descrito pela palavra e a materialidade de sua fala, que remete ao próprio movimento do ar (como se fosse um vento, fenômeno meteorológico) que, para aqueles gregos era uma substância que preenchia todo o universo, já que em sua forma de compreender o mundo não havia o vácuo; este “preencher” o universo explicava, entre outras coisas, a própria possibilidade e ocorrência dos movimentos dos seres e dos objetos. A forma com que os ameríndios articulam a fala e a relacionam com suas cosmologias não é, estruturalmente, tão diversa, e as palavras são sinais desta ligação originária que, para nós, está perdida pela forma arbitrária como aprendemos e reproduzimos a língua. Os poetas trabalham com uma espécie de arqueologia deste fenômeno primeiro, irremediavelmente perdido, e para quem, como Wanda Monteiro, tem uma relação com este mundo é impossível não espelhar em sua produção elementos atávicos.

Isto pode ser observado nas palavras e conceitos que comparecem nos poemas — por exemplo, o “solo”, que ora aparece como chão firme, ora como elemento fluído e mutável. É assim mesmo que as imagens da natureza afloram nos poemas de A liturgia do tempo, referindo o modo como a própria formação antiquíssima daquelas planícies se deu pelo carreamento de solo nas águas pretas dos rios. São muitas as águas por toda a Amazônia, aliás, um leque de formas líquidas que vai das águas claras às águas pretas, passando pelas águas míticas e pelas águas ancestrais que amnioticamente nos transmitem conteúdos. Os solos em meio a tantas águas reais e simbólicas não poderiam ser solos absolutamente estáveis, e se mostram móveis e dúcteis, passíveis de serem levados pelas aluviões que, desde o grande dilúvio, são mitos fundadores de nossa cultura — presentes também nas cosmologias ameríndias, como nos mostra Lévi-Strauss nas Mitológicas. Ressalta da leitura deste livro que a poeta trata reiteradamente da necessidade (ou da ausência) do chão, mas ao ler temos que ter em perspectiva que esse chão primevo é em tudo mobilidade e impermanência, além de arquivo de memórias densas.

E eis que Wanda nos apresenta que, em sua cosmologia, o corpo como a soma destes dois vetores, a impermanência absoluta das águas e a permanência provisória do chão, e desta dualidade extrai uma tensão que ilumina a leitura dos poemas. O que unificaria no corpo essa dualidade? Não poderia deixar de ser o tempo, intervalo em que se estendem a permanência e a impermanência, e nada nesta poética é gratuito, porque o solo levado pelas águas até formar novo chão nada mais é do que a matéria da memória que estes poemas nos apresentam, memória que nos vêm segundo o ritmo mesmo do fluir destas águas. É deste jogo na linguagem que nasce a liturgia, a necessidade do trabalho sagrado sobre a matéria do tempo, esse fluxo inapreensível, e seu conteúdo milionário de significados. Cabe aqui compreendermos melhor os sentidos do termo liturgia.

A palavra liturgia tem origem na língua grega e é composta de dois elementos: leitos (público) e érgein (fazer). Juntando estes dois pelo radical e acrescentando a eles o sufixo formador de substantivos, temos leit-o-erg-ia ou leitourgia. Leitos deriva da palavra léos, forma dialetal de láos, que significa povo. Érgein é um verbo que caiu em desuso na época clássica, mas que sobreviveu no substantivo érgon (trabalho). De leitourgia derivou litourgos (servidor público) e o verbo litourgein (exercer uma função pública). De láos (povo) se originaram as palavras laico, laical, leigo. Assim, liturgia, liturgo, lutúrgico, laico, leigo, laical pertencem a uma mesma família de palavras, pois todos procedem da raiz láos ou léos, povo. Mas liturgia passou a ter também, em nossa cultura, um significado religioso: liturgia é o serviço público oficial da Igreja e corresponde ao serviço oficial do templo. Abrange, pois, todo o conjunto de funções oficiais, os ritos, as cerimônias, orações e sacramentos.

Não deixa de nos chamar a atenção o fato de que o nome-síntese deste novo livro de Wanda Monteiro articule estes dois sentidos da palavra liturgia e a ponha em relevo: o laico e o sagrado como faces de uma mesma coisa, e podemos supor, sem muita chance de equívoco, que a liturgia é, para a poeta, o próprio poema — nele se irmanam estes dois aspectos da existência. É por isto que a voz que nestes poemas fala não pretende “deixar de comover-se com o mundo”, o mundo que vem na aluvião de suas sonoridades e sentidos, e, deste modo, nos co-move.

Nuno Rau é poeta, professor de história da arte e arquiteto, tem poemas em diversas revistas e nas antologias Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos), Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Edita revista de literatura mallarmargens.com desde 2012, e em 2017 publicou Mecânica Aplicada (poemas), pela Editora Patuá, que foi finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura.

TRECHO DO LIVRO

A linguagem poética talvez seja o último refúgio da humanidade. A escritura poética restará — mesmo — como tesouro arqueológico da remota paisagem dos sentidos e percepções do humano.

em campo aberto de afetos
ferir-Se
no deslimite

sob
êxodo
transpor fronteiras
===
pisar no auto-exílio

no exato quando do entreato
o tempo nos toma de assalto
parte-nos ao meio
aloca-nos fronteiriços
imersos no espanto

olhos no passado
olhos no futuro
o presente carregado de impossibilidades

I

em leito outrora fecundo
línguas ondas quebravam sonantes
ao toque da lira
no-ágora-do-outrora
só há espectros
mudo-surdos
habitantes de um deserto
seco e demente
de palavras

II

no gargalo da garganta
ergue-se um mausoléu de asas
em santo sepulcro de palavras aladas

III

que presságios trás a mudez
do flagelo verbo
fugitivo de um poema em chamas
?

Wanda Monteiro é escritora e poeta, uma amazônida nascida às margens do Rio Amazonas, no coração da Amazônia, em Alenquer, Estado do Pará. Reside há mais de 25 anos no Rio de Janeiro, mas só se sente em casa quando pisa no leito de seu rio. Seu livro A liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019) será lançado amanhã, 16 de fevereiro, a partir das 19 horas no Patuscada — Livraria, Bar e Café em São Paulo.

sujeito sem verbo: a poética do impoder, por Carla Carbatti

despia-se de seu formato original para agora repousar no infinito nada
Fernando Rocha

Sujeito sem verbo é o título do primeiro livro de contos do paulistano Fernando Rocha. O que ficou conhecido como A hora da estrela é somente um dos 13 títulos alternativos que Clarice Lispector nos sugeriu para a sua última novela. Alguém já fez o exercício de entrar por outro título? Por exemplo “Assovio no vento escuro”? Eu já, já tentei entrar por todos os títulos, experimentar, no mínimo, 13 livros, mas isso é outra história. Agora estamos tentando entrar no livro do Fernando. É difícil. Mas o título oferece algumas pistas. Vejamos: sujeito sem verbo, sujeito sem ação, sujeito passivo, que não atua. Se trata, então, de sujeitos impotentes? Eu me atreveria a dizer que não, que são sujeitos sem poder, mas potentes. As personagens-sujeito do Fernando me invocaram o escrivão Bartleby, de Melville, o seu incansável refrão: I prefer not to. A associação não é simples, é mais bem complexa, há que construí-la.

Digamos de partida, como solo comum, que tanto os personagens do Sujeito sem verbo, quanto Bartlebly, compartilham uma linha de tensão que conduz o sentido ao seu limite. Bartleby repetindo sua fórmula “I prefer not to”, que não é nem sim nem não, mas justo uma zona tensional, indiscernível, que desnuda a linguagem, expõe sua linde, cartografa seu fora onde ela se abre a si mesma e se confronta com o silêncio. E as personagens do Sujeito sem verbo, com seus movimentos sem ação – uma espécie de grito silencioso – que promovem um estiramento do sentido que articula seu próprio sentido como um roçamento no sem sentido, numa impossibilidade.

Toda potência de ser ou de fazer algo é, para Aristóteles, sempre potência de não ser ou de não fazer, senão a potência se confundiria com o ato. Essa é a grande dificuldade de pensar a potência, porque haveria que pensar a potência do não, pensar a potência de não pensar. O que nos levaria a uma aporia, uma vez que o pensamento não poderia nem pensar nada nem pensar alguma coisa. Para sair dessa encruzilhada, Aristóteles enuncia a tese do pensamento que pensa a si mesmo, ponto de equilíbrio entre potência e ato. O pensamento que pensa a si mesmo, não pensa nem o nada nem alguma coisa, pensa sua potência. É nessa tensão que se articula a criação, ou seja, fazendo experiência do seu impoder, algo se torna possível. Ou ainda, é do impossível de onde deriva a criação. Bartleby reivindica esse impoder, como sua absoluta potência, é dizer, desestabiliza a ética-estética do possível anunciando-se como im-possível, como um tremor, uma rachadura no poder. Os sujeitos-personagens de Fernando são sem verbo, ou seja, suas potências não passam ao ato: é uma potência de poder não, um im-poder, portanto. Formulando de outra maneira, podemos dizer que suas personagens são desreferencializadora ou desterritorializadora, na medida em que produzem outros sentidos não assentados na lógico do possível (de poder), mas que transita na linha fina e tensa da potência.

Deleuze diz que a fórmula bartlebiana corta a linguagem de qualquer referência e faz do próprio Bartleby um ser sem referência, ou seja, ele abre uma zona de indiscernibilidade entre sim e não, preferir e não preferir, potência de ser e potência de não ser. É um clandestino, um passeante, o aparecimento de um desaparecer. Ao perder a referência, perde-se também a mirada, isto é, perde-se a estrutura da visão instituída como sujeito-objeto. O olhar, então, jorra-se, transborda-se: o observador é aquele que olha sendo, deixando de ser: não há sujeito, não há objeto, o que há são caminhos. E, nesses caminhos, o sujeito passa a ser o observador e esse deixa de observar porque todo ele está no caminho. Intersecionalmente, o sujeito sem verbo rochadiano é aquele que perdeu o poder de ver e ser para devir. Renunciou o verbo, o ato, o poder, o sentido para delirar nas bordas, no calor do contato. Experimentou seu impoder, seu vazio como extensão, difusão, impulsão de uma força motriz que, frágil e tênue, desvanece e se fortalece nas turbulências do mundo.

Carla Carbatti é mineira, das montanhas, do mar, nômade. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeta com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Subversa, Zunái, Germina, Alagunas, Mallarmargens, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Contratiempo, etc., à antologia RelevO 5 anos, ao Escriptonita: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi e agrupadas no livro autoral Na Cadência do Caos, editado pela Urutau.

Esconde-esconde | breve conto do livro

Deixar o Eu que há em todo mim de lado seria possível? Um convite irrecusável, feito de maneira singela: – Conta um estória!

Os olhos que ainda não conseguiam decodificar as letras seguiam aquele amontoado de palavras, perguntando: Onde é que cê tá lendo?

O pai apontava o dedo para onde o olhar e a boca estavam.

Depois outro desejo: esconde-esconde!

Procurar, se esconder, achar. Olhos atentos, passos firmes: – Já vou!

Placas, senhas, números. Ela não conseguia se econtrar, o GPS em mãos a confundia mais. Precisava de uma voz familiar que lhe transmitisse calma, mas o silêncio dentro da sua cabeça era mais forte do que os ruídos que a cercavam.

Procurava um não sei que que sempre se escondia. Coisa esta que não se pode encontrar mas que por prazer se insiste em procurar.

| ROCHA, Fernando. Sujeito sem verbo. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013. 100 p. |

um instrumento de signos entre nós: tocar ‘real e de viés’, por Carla Carbatti

E onde não queres nada, nada falta.
Caetano Veloso

Como entrar em um livro cuja capa já oferece um obstáculo: é uma porta cerrada? Cujo poema inicial, ‘iniciação’, já anuncia nos primeiros versos: “não me leiam / me esqueçam / se possível nem me conheçam”? Eu poderia começar dizendo que são metáforas da incomunicabilidade da linguagem, da poesia, mas penso que há outras vias muito mais vivas e gozosas para brechar.

A porta é porosa, como a pele — que não penetramos, mas acariciamos, deslizamos — cheia de estrias, de frestas, o sedutor buraco da fechadura: linhas de fuga: real e de viés. Sim, antes de seguir, há que saber isso: a escrita não é dada nem “dável“. Isso não quer dizer que não há ponto comum, não há comunidade na escrita, isso quer dizer que esse ponto comum não é concedido de antemão. Esse ponto comum é o que surge do encontro dos corpos (escrita e leitura e seus inumeráveis outros corpos). Em outras palavras, o ponto comum da escrita, ou ainda, o seu sentido, não está aí, não está aí para ser descoberto; o ponto comum da escrita são pontuações, pulsações, ritmos que se cria ao tocarmos um fonema, uma rima, um timbre atonal que nos desorienta e nos situa na linde entre o sentido e o sem sentido da linguagem.

Colo meu olho esquerdo numa das frestas: “mas, se eu soubesse / o que saberia?” Tudo em mim vibra, as sílabas sabem mais do que as palavras, diz-me a estrofe, elas são sopros, sons inomináveis, que não contêm uma certeza nem uma verdade, são intensidades que dançam e fazem dançar. Eu ouço ao longe a sonância de um trompete compondo hiâncias no ar: a arquitetura de uma queda. “e se eu não cair / que faço de mim / em pé / entre destroço?” E você aí dentro, quem é? Um homem erguido diante da própria ruína? As retinas alteradas pelas ondulações do desejo. Vejo: afino o olhar. E a distância: toco.

Um instrumento de madeira, de papiro, de signos entre nós: limite e transposição, interior e exterior: fronteira contaminada: textura compartilhada: a composição de um lugar esfugente. Ou escrever não é soltar pássaros de plumas pretas num céu em tormentas? Chuva nas páginas, borrão, uma profecia escura se revela sem revelar nada, só mais um buraco negro onde eu me afundo. “e se eu continuasse / dizendo coisas sem sentido / você diria: entre?”. Seria bonito ver a porta se abrindo, ver que a expansão da tinta, dos signos, não produz mais do que uma forma borrosa, indefinível. Mas a porta está cerrada, e desde o buraco da fechadura, eu só vejo pegadas de dedos, tateamento, vestígio. O homem, dentro, “excreve” ocos na porta, entre’visões, vieses, aberturas rizomáticas que forçam o olhar a vaguear como “uma abelha perdida rompe o crepúsculo zunindo até a exaustão”. A mulher, fora, aprende que toda entrada é também uma saída e deriva a saia e a mirada na materialidade onírica das palavras:

“[…] mas
ao invés
de um discurso
dizia: ah…
e voltava ao casulo oco de cadarços em grandes laços […]”

Carla Carbatti é mineira, das montanhas, do mar, nômade. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeta com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Subversa, Zunái, Germina, Alagunas, Mallarmargens, Diversos Afins, Escritoras Suicidas, Contratiempo, etc., à antologia RelevO 5 anos, ao Escriptonita: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi e agrupadas no livro autoral Na Cadência do Caos, editado pela Urutau.

amor

dizem que o amor isso
o amor aquilo…
mas já é sexta-feira?
Já dá calafrio?
vai ter cerveja?

e se não for…
e se não for amor?
se for
salto alto
quadrúpede de pelúcia
e coração de estudante?

entupidos
de
álcool

imersos nesse aquário
esperando
o grande evento

sequer suspeitam
que os cavalos de Napaleão
não lutavam pela França

| OLIVEIRA, Leandro. Real e de viés. Juíz de Fora, Minas Gerais: Bartlebee, 2013. 117 p. |