coletânea ‘Antifascistas’ — entrevistas na TV 247

O primeiro de oito programas de entrevistas na TV 247 teve a participação da nossa editora Christiane Angelotti e Cinthia Kriemler, Cristina Serra e José Eduardo Agualusa.

O quarto programa teve as participações de Rodrigo Novaes de Almeida, nosso editor-chefe, Cristina Judar e Jeferson Tenório.

A mediação dos dois programas foi de Regina Zappa e Leonardo Valente. A coletânea Antifascistas — contos, crônicas e poemas de resistência (Editora Mondrongo, 2020) está à venda no site da editora [link]. Os demais programas podem ser vistos no canal da TV 247 no Youtube [link].

 

gueto entrevista Leonardo Tonus

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Fotografia de André Argolo

1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019)?

O conjunto dos poemas que compõe a antologia Inquietações em tempos de insônia foi redigido, em quase sua totalidade, entre o período eleitoral e os primeiros meses do governo atual. Não que eu pensasse na altura elaborar um livro que dialogasse com o momento político pelo qual atravessávamos. Meu ponto de partida era outro. Pelo ato da escrita, buscava, antes, entender o “trauma discursivo” a que éramos confrontados, e mais particularmente os que, como eu, trabalham com a literatura. Nunca o Brasil vivera um momento de tanta dor. Nunca o Brasil conhecera tamanha violência veiculada por seus representantes políticos, pela mídia e pelas redes sociais. Nunca, ao longo de toda a nossa história, a palavra fora tão atacada no Brasil. Durante este período (e ainda hoje), assistimos, como evoco no poema “Menino-pássaro”, à morte anônima e solitária da palavra “abandonada, no meio-fio” das ruas. Ora, não há nada mais aterrorizador para quem com a palavra trabalha e que em sua capacidade de fazer emergir o cuidado para com o outro acredita, do que ver a palavra, assim, pisoteada em praça pública. Vivi este momento de maneira traumática sentindo corporalmente os seus efeitos nefastos. Os primeiros textos da coletânea decorrem deste sentimento e de minha impotência diante dessa tragédia. Eles evocam este corpo social à beira do abismo presenciando a vertigem das perdas e da crença no poder da palavra. Não sei se dos abismos consegui (e conseguimos) retornar. De todo modo, fica aqui o registro desse grito tão necessário.

2. Como costuma ser seu processo de criação? E como foi esse processo com Inquietações em tempos de insônia?

Antes de me dedicar à literatura trabalhei durante muitos anos no Brasil como músico. Estudei piano e, posteriormente, ingressei a universidade no curso de Composição e Regência. Não que a música exija mais do que outras práticas artísticas ou científicas, mas o rigor metodológico que ela impõe deixou marcas profundas em minha formação e em minha atuação de docente, de pesquisador e de escritor. Prezo pelo rigor, aprecio a organização sistemática, cumpro horários pré-definidos, componho diariamente listas de tarefas redigindo de maneira metódica meus cursos, artigos acadêmicos e poemas. Meu exercício de escrita se aproxima, em grande parte, da prática do músico e, nomeadamente, do improviso jazzístico cuja arte reside justamente neste tênue equilíbrio entre rigor e liberdade: o rigor do estudo para absorver o material musical necessário ao improviso (citações de outras músicas, figuras rítmicas, fraseado relacionado do gênero em questão, etc.) e a liberdade da escolha no momento da performance em que se colocam em prática as conexões entre os elementos estudados e aquilo que nós executantes desejamos como resultado final. Mais perceptível em minha primeira antologia (Agora vai ser assim, Editora Nós, 2018) cujos poemas apontam em seus diálogos “inter” e “transtextuais” para um anarquivamento litero-cultural (Márcio Seligmann), em Inquietações em tempos de insônia tal postura se manifesta pela tensão inerente ao improviso (que não se restringe à sua tecnicidade) e que o estado de vigília em que nascem tais textos vem corroborar. Como afirma Márcia Tiburi ao citar a escritora Margueritte Yourcenar na apresentação da antologia: o homem que não dorme (e que não deixam dormir) se recusa ao fluxo das coisas. Há tempos que eu recuso os fluxos das coisas. Há tempos que eu não durmo e que vivo, tragicamente, a atualidade brasileira, nomeadamente em meus improvisos poemáticos.

3. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

Trata-se de uma pergunta quase impossível a ser respondida, sobretudo se levarmos em conta as motivações pessoais que levam à escrita. No que me diz respeito, ela decorre de uma urgência transformada em grito por justamente ainda não se saber palavra. Gosto de pensar minha escrita como este clamor capaz de expressar uma dor diante da impossibilidade de compreender as guerras, o racismo, a homofobia; diante da impossibilidade de conceber a tragédia dos refugiados. Neste sentido, coloca-se aqui menos a questão das motivações que me levaram ao exercício ficcional (que sempre é um exercício falho) do que o desejo de as fazer conhecer junto a um público leitor. Este talvez seja o grande desafio do processo de escrita: escrever para assumir publicamente suas falhas fazendo emergir, pela leitura, a experiência da hospitalidade, aquela que muitas vezes somos incapazes de praticar no cotidiano. Que conselho, neste sentido, dar aos jovens escritores? Que nunca percam de vista o que define, em minha opinião, a própria literatura: a capacidade de acolher e de reconhecer o outro. Ou como evoco no poema “Estar-em-comum” (Agora vai ser assim): a hospitalidade que sempre começa pela hospitalidade da língua de “nomear o outro que desconhecemos”, de “acolher em nossa língua o outro que não conhecemos”; a hospitalidade que nada espera, exceto o próprio “gesto da hospitalidade”: “um estar-em-comum, um respeitar-em-comum, um gesto, apenas”.

4. Como professor da Universidade Sorbonne, em Paris, e um dos principais divulgadores da literatura brasileira no exterior, que avaliação você faz do modo como os europeus enxergam nossa literatura e o Brasil, ontem e, principalmente, hoje, sob o impacto de um governo de extrema direita que ataca as universidades, a ciência e a cultura do país?

Para que leitores possam conhecer a nossa literatura fora do país é necessário que ela seja traduzida. Este foi um dos grandes desafios da política de soft power implementada pelo governo brasileiro ao longo dos anos 1990 e 2000, quando se deu o início do processo de internacionalização de nossos bens culturais, nomeadamente de nossa literatura. Criaram-se bolsas de tradução, o governo passou a apoiar a presença de escritores em eventos internacionais, incrementou-se a visibilidade de nossa literatura por meio da participação do país nas grandes feiras internacionais. Um grande quiproquó instala-se, no entanto, desde o início deste processo. Em minha opinião, ele diz respeito à incapacidade do país em optar entre uma verdadeira política em matéria de diplomacia cultural (fortalecendo a sua marca Nação pelo viés da cultura) e entre uma política de exportação de seus bens culturais permanecendo assim atrelado às leis do mercado e às forças do campo literário e de seus agentes que, como sabemos, compartilham interesses em comum mas que não dispõem dos mesmos recursos e competências (Pierre Bourdieu). O que dizer hoje da (não) presença de nossa literatura na cena mundial? Aliás como defender a literatura de um país confrontado a um poder totalitário? De um país que não defende os seus cidadãos? De um país que não respeita o meio ambiente? De um país que desmantela a sua educação ou que através de seus órgãos oficiais difama os seus atores culturais, como no caso da recente nota da Secom atacando a cineasta Petra Costa? O Brasil com o que sonhávamos já não existe, nem dentro e nem fora do Brasil.

5. Como surgiu a ideia da Printemps Littéraire Brésilien? Conta-nos um pouco sobre este projeto?

O projeto Printemps Littéraire Brésilien nasce dentro da sala de aula, nomeadamente em minhas aulas de literatura brasileira na Universidade da Sorbonne onde leciono há quase 20 anos. Ele tinha (e ainda tem) por objetivo fazer com que meus estudantes descobrissem a nova literatura brasileira pouco lida aqui no exterior. Foi em 2005, durante as comemorações do ano do Brasil na França, que comecei a receber escritoras e escritores brasileiros em minhas aulas. Diante da boa recepção por parte de meus estudantes decidi criar em 2013 a primeira semana Brasil na Sorbonne que, em 2014, se transformou na Printemps Littéraire Brésilien. Desde sua criação mais de 200 autores já participaram do evento que, em 2016, ganhou uma dimensão internacional com apresentações realizadas em países europeus e em diversas cidades nos Estados Unidos. As atividades da 7ª edição do festival conservam ainda seu caráter colaborativo, participativo e itinerante. Elas começam agora no mês de fevereiro na Universidade de Indiana (Bloomington) e prosseguirá por cinco países europeus (França, Portugal, Bélgica, Itália e Alemanha). Retornaremos aos Estados Unidos no mês de abril com atividades programadas em 12 universidades norte-americanas. Para além da participação de mais de 70 convidados (autores, editores, jornalistas, ilustradores, etc.), contaremos este ano com a parceria de diversos atores do mundo do livro no Brasil e no exterior (revistas literárias, editoras, livrarias, blogs, etc.). Felicito-me da parceria estabelecida com a Revista Gueto que, ao longo do ano, acolherá textos ficcionais e ensaísticos redigidos pelos participantes da Printemps Littéraire Brésilien em torno do tema: “Brasil : (im)possíveis diálogos”. Este será um momento profícuo para debater, entre outros, os possíveis e impossíveis caminhos que se abrem à nossa cultura e à nossa produção literária. A nossa maneira de contribuirmos, criticamente, a uma possível política de diplomacia cultural, se esta ainda for possível no contexto atual.

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Ilustração de Vitor Rocha

Leonardo Tonus é professor Livre Docente em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 e da exposição Oswald de Andrade: passeur anthropophage no Centre Georges Pompidou (França, 2016). É o idealizador e organizador do festival Printemps Littéraire Brésilien. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou a publicação, entre outros, de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olimpio, 2008) e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan — Da Terra de Migração Para a Terra Natal (Revista Pessoa, Abu Dhabi Departement of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Vários de seus poemas foram publicados em antologias e revistas nacionais e internacionais. É autor de duas coletâneas de poesia: Agora vai ser assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).

capa_inquietacoesTrês poemas do livro Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019), de Leonardo Tonus, saíram na revista gueto no dia 23 de janeiro, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Jozias Benedicto

capa_jozias1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Erotiscências & embustes.

Este é meu primeiro livro de poesia, foi publicado com esmero pela Editora Urutau e lançado no princípio deste mês de agosto. É um livro bonito e descomplicado, de leitura agradável, são 76 páginas com 37 poemas, prefácio do poeta Félix Alberto Lima e edição do poeta Tiago Fabris Rendelli. A capa, do designer Wladimir Vaz, também é ousada como os textos — sofreu censura mais de uma vez nas redes sociais. Gosto de dizer que são poemas eróticos/irônicos, e esta mistura de um erotismo um tanto esquisito com um humor meio sarcástico, zombeteiro, é uma das características de minha escrita que já aparece em meus livros anteriores, os dois de contos: Estranhas criaturas noturnas (2013) e Como não aprender a nadar (2016).

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Sou um bom ouvinte, mais que isso sou uma “esponja”, absorvo as histórias que me contam, trechos de conversas que escuto no metrô, na fila do banco, em restaurantes, até em velórios. Anoto tudo, em cadernos, pequenos pedaços de papel ou no celular: detalhes dessas conversas, as ideias que surgem “do nada”, fatias de sonhos. E sou um leitor compulsivo, desde criança. Este material um dia aflora: uma frase, um parágrafo, uma situação ou um personagem que nasce já lutando por seu espaço — e com isso a escrita flui. Em geral escrevo de um jato, fragmentos que depois reviso e reviso até a exaustão, combino com outros textos ou simplesmente guardo em pastas em meu computador onde dormem até a hora de virem à luz.

3. E como foi o processo de criação com Erotiscências & embustes?

Escrevo poesia desde adolescente, mas só comecei a me ver como escritor já na maturidade, quando fui para a prosa, os contos, que me trouxeram o reconhecimento de algumas premiações. Sou também artista visual, e utilizo muito a palavra, em especial a palavra poética, em meu trabalho de arte — vídeos, instalações, performances e pinturas nos quais “a palavra é trama e urdidura”. Em 2015 passei por um incêndio em meu apartamento, que destruiu muita coisa, inclusive meus cadernos antigos de poesia — que raramente eu tinha mostrado ou utilizado em algo que não meus vídeos e performances. A perda me jogou no desejo de recuperar o possível daqueles textos, buscá-los nas minhas memórias, reescrevê-los, preservá-los, e, um dia, entregá-los aos leitores.

Este desejo só se transformou em um projeto a partir uma palavra que me veio em um sonho, justamente as “erotiscências” que, para minha surpresa, não encontrei nos dicionários. Foi o mote que me fez escrever poemas, usando reminiscências eróticas ou fatos da atualidade (há dois pequenos poemas que subvertem declarações de ministros). E os “embustes” para mim significam a própria condição do artista, do escritor, lidando com a ficção, tornando-a real para os leitores e ao mesmo tempo deixando claro que tudo é um jogo; este embate constante do artista entre a forma e o conteúdo (“os ardis que faço/para esquartejar a última flor do Lácio”) e também como o artista, para se fazer ouvir, tem que driblar preconceitos, censura e todo o tipo de restrições e perseguições.

Tive um cuidado — já que costurei textos criados em épocas diferentes, de temáticas diversas e formas muito variadas, para que o livro não fosse uma colcha de retalhos — e creio que ele ficou multifacetado porém alcançou uma unidade.

Finalmente, quis fugir do padrão do texto erótico-pornô, dos estereótipos sofisticação/escatologia, da mitificação e objetificação dos protagonistas e das experiências. Meu erotismo é “natural”, quase prosaico, mesmo quando é “estranho” ou quando leva a tragédias.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Nunca faço esses intervalos, estou sempre com projetos, tanto de escrita como de artes visuais, o tempo todo trabalhando em mais de um projeto ao mesmo tempo. Acabei de fechar outro livro de poesia e estou fechando mais um livro de contos. Nas minhas “gavetas” (as pastas de meu computador) o tempo todo olham para mim: contos, poesias, textos com forma ainda indefinida, esqueletos de romances às vezes com pouca carne, às vezes com excesso de gordura e um projeto ambicioso de metalinguagem. E em artes visuais estou trabalhando em pinturas sobre os Sonetos de Shakespeare, fazem parte de uma série de escritas “através do espelho” que desenvolvo desde 2016 e já mostrei em alguns espaços institucionais no Rio.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

Sempre escrevi, acho que em decorrência de minha paixão pela leitura. Eu era aquele aluno chato que sempre tirava 10 nas redações no colégio — mas precisei de muito tempo até ter a coragem para expor minha escrita, inicialmente em blogs, até chegar na palavra impressa. Hoje, escrever é tão vital para mim como acordar pela manhã, me alimentar, amar, uma atividade que faz com que eu me sinta vivo e no mundo.

Para quem está começando a escrever, eu diria: 1) “leia, leia muito”; 2) “escreva, escreva muito”; 3) “revise, corte e reescreva”. Acho que é por aí.

Jozias Benedicto é escritor e artista visual nascido em São Luís, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Pós-graduado em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-RJ. Publicou os livros de contos Estranhas criaturas noturnas (2013, finalista do Prêmio Sesc de Literatura) e Como não aprender a nadar (2016, Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura). Em 2018 recebeu premiações pelos livros de contos ainda inéditos Um livro quase vermelho (Fundação Cultural do Pará) e Aqui até o céu escreve ficção (Governo do Estado do Maranhão). Teve contos publicados nas antologias Sábado na Estação (2012, organizada por Luiz Ruffato) e Contágios (2016, organizada por José Castello). Em artes visuais, entre outras mostras, participou da XVI Bienal de São Paulo. Erotiscências & embustes é seu primeiro livro de poesia.

Quatro poemas do livro Erotiscências & embustes (Editora Urutau, 2019), de Jozias Benedicto, saíram na revista gueto no dia 3 de agosto, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Tito Leite

capa_cedro1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Aurora de cedro.

Aurora de Cedro é um livro que nasce das minhas inquietações, dúvidas e sentimentos, de modo especial, do nó na garganta com determinadas situações, assim como a minha indignação com os problemas atuais desse fascismo crescente. No primeiro momento, trato do cenário político e dos abutres que roubam a nossa liberdade, com temáticas voltadas para o imigrante, o trabalho, os sistemas de vigilâncias e o consumismo. No decorrer do livro, procuro expressar os espantos da vida urbana em um mundo fugaz e muitas vezes desprovido de sentidos. Neste livro, afirmo a vida, o corpo, o canto e a festa: numa vida estilhaçada, queremos a vontade de eternidade no transitório, a vontade de amar em tempos de ódio, a vontade de se embriagar e viver loucamente em tempos do bestialmente correto. Em todos os poemas há uma busca pela resistência, a melhor palavra que expresse a grande recusa. Enfim, acredito que é um livro sobre a resistência, a vontade de manter-se na luz e abraçar a noite escura da alma em meio a tantos ventos contrários e salteadores da paz. Por isso, uma aurora de cedro, uma luz leve e uma sombra sóbria, uma aurora armada de cedro.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Começo a escrever num pequeno intervalo que encontro entre 06h05 e 06h45, quando gosto de reler o que escrevi na noite anterior e burilar os poemas. Durante o dia, sempre tento guardar um verso ou uma estrofe que fiz para esperar algo de bom pela manhã e, com isso, fechar o poema. Depois, refaço alguns poemas e procuro escrever outros, alguns surgem de carreirinha, há os que demoram muito tempo. Durante as minhas atividades no Mosteiro, sempre fico à espreita de algum verso ou palavra que abra o poema, lembrando-me de Vicente Huidobro: “Por que cantais a rosa, ó poetas!/ Fazei-a florescer no poema”. Para mim não é complicado começar um poema, difícil é deixar como quero. Quando escrevo, gosto de criar imagens, buscar o inusitado e juntar palavras que, normalmente, não fazem parte do mesmo campo semântico. Depois das imagens, tenho uma preocupação com a sonoridade e gosto muito de ler em voz alta.

3. E como foi o processo de criação com Aurora de cedro?

Aurora de Cedro, inicialmente, foi um desafio, porque eu queria escrever um livro mais sonoro e menos hermético, uma poesia para ser ouvida. Comecei a escrever em 2017. Os primeiros poemas eram imagéticos e de inclinação surrealista. Em muitos momentos eu me perdia entre algumas poluições de imagens. Por isso, sempre procurei ser cuidadoso com o trabalho de linguagem. Então coloco toda a minha paciência monástica, não tenho pressa para publicar, refaço várias vezes. Alguns poemas ficam guardados e depois de um bom tempo, volto a trabalhar e os deixo guardados novamente, até que um dia fiquem como desejei. Assim, vou jogando fora o que fica ruim. Tenho uma excelente relação com a minha lixeira. Sempre penso em não queimar cartucho e assim fui jogando alguns fora, lapidando outros e procurando colocar ritmo e som. Eu só bato o martelo quando sinto que está como eu quero.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Eu não consigo dar um intervalo. Sou um crítico do que escrevo e quando penso num projeto futuro, estudo onde acertei e errei no anterior. Na verdade, penso em escrever um livro de poesia inspirado na obra de Arthur Bispo do Rosário, mas não sei se vou levar adiante. Toda obra desse autor é uma máquina resistente contra o esquecimento e totalmente subversiva. É interessante que, dentro de um manicômio, onde eles eram tratados como lixo, o Bispo começou a tecer sua obra a partir do lixo da instituição, desconstruindo a farda e toda a simbologia de sua camisa de força.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

Eu diria para quem está começando que poesia não se faz com bula de remédio ou com nota de rodapé, então tome cuidado para não colocar o leitor num quarto fechado que não entra ar. Por que comecei a escrever? Porque a minha cabeça sempre foi um espanto de dúvidas — nunca tive medo de colocar o meu mundo em questão e a poesia surgiu no momento em que precisava recriar minha vida como quem junta todos os cacos do velho vaso que quebrou. Além disso, sempre acreditei que o poeta é uma ponte entre o homem e Deus.

Sete poemas do livro Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019), de Tito Leite, saíram na revista gueto no dia 13 de maio, você pode ler aqui: [link]

Resenha do livro na Revista CULT, por Alexandra Vieira de Almeida: [link]

Link para comprar o livro no site da editora: [link]

Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo Edith, 2016). Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da revista Gueto. Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019) é sua mais recente obra.

gueto entrevista Laís Araruna de Aquino

capa_araruna1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Juventude, ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017, publicado recentemente.

Juventude reúne poemas que escrevi até o final de 2017, quando, então, submeti o conjunto ao Prêmio Maraã de Poesia. Os poemas não têm uma identidade temática definida, mas todos se relacionam diretamente a meu espaço de experiência e, indiretamente, às questões filosófico-existenciais que me acudiram no período (deus, mortalidade, o ser, o nada e à consciência) — e das quais nunca nos livramos.

Trata-se, no mais das vezes, de reabilitar as minhas próprias vivências à luz do sopro da poesia, como se da província ou de um sujeito que se confunde com sua província pudesse exsurgir o sentimento do universal.

Fazendo um paralelo, Clyfford Still, pintor de quem gosto bastante, disse algo que — entendo — se aplica aos meus poemas: “Quando eu exponho uma pintura, eu gostaria que dissesse: ‘aqui estou eu: esta é minha presença, meus sentimentos, eu mesmo’”.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Não tenho uma rotina pré-definida sobre como e quando vou escrever. Como disse Ferreira Gullar, somente escrevo — ou me proponho a escrever — quando sou tomada pelo espanto. Quando isto ocorre, posso levar dias ou, às vezes, meses escrevendo um único poema, para que fique com uma forma que considero aceitável.

3. E como foi o processo de criação com Juventude?

Os poemas desse livro seguem o que falei acima. No entanto, os mais antigos têm certa liberdade de forma que hoje não consigo reproduzir. Escrever torna-se, a cada vez, mais difícil, porque temo a repetição.

No entanto, é certo, se eu buscasse uma “originalidade” a cada poema, teria de permanecer em silêncio. Como vejo as coisas, tudo já foi escrito e a busca de uma subjetividade criadora é um mito.

Agora, uma anedota. Duchamp passou 20 anos sem realizar uma obra, porque disse, várias vezes, que não tinha mais ideias e não queria se repetir. Talvez, se eu levasse isto a sério, não escrevesse mais nada. No entanto, escrever é uma exigência: é uma forma de expressão pessoal de que não posso me livrar.

No entanto, se, do ponto de vista do processo de escrita, é mais ou menos assim, do ponto de vista do mundo, não. Como falou Szymborska no seu discurso do Nobel, contrariando o Eclesiastes, tudo é novo sob o sol.

Isto é, a apreensão do mundo — este locus onde os homens são vistos e ouvidos, desde uma posição não intercambiável — sempre está a mudar, já que a ação — e o discurso — instaura novos começos, cujos resultados não são previsíveis. Além disso, citando um poema, “a madeira desbota e os teus cabelos vão a cinza”. Trata-se do devir em que todos estamos mergulhados.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Juventude é meu primeiro livro. Eu não parei de escrever desde que comecei. Já possuo vários poemas novos, que, segundo espero, comporão um segundo livro — a se chamar, provisoriamente, Madureza.

Como disse antes, se um intervalo surge, é porque, nesse tempo, não fui sacudida pelo espanto — ou tive preguiça de trabalhar sobre uma imagem ou uma ideia.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

Comecei a escrever porque sentia uma exigência que me impelia a tanto. Acho que Mark Rothko estava certo quando disse existir uma “necessidade biológica de se exprimir”. Quando escrevo, desejo que o resultado seja um prolongamento de mim no mundo — mesmo que ninguém leia ou venha a conhecer o poema.

O poema exige ser lido, mas não precisa, necessariamente, de fato, ser lido.

Acho que não tenho nada de relevante para dizer a quem começou a escrever. A não ser para se arriscar nessa aventura.

Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Procuradora do Município do Recife. Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia 2017, é seu livro de estreia.

Três poemas do livro Juventude, de Laís Araruna de Aquino, saíram na revista gueto no dia 14 de novembro, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Antônio LaCarne

capa_lacarne1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Exercícios de fixação.

É um livro de contos. São dezessete narrativas sobre personagens que, de alguma forma, se entrelaçam, de forma bastante sutil. O livro foi escrito sem nenhuma pretensão. Basicamente, um exercício de escrita que, num determinado ponto, cheguei a conclusão de que poderia integrar uma coleção de histórias. São contos que abordam temas do meu interesse: solidão, inadaptação, desejo reprimido, preconceito, segregação. Pela primeira vez, pude até flertar com o mundo do fantástico, inspirado em autores como Murilo Rubião e José J. Veiga. Depois do livro pronto, me surpreendi por perceber que os personagens são outsiders de suas próprias realidades. Todos buscam uma espécie de salvação, ou entender “os porquês”. O título do livro é o resultado disso: eu como autor, exercitando o olhar sobre a criação de uma narrativa; e os próprios personagens, que exercitam a busca da própria “salvação”.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Mesmo com a ideia de um conto em mente, o início é sempre às cegas. Escrevo e a ordem dos fatos vai se ajustando. Através do que chamam de “escrita automática”, sigo instintivamente criando situações, depois modifico, e o desenrolar da história vai se desenvolvendo durante todo o processo. Costumo escrever à noite, e revisar e reescrever durante o dia. No ato da escrita, nunca planejo com antecedência o início, meio e fim. Encaro a criação, tanto do conto e do poema, como uma colcha de retalhos. Aconteceu o mesmo com o meu livro “Salão Chinês”. Nessa colcha, insiro temas dos quais acho importantes, misturados com crises existenciais, descrições da banalidade dos dias, aforismos poéticos, e revolta contra determinadas imposições da sociedade.

3. E como foi o processo de criação com Exercícios de fixação? É muito diferente do processo com a poesia?

Foi diferente porque ao escrever poemas eu me sinto mais livre. Essa liberdade, muitas vezes, me permite uma abertura de determinadas “inconsistências” que contribuem para a totalidade do poema. Na poesia, eu exercito as minhas subjetividades, e essas subjetividades atingem o leitor, que toma para si suas próprias impressões. É como se, nem sempre, o poema precisasse soar certeiro. Uma vez escrevi um poema para um projeto do poeta Manoel Ricardo de Lima, e ele disse que havia gostado do poema, mas que não sabia como inseri-lo no projeto. Segundo ele, o poema “dizia, sem dizer tanto, ou nada”. Já com os contos eu preciso de um controle maior, controle esse que não me permite falar por falar. Na prosa, também exercito a minha subjetividade, mas que precisa ser controlada. Devo ter consciência do contorno aos fatos, da construção dos cenários, do tempo, dos personagens, e os porquês de suas questões.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Depois do livro lançado, costumo dar um tempo, pois o processo de escrita, publicação e divulgação do livro é bastante exaustivo. No momento, continuo escrevendo contos, que porventura podem fazer parte de um novo livro. Mas é tudo incerto, afinal a realidade da vida exige muito tempo e estômago. Por outro lado, escrever é o melhor terapeuta.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

O meu maior conselho é que as aspirações de qualquer pessoa sejam genuínas. Não adianta seguir modinha ou buscar qualquer tipo de popularidade através da escrita. Fico muito entristecido quando vejo pessoas que sobrepõem o self-marketing diante da vontade de escrever. A gente tem que pensar numa coisa chamada legado. Só a arte salva, mas para isso é necessário muito trabalho e leitura. Aconselho também lutar contra a mediocridade, pois nem tudo que achamos importante é realmente importante. Comecei a escrever na adolescência, como válvula de escape. Alguns amigos próximos leram os meus textos e me incentivaram a tentar uma publicação. Desde então me dediquei a este ofício, e agradeço aos que me apoiam. Outra maravilha de escrever é o contato que mantenho com vários escritores, e os conselhos que recebo de bom grado, pois compreensão e ajuda mútua são grandes motivações, além do feedback dos leitores.

Antônio LaCarne é cearense, autor de Exercícios de fixação (AR Publisher, 2018), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017), Salão Chinês (Ed. Patuá, 2014) e Elefante-Rei: Poemas B.

Seu conto “Cair demais”, do livro Exercícios de fixação, saiu na revista gueto no dia 14 de agosto, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Ronaldo Cagiano

r_cagiano1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Eles não moram mais aqui, vencedor do Prêmio Jabuti em 2016, e que sai agora em Portugal.

O livro havia sido oferecido a várias grandes editoras, entre 2012 e 2014. Se por um lado recebia de algumas editoras um NÃO por meio de respostas burocráticas e automáticas, havia também o silêncio ou a solene indiferença de outras. Ou ainda o pretexto de que conto não vende para descartar qualquer análise. Então, ofereci ao Eduardo Lacerda, da Ed. Patuá, que aceitou abraçar o projeto e publicou o livro que, para grande alegria, obteve o 3º lugar no Jabuti em 2016.

Nesse livro, reúno 16 contos escritos em diversas épocas, então, você vai encontrar contos muito recentes e outros com mais de 10 ou 15 anos, textos que saíram em blogs, revistas eletrônicas ou impressas, um ou outro em antologia, alguns premiados em concursos avulsos.

São histórias que guardam um liame entre si, porque mapeiam temas que me são caros e recorrentes, como a passagem do tempo, a morte, a insularidade do homem contemporâneo nesse mundo regido pela virtualidade, velocidade e fugacidade das relações, as crises domésticas e existenciais, enfim, situações e ocorrências que povoam o nosso inconsciente individual e coletivo.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Meu processo de criação não segue um modelo ou padrão específico, posso até dizer que não há uma disciplina ou esquema rígido, seja formal, conceitual ou temático, no entanto, é em meio ao caos e à fragilidade da vida diária que as histórias vão surgindo. Tudo pode ser motivo para entrar num conto ou numa poesia, desde a banalidade de um acontecimento corriqueiro até a imagem ou memória de algo ancestral, que hiberna lá no passado de minhas lembranças ou experiências pessoais ou íntimas. Uma conversa de rua, por exemplo, uma imagem, um flagrante podem surgir como insight para a construção literária. E até mesmo uma leitura de algum autor, de um texto, de uma leitura de jornal. Ao escrever, posso iniciar diretamente no computador ou esboçar anotações nalgum bloco, caderno, folha solta, caso esteja na rua e a ideia me ocorra. Não há nem roteiro nem rotina pré-estabelecidos para a minha escritura. Já ocorreu de eu levantar no meio da noite, interrompendo o sono, por uma ideia e anotar para depois retomá-la. Ou andando pela rua, viajando de ônibus, metrô, trem ou avião e, igualmente, o fato ou a ideia saltarem à minha frente. E aí, de alguma forma, registro esse sentimento para depois trabalhá-lo com mais rigor e vigor.

3. E como foi o processo de criação com Eles não moram mais aqui?

Retomando o afirmado anteriormente, esse livro é um conjunto de narrativas esparsas, escritas ao longo dos últimos anos, com textos mais antigos e outros nem tanto, que em algum momento foram publicados em veículos impressos ou eletrônicos e alguns contos premiados em concursos. De um modo geral, a temática que os percorre é análoga, tendo sempre como foco o ser e sua inesgotável usina de desencantos e desconfortos.

4. Você escreve prosa e poesia, já tem um novo projeto em mente? Pode nos contar? Costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Sim, embora me considere essencialmente poeta, pois iniciei, ainda na adolescência, escrevendo poesia e publicando em jornais colegiais em Cataguases, depois uma coluna de crônicas num hebdomadário local, o ingresso na ficção se deu naturalmente, na sequência de alguns livros de poesia. Foi quando já havia publicado meu quarto livro de poesia que resolvi juntar uns contos que havia escrito e nunca publicado e o inscrevi num concurso que havia anualmente promovido pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal e o livro ganhou o 1º lugar no Prêmio Brasília de Produção Literária de 2001, num certame em que havia cerca de 60 livros concorrendo. Foi minha primeira e estimulante experiência com a prosa, daí em diante dei continuidade ao trajeto literário dedicando-me aos dois gêneros, porém não há uma hierarquização no que diz respeito aos projetos, pois posso escrever uma sequência de livros de poesia ou de contos, ou intercalar um gênero entre outro, isso vai surgindo na medida em que há uma demanda pessoal em progresso. Por exemplo, já escrevi ao mesmo tempo, entre um gênero e outro, uma novela juvenil em parceria (Espelho, espelho meu, com Joilson Portocalvo, em 2001); uma novela sobre experiências e desafios de dois jovens na cidade grande (Moenda de silêncios, com Whisner Fraga, 2014) e um romance (Diolindas, com minha esposa Eltânia André, 2017). Ao mesmo tempo, são obras que dialogam ou flertam entre si, pois, ao fim e ao cabo, há assuntos que se comunicam.

Atualmente, estou trabalhando na revisão de um novo livro de contos e concluí outro de poesia. Sairá também pela Editora Urutau, em breve, um livro de poemas intitulado Os rios de mim; esta edição é fruto de uma chamada para análise de originais que a editora paulista anunciou publicamente para receber trabalhos de autores residentes em Portugal, sejam nativos ou brasileiros aqui radicados, e entre dezenas de inscritos foram escolhidas sete obras.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

O leitor precede ao escritor. Não concebo um autor que não seja potencialmente um leitor. Pode haver o talento, a facilidade ou predisposição criativa, mas só se apura no ofício ou no estilo lendo sempre. A melhor escola ou oficina literária é, a meu ver, a leitura, o contato com outras obras e autores, e não falo apenas na leitura literária, mas a leitura do mundo e da realidade que a ficção e a poesia nos permitem. O candidato a escritor não pode ter o açodamento, a ambição, a ansiedade e a urgência de publicar-se. Muitas vezes um bom escritor em gestação terá sua carreira abortada ou será estigmatizado por ter publicado um livro sem qualidade. É necessário maturar, conviver com seu trabalho, com seus temas, com suas experiências de vida principalmente, porque tudo isso será canalizado para o processo criativo em condições de maturidade e relevância. Ler, reler, tresler, não ter a angústia ou viver sob a pressão por uma estreia, pela visibilidade ou conquista de espaços. Tenho notado em muitos escritores, sejam estreantes ou colegas com um percurso já longo, a ausência do leitor. E muitos não se acanham em evidenciar essa lacuna, não percebo em muitos um histórico de leituras e, quando muito, conhecem alguma coisa do lixo literário do estrangeiro, que nos chega, imposto goela abaixo pelo sistema editorial hegemônico e mercenário, e desconhecem solenemente o que de bom se produz aqui. Lembro-me de ter lido há alguns anos uma entrevista concedida pelo escritor mineiro Roberto Drummond, na qual ele sentenciava que “Poeta ruim já nasce feito. O poeta bom se faz, trabalhando dia a dia como um operário, a disciplina de um campeão de natação e a fé de um monge.”

Na mesma direção, Graciliano Ramos, numa entrevista concedida em 1948, falando sobre o trabalho do escritor, foi taxativo: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” Essas são duas lições que entendo salutares e imprescindíveis, que valem para qualquer escritor que queira ter responsabilidade estética como condição norteadora de sua obra. Não há milagres nem caridade que substituem esse esforço.

Complementando a resposta à sua pergunta, em adendo a um lugar-comum de que escrevo para me comunicar, para despistar a morte e tentar compreender o que me cerca e também porque nunca gostei de futebol e as únicas quatro linhas que me interessam são as da página de um livro, o verdadeiro campo de minhas disputas e combates, eu também assinalaria com o que disse Clarice Lispector e que, de certo modo, me alcança: “Sei lá por que escrevo! Que fatalidade é esta? Enquanto eu tiver perguntas, e não houver respostas, continuarei a escrever”.

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e reside atualmente em Lisboa. É autor, dentre outros, de Dezembro indigesto (Contos — Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012), Observatório do caos (Poesia, Ed. Patuá, 2016) e Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, Prêmio Jabuti 2016).

Seu conto “Eles não moram mais aqui…”, do livro homônimo, saiu na revista gueto no dia 12 de junho, você pode ler aqui: [link] E cinco de seus poemas saíram no dia 16 de julho, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Ana Elisa Ribeiro

02 album_capa1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Álbum (poemas, Relicário Edições, 2018).

O Álbum é meu sétimo livro de poesia (tenho outros de outros gêneros, como crônica, conto e infantojuvenil). É o primeiro programadamente temático. É claro que em outros livros alguns temas se repetem, mas isso é contextual. No Álbum a ideia foi escrever poemas inspirados por fotografias, a maioria delas dos álbuns de retratos ou das caixas de fotos antigas da minha família. Tenho profundo carinho por alguns registros e eu quis devolver esse carinho da maneira que posso, que é pela palavra. Adoro fotografia, esse tipo de fotografia, e foi emocionante pensar em algumas sensações e em sentimentos que certas fotos me causam, me trazem, me propiciam. Com isso, escrevi a maioria dos poemas do livro. Uma parte disso foi enviada ao prêmio nacional Manaus, em 2015. O resultado positivo saiu em 2016. Isso me encorajou ainda mais e passei a completar o livro, a ideia. Escrevi poemas inspirados em fotos mais recentes, em fotos que não existem (ou fotografei com palavras), com misturas de várias fotos. Com o original mais composto, tempos depois, procurei a Maíra Nassif, editora da Relicário, que aprovou imediatamente a publicação. Eu acho que o livro tinha um aspecto que combinava com a edição da Relicário, que é sempre cuidadosa, delicada, lenta. É tal como um álbum de fotografia de família. E não estou me referindo a esses álbuns de estúdio. Refiro-me às fotos tiradas por pessoas não profissionais, com câmeras mais precárias, o que inclui contemplar hoje as fotos desfocadas, as mal anguladas, as fotos meio irrelevantes, mas que são tão poéticas, afinal. Isso é a ideia do Álbum, que ficou materializado com o projeto gráfico que a Relicário propôs a ele. A foto de capa é uma das fotos do álbum que herdarei da minha mãe, uma sensível componedora de álbuns e memórias da família. O poema da contracapa é inspirado na sensação que uma foto de verdade me traz.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Normalmente, escrevo diretamente no computador, no Word. As anotações são ali mesmo e o poema se faz em cima de qualquer início de ideia, de frase. Não uso cadernos, blocos, celular, nada. Só consigo escrever ou fluir melhor se estiver no meu escritório de parede azul, em casa. Fora disso, o mundo me ocupa demais. Quase não carrego nada, além da carteira e das chaves do carro. Não tenho rotina para escrever poemas. Eles resistem e persistem, diante de um dia a dia que me insta a escrever outras coisas, com mais urgência e necessidade. Sou professora, pesquisadora, linguista. Preciso produzir textos sempre, mas de outros gêneros. E adoro fazer isso também. A poesia é um outro momento, às vezes avassalador e que empurra as outras necessidades, as adia. Quando surge alguma ideia ou algum desejo de escrever poesia — e o tempo disso oscila —, eu obedeço, paro as demais atividades e escrevo num arquivo de Word chamado Arquivão.doc, que fica bem na minha área de trabalho do PC. Então esse arquivão vai crescendo. Mesmo os poemas do Álbum estão em uma sequência inicial que nasceu ali. Depois retiro, abro arquivos menores e vou dando trato de outras maneiras, com nova organização dos textos. Minhas escolhas dependem da vontade de publicar, da oportunidade, às vezes de alguma encomenda, do intervalo entre um livro e outro, da ideia que me faz juntar alguns poemas em um original. E faço questão de chamar tudo o que faço de trabalho. É trabalho e gera trabalho.

3. E como foi o processo de criação com Álbum? Você realizou pesquisas para escrever este livro?

Não realizei pesquisas, assim, de modo organizado, sistemático. Do ponto de vista teórico, não sou uma escritora muito preocupada. Nem sou dos estudos literários, aliás. Mas pesquisei, sim, as caixas de fotos que foram surgindo, recentemente, à medida que meus avós foram morrendo (em poucos anos, os quatro se foram). Também pedi à minha mãe os álbuns que ficam guardados com ela e fui rever, repensar, sentir. Isso foi a pesquisa. Lembrar das fotos que sempre me importaram muito, contemplar, rever fotos que eu precisava observar melhor, pensar nos efeitos delas sobre mim e sobre outros. Há uma foto que sempre olho e me traz um amargor imenso. Essa foto é muito importante. Há uma foto que me faz sentir uma saudade absurda. E assim fui compondo os poemas. Nem sempre eles conseguem dizer direito o que eu senti ou pensei. A ideia é que eles sejam a ponta de um iceberg. Nem sempre o texto é realizável ou o efeito é alcançável. Mas os poemas estão aí, como puderam ser. E o livro é meio uma caixa de fotos inexata, imprecisa.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Costumo dar um intervalo de publicação de um livro de poemas para outro. Eu havia lançado um livro pela Scriptum, o Xadrez, em 2015. Em 2016, lancei outro, pela RHJ, mas era outra vibe, uma espécie de encomenda para um público mais jovem. Então ele não entra muito na cota dos livros para adultos. Daí resolvi voltar em 2018 com este Álbum. Ele ficou marinando por quase três anos, portanto. Não tenho outro projeto de poesia agora. Ele virá, mais adiante. Ainda estou na ressaca de lançar este livro. Me dá sempre uma crise de repensar as coisas, os caminhos. Mas há outros livros para sair, mais ou menos colados. Há dois livros informativos infantis em uma coleção extraordinária da Editora da UFMG; há um livro técnico pela Parábola Editorial; e há um livro de história e memória sobre meu bairro, o Renascença, na coleção “BH, A cidade de cada um”, editada pelo José Eduardo Gonçalves e pela Sílvia Rubião. Esse está pronto, mas será lançado mais adiante. Sou escritora no meu modo de vida, no meu trabalho, na minha respiração. A poesia está entre essas coisas que faço e que preciso fazer, mas é apenas uma parte do que escrevo cotidianamente.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

Comecei a escrever bem jovenzinha porque gostava, me sentia bem, admirava a escrita de outros que eu lia, achava extremamente prazeroso e aliviante fazer isso, depois descobri que há certa gestão de poder em escrever. Escrever bem, já na minha adolescência, fazia parte de como as pessoas me viam, de angariar alguma admiração, de como eu construía meu ethos, de como as pessoas me viam e por que razões elas me notavam. É claro que isso tem a ver com escola, com colegas, com meus fazeres estudantis e que só consigo analisar assim hoje. A poesia ainda ficava escondidinha no fundo da gaveta, em originais manuscritos ou datiloscritos. Escrever era um modo de existir. Não era moda, porque isso não era uma opção entre os colegas, não era fashion, não era fácil, não dava status exatamente. Escrever e ler são as coisas que me levaram às minhas escolhas profissionais, mais tarde, e mesmo às escolhas de vida. Fiz Letras (graduações, mestrado, doutorado, pós-docs), atuei nisso o tempo todo, pesquiso livros e edição, trabalho com isso há mais de duas décadas, pago minhas contas com isso, casei-me com jornalistas e escritores, enfim… é talvez a orientação mais séria da minha vida. Não é só gosto, é prático. Levei a sério desde sempre, apesar de algum desestímulo, ao longo da vida. As pessoas infelizes nunca me convenceram direito. Bom, sou convicta de que só dá para viver esta vida uma vez, então a poesia precisa fazer parte da minha. Acho que quem está começando precisa ter os pés no chão, a noção de que é trabalhoso, de que é preciso refazer(-se) sempre, de que há uma engrenagem em movimento, de que as coisas têm história, de que é preciso fazer uma gestão da trajetória. Precisam não embarcar no delírio de que serão best-seller amanhã, de que verão seus livros nas vitrines das livrarias. Para começar, é preciso ter paciência e evitar o ressentimento. Também é preciso ser generoso e tentar encontrar gente generosa pelo caminho, mas sem o espírito do oportunismo e do alpinismo. Isso queima o filme logo. É importante fazer, por na roda. E é importante ouvir, mas não deixar a frustração subir à cabeça. Ter gratidão também é bom. Gente ingrata é uma tristeza absurda. Gente que se inspira nas suas ideias e é incapaz de retomar seu nome, sua existência. É de uma tristeza incrível. E depois que alcançar qualquer degrau mais acima, seria importante lembrar dos pares e não mencionar apenas os badalados da cena. Por isso estou dizendo que há uma engrenagem rodando. Chegar com os olhos abertos é importante.

Ana Elisa Ribeiro, 1975, é mineira de Belo Horizonte. Autora de Poesinha (BH, Pandora, 1997), Perversa (SP, Ciência do Acidente, 2002); Fresta por onde olhar (BH, InterDitado, 2008), Anzol de pescar infernos (SP, Patuá, 2013), Xadrez (BH, Scriptum, 2015), Marmelada (BH, Coleção Leve um Livro, com Bruno Brum, 2015), Por um triz (BH, RHJ, 2016). Além desses livros de poesia, tem outros de crônica, conto e infantojuvenis publicados por diversas editoras brasileiras. Participou de antologias, revistas e jornais no Brasil, em Portugal, na França, no México, na Colômbia e nos Estados Unidos. É doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, professora e pesquisadora de Edição no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

Quatro poemas do livro Álbum (Relicário Edições, 2018), de Ana Elisa Ribeiro, saíram na revista gueto no dia 5 de junho, você pode ler aqui: [link]

gueto entrevista Geovanne Otavio Ursulino

geovanne1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Os gigantes atravessam o Eufrates (poemas, Editora Patuá, 2018).

Gigantes costumam aparecer em várias civilizações através dos milênios: os ciclopes na mitologia grega; Golias na mitologia judaico-cristã; na mitologia islâmica se acredita que Adão, o primeiro homem, foi criado por Alá como um gigante; os alquimistas buscavam criar seu golem — só para citar alguns exemplos. Há alguns poucos anos, neste lado do Eufrates (ou seria do Atlântico?) — o gigante acordou. Despertou consigo legiões de bestas devoradoras, saqueadoras, famintas. O que são características comum à maioria das narrativas envolvendo gigantes, assim também como todo um imaginário envolvendo brutalidade, violência, “barbaridade”, primitividade. Neste livro, os gigantes tomam o centro de boa parte das narrativas. Os quarenta poemas reunidos aqui transitam por perspectivas e vivências variadas: buscando não somente perceber as pontes (para o futuro) que proporcionaram a travessia dos gigantes: mas também tantas outras experiências que nos atravessam diariamente.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

São raras as vezes em que saio de casa sem um dos meus cadernos de anotações: minha vida está rabiscada neles. Deste modo, todos os poemas que estão em os gigantes atravessam o eufrates, e também os poemas de como num inferno pra marinheiros, o livro anterior: foram escritos à mão entre lembretes de atividades do dia e anotações dos textos da universidade, somente depois foram ao editor de texto. Então são mais várias correções até eu não conseguir mais ler o poema. Acredito que seja uma atividade laboriosa, que demanda tempo, paciência, envolvimento para o poema ser lido, relido, corrigido, amadurecido, repensado — até alcançar sua forma final.

3. E como foi o processo de criação com Os gigantes atravessam o Eufrates? Você precisou realizar muitas pesquisas para escrever este livro?

Todos somos testemunhas oculares da mais recente farsa que envolveu o Brasil (este sonho/pesadelo colonial português) nos últimos anos. Basta sairmos à rua, pegar um ônibus, ou ir à padaria: somos atravessados por muitas manifestações de ódio, violência e ignorância descaradas. Costumamos dizer que o descaramento que tomou estas pessoas é um reflexo do mundo em que vivemos. O que não deixa de ser correto. Mas o inverso também o é. Não somos apenas um reflexo pálido do mundo que nos produz. Somos, nós mesmos, os produtores do Real. Portanto, temos parte no horror que aí está. Foi com isto em mente que me apropriei da imagem do gigante enquanto criatura bruta, bestial, primitiva e que possui uma grande potência à destruição — como forma de pensar sobre esta farsa que insistimos em discutir se é melhor chamar de impedimento ou de golpe enquanto não atentamos para as bases em que tudo isto se sustenta: o rapaz bem vestido e perfumado que encontramos quando saímos à rua, o senhor calmo que divide conosco os poucos centímetros que nos restaram no ônibus cheio, o jovem padeiro que acorda às 4h da manhã sonhando com seu primeiro salário. São pessoas comuns que narram este conjunto de poemas. São pessoas comuns, como qualquer outra pessoa, que dão a base para este horror. A proposta é, então, identificar como bestas gigantescas estes produtores e mantenedores.

4. Já tem um novo projeto em mente? Qual é? Ou costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Há sim alguns rascunhos espalhados por cadernos de anotações. Mas nada que nem se aproxime de um livro. E, devido à academia, duvido muito da possibilidade de escrever outro por algum tempo. É difícil pensar em intervalos ou não-intervalos entre a escrita de dois livros: há período em que se escreve muito em pouco tempo; mas também há períodos em que não se escreve nada em muito tempo. E, quanto a isso, ao menos comigo, pouco ou nada se tem para fazer.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

A literatura é uma ferramenta única para a compreensão do mundo. Ela nos afeta de maneiras incríveis. Antes de mais nada, escrever é uma forma de ver o mundo que toca primeiro quem produz: talvez por isso tenha eu mesmo começado a escrever (claro que com um entendimento menor do que tenho hoje sobre essas questões). Só o ato de começar a escrever já demonstra um interesse nessas possibilidades mil que a literatura oferece. Então é continuar lendo, escrevendo, olhando o mundo, estando aberto às pessoas, situações, desejos que nos rodeiam. Na verdade, tento ficar com isso em mente o tempo todo, sendo eu mesmo alguém que estou começando a escrever.

Geovanne Otavio Ursulino vive em Maceió. Historiador. Editor da revista Alagunas. Publica no blog Amorfo Poema. Publicou o livro de poemas como num inferno pra marinheiros (Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017) e, agora, os gigantes atravessam o eufrates (São Paulo: Editora Patuá, 2018). Contato: ursulino@alagunas.com.

Três poemas do livro Os gigantes atravessam o Eufrates (Editora Patuá, 2018) saíram na revista gueto no dia 1 de maio, você pode ler aqui: [link]

O lançamento será na segunda metade do mês de maio, no espaço cultural La Rosa Mossoró, em Maceió, no bairro do Jaraguá.