ponte do silêncio, crônica de Luciana Pinsky

Carro, estrada, cheiro de carro, calor, náusea, parar (vai, vai), vomitar. Por vezes dava para controlar. Mas tinha de olhar para frente, só para frente, como minha avó me ensinou: “Não desvie o olhar. Encare lá para frente e não vire o rosto. Só pare quando chegar”. E funciona até hoje. Quase sempre.

E o trânsito? O carro estático, minha mãe reclamando da marginal, podia ter voltado de ônibus, mas essa hora é perigoso, filha. Trem vai rápido. Mas não resolve, ele para a 2 quilômetros de casa. Tornei-me independente quando descobri a bicicleta para trajetos urbanos. Mas e para ir mais longe?

Por mais que adorasse viajar, estar em outros lugares, minha relação com carro sempre foi conflituosa. Era o mal necessário para chegar onde queria, na falta de transportes mais civilizados (e que não me enjoassem).

Isso até o dia da ponte João Dias.

Ele dirigia. E dirigia devagar. Como devagar sempre tocou a vida. Falava devagar, ria devagar, gostava devagar, desgostava mais devagar ainda. Eu estava ao lado, por vezes ouvia o que me dizia, mas basicamente curtia a viagem lenta por uma marginal excepcionalmente livre. Talvez por conta do momento incomum.

A ponte do Jaguaré, escuríssima. Na cidade universitária podia fazer o anel, chegar em algum lugar da Praça Panamericana, talvez um sanduíche, a fome crescia. Só pensei. Na Rebouças vertigem, mas não enjoo. As luzes vinham e passavam, traços de outros veículos — uma cor, um zumbido — mas nada ficava lá com a gente.

Cidade Jardim? Como cheguei aqui? Você me contava de um filme que viu. Ou era livro? Sonho? Sonho sim. Eu entrava no sonho e já não sabia se estava no seu sonho ou na avenida. Avançamos. Ali sairíamos para Bandeirantes, com sua discreta mas indisfarçável inclinação rumo a outros lugares. Não. Você seguiu. Qual minha avó, sem virar. Exceto que seus olhos, de soslaio, procuravam-me. “Cuidado para não enjoar”, quase alertei. Mas não. Ele que sabe de si, quem sabe é homem que não se abala?

Ponte do Morumbi leva à minha irmã, ia comentar. Mas a boca só murmurou o calor de agosto. Até onde iríamos? Tem combustível para tanto? Será que não faríamos falta, será que pendurei a roupa da máquina, será que as frutas vão estragar? Fechei os olhos e frutas, roupas e falta desapareceram.

E daqui para frente pouco lembro. Lembro sim, mas não há palavras, porque palavras não chegam. Em uma São Paulo tão barulhenta são poucos e inconfundíveis seus silêncios. Precisamos deles. Por isso, peço, imploro. Por favor, Prefeito, mude o nome dela. Não é João Dias. É ponte do Silêncio.

Luciana Pinsky é, originalmente, jornalista, com passagem pela revista Época e pelo jornal Valor Econômico, entre outras publicações, e se enveredou para a ficção, especialmente para crônicas. Publicou um romance, Sujeito oculto e demais graças do amor (Editora Record). Atua, desde 2005, como editora de livros pela Contexto. E mantém seu blogue de textos ficcionais: http://www.altamentecronicavel.com.br/

as vítimas secundárias da COVID-19, de Priscila Costa Campelo B. Alves

O legado oculto da pandemia que não entra nas estatísticas

26 de outubro de 2020: Há cinco meses recebi uma ligação desalentadora que me deixou completamente estática, sem saber o que fazer. Era minha tia, minha única tia que, em apelo desesperado, implorava por ajuda pois sofria com dores excruciantes em sua perna, provocadas pela falta de circulação e que levou à abertura de um pequeno ferimento, bastante doloroso, característico de pessoas portadoras de diabetes.

Minha tia só queria ser examinada por um médico, queria uma prescrição que aliviasse suas dores; as físicas e as da alma. Levava alguns meses presa em casa, isolada e com medo do algoz que ronda e ameaça humanos de saúde mais frágil. Idosos, imunodeficientes, obesos, diabéticos, pessoas pobres. Todos apavorados enquanto os mais saudáveis gozam de liberdade e desfrutam de uma pseudonormalidade.

A eugenia massiva dos anos 2020.

O medo da Covid e a depressão agravada pelo isolamento, a impediam de buscar tratamento em um hospital, como sempre fez em ocasiões anteriores, quando padecia das úlceras nas pernas. O martírio de minha tia estava apenas no começo, pois o tratamento em casa era inviável e pouco eficiente.

A evolução da úlcera associada às dores e nossa insistência, finalmente a convenceu a aceitar a internação hospitalar. Entre lágrimas e medo, exatos dois meses depois daquela ligação, minha tia se internava para dar início ao tratamento. Era dia 26 e dezembro, um dia após o Natal, que ela tinha implorado por ficar em casa.

O atraso no tratamento foi crucial para o avanço da necrose e minha tia perdeu o Tendão de Aquiles, o que a impedia de caminhar sozinha para sempre e lhe provocava ainda mais desespero. A depressão piorou e ela, que tanto gostava de conversar, já não atendia ligações, não aceitava sair da cama, não comia bem nem tolerava as sessões de fisioterapia e psicoterapia. O declínio físico e psicológico veio e, com isso, a evolução de outras úlceras, agora nos pés.

O medo da Covid-19 e de uma nova “mutilação”, como ela chamava o procedimento que removeu o seu tendão, a impediu de aceitar o retorno ao hospital. Embora tentássemos, de todas as formas, convencê-la da necessidade de internação, não havia acordo. Minha tia sabia dos riscos, mas tinha medo, medo de ter os pés amputados e cair em um abismo maior ainda de dependência, insegurança e vergonha. Preferiu esperar a morte chegar em casa. Durante todo esse tempo, chorava, clamava, pedia para morrer. A dor de viver “mutilada” e o medo do coronavírus pareciam maiores.

Embora quisesse, não pude fazer nada além de tentar, em vão, convencê-la. No entanto, como nenhum paciente consciente e orientado pode ser obrigado a submeter-se a tratamento médico contra sua vontade (Resolução 1995/2012 CFM), nos restavam os cuidados paliativos e esperar.

O avanço da infecção, a depressão e a falta de vontade de viver, conduziram à desorientação e perda de consciência, quando enfim pudemos interná-la. Com a capacidade dos hospitais extrapolando os 100% de ocupação, conseguimos, quase por milagre, uma vaga em um hospital particular na cidade. Era dia 20 de março.

Hoje completam 5 dias da partida da minha tia por complicações do pé diabético que evoluiu a um quadro de septicemia e lhe tirou a vida aos 65 anos. Minha tia não entrará nas estatísticas, para todos os fins de direito, ela não pertence aos 310 mil brasileiros que tiveram suas vidas interrompidas pelo coronavírus mas, certamente, estaria entre nós ainda hoje se não fossem os danos colaterais de uma doença que ameaça, como um serial killer, a todos aqueles que são considerados frágeis.

Embora não faça parte das estatísticas, assim como um paciente de Covid-19, minha tia morreu solitária, em um leito de UTI, longe de seus entes queridos e inconsciente. Cercada de poucos e, embora não fosse acometida pela doença, seu funeral foi igualmente triste e solitário, assim como seus últimos meses. Seus amigos e alguns familiares, também amedrontados, não puderam ou não quiseram estar presentes temendo aglomerações e contágio.

Como se não bastasse, a pandemia também me impediu de vê-la. Eu não pude estar lá, não pude segurar sua mão, nem ouvir suas últimas palavras. Não pude prestar minhas últimas homenagens à segunda mulher mais importante da minha vida. Ela se foi e, assim como outras milhares de famílias brasileiras, eu, minhas irmãs e minha mãe hoje choramos a perda prematura de mais uma vítima colateral da pandemia.

Ela não soube, mas a vacina para sua faixa etária chegou no dia de sua morte. Já era tarde.

Ela não vai entrar nas estatísticas, mas a pandemia levou minha tia. E como ela, muitas outras não entrarão, mas também fazem parte do rastro de sangue deixado pela Covid-19.

São as vítimas secundárias. As que morrem diariamente de outras doenças, de falta de assistência do poder público, de violência doméstica, de solidão e de fome.

Em memória de Maria Sandra da Silva Costa.

Espanha, 29 de março de 2021.

Priscila Costa Campelo B. Alves é advogada e consultora jurídica (Brasil) — OAB/PA 19.280. Especialista em Direito Público e Direito do Consumidor. Doutoranda em Estudos Migratórios e Relações de Gênero — Universidade de Granada, Espanha. Mestra em Governança e Direitos Humanos pela Universidade Autônoma de Madrid. Mestra em Igualdade de Gênero pela Universidade de Jaén, Espanha.

das viagens que se quer ficar, crônica de Luciana Rangel

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Do livro Está (quase) tudo bem (Folhas de Relva, 2020).

Do Rio de Janeiro a Belém são três horas e meia de voo. O mesmo tempo de viagem de Berlim a Lisboa. A mesma sensação de encantamento com o novo. Talvez a sensação de um alemão que chega na capital de Portugal. O avião pousou com chuva, ao fim da tarde. Conseguimos chegar ao Mangal das Garças, mas a situação se agravou e fomos presenteados com um temporal de boas-vindas. Era lindo, um calor e uma chuva que parecia que vinha do chão, pois te molhava por dentro da roupa. A água quicava no solo e subia pelas pernas. Não dói, nem incomoda. Estar inteiramente molhada em um calor sauna é algo adoravelmente relaxante. José era nosso motorista. Era magro, bronzeado, cabelos lisos. Um tipo elegante e comum. Não se incomodou com nossos risos e nossa água enlameando seu carro. Fingia que não via e nos contava histórias, dava dicas da cidade. Sabia muito sobre Belém, o clima e a hora da chuva.

Chove todos os dias no lugar mais lindo que eu já conheci. O andar acima do paraíso. Era um deslumbramento eufórico, completamente proibido aos jornalistas, muitíssimo recomendado aos seres humanos. A cidade era repleta de árvores frutíferas. Tinha cheiro de manga.

Belém é pobre, abandonada. A maior sorte do mundo terem se esquecido de Belém. Aquele centro intacto, casebres centenários caindo aos pedaços, desbotados, sujos, grandes contadores de histórias. Retratos do ciclo da borracha e da riqueza que por lá andou. Casebres com alma. Uma personalidade forte tem Belém. José nos apresenta a comida. Sofisticada, aromática. Filhote é um peixe delicioso, o peixe dos peixes. Vejo tudo superlativo, estou sendo seduzida pela terra e me deixo levar. Frutas que nunca mais vou lembrar o nome. Tem fruta no suco, no sorvete, na pizza. É tudo gostoso. Sinto-me onde deveria estar. O taxista não aceita ficar com o troco, me devolve. O garçom devolve uma parte da gorjeta, pois acha que dei muito dinheiro. Entro numa loja para comprar algo que nunca me faça esquecer a cidade. Escolho um CD de um cantor local. Acho muiraquitãs, a pedra protetora em forma de sapo, aos baldes. Quero presentear sobrinhas, irmãs, filhos. Acredito realmente que ela proteja e traga boa sorte. O cinegrafista acha graça da minha crença, mas não questiona. Me pede ajuda para comprar um presente para a namorada. Eu ajudo e tomamos o décimo sorvete do dia. Dessa vez de uma fruta que eu nem sabia que existia. Vamos cedo para o hotel, pois precisamos acordar às três da manhã para filmar o Mercado Ver-o-Peso. O maior, o mais antigo da América Latina. Durmo mal. Estamos no hotel mais caro da cidade. O hotel é horrível. Móveis da década de 1960 são de uma madeira quase podre. O quarto cheira a mofo. A cortina é desbotada. O banheiro é sujo. Azulejos velhos e quebrados. Tudo isso numa rede hoteleira que se diz quatro estrelas. Mas nada atrapalha a minha animação em estar na cidade e conhecer o mercado. Acordo cedo, tomo banho. Como todo mundo faz, vou para o bufê do café da manhã e como por horas. Frutas que conheço, frutas desconhecidas, tomo chá, tomo suco. Como um pão de coco. Provo de tudo para registrar com o paladar aquele momento único.

A equipe apareceu pontualmente na recepção. A movimentação do hotel àquela hora já era grande. A cidade acorda com a lua no céu e dorme com a chuva. Chegamos ao mercado às quatro horas, antes do amanhecer. Cravei em minha memória as centenas de cestas de açaí espelhando a luz da aurora. Um céu de estrelas de açaí. O cheiro, a cor forte do fruto. Centenas de homens negociavam. Precisávamos filmar rapidamente, pois as vendas aconteciam em um ritmo acelerado. Fotografo, aspiro o aroma dos frutos, provo. Ando entre as cestas. Faço meu trabalho com concentração e experiência. Quero viver intensamente aquele pedaço de terra e de gente. E vivo. O dia vai amanhecendo e vejo um pouco mais além das barracas, a neblina desaparece e vira um mundo de peixes, frutas, mangas e barcos. O açaí esvai-se dos cestos. Mas ainda há ervas, legumes, frutas. Começamos a circular pelos galpões. Entramos em um transe sensorial. Esqueço-me de ser eu. Não sou nada, sou apenas o que provo, o que sinto, o que cheiro. Há poesias nas paredes dos galpões. Artesanato. Me dispo do trabalho e me visto de viver. Sou uma vida no meio daquilo tudo. Sou uma mulher no meio da multidão olhando o artesanato. Uma carioca visitando Belém. Nunca fui tão brasileira como em Belém. Senti orgulho de ter um laço com aquelas pessoas. Lisonjeada por estar embalada por cheiros e sabores. Curti cada minuto, cada gota de chuva. No Mangal das Garças, uma reserva como toda reserva deveria ser, garças passeavam ao meu redor enquanto ligava para o meu pai. Conversamos por algum tempo. Ele estava fraquinho. Sentei-me numa pedra enquanto a equipe filmava. Choveu bastante e fingi não ter guarda-chuva. Fui libertada da dor, da indecisão, da culpa, fui lavada de minhas dores. Belém é a porta da floresta. Belém foi a porta que faltava para me abrir para as minhas fragilidades. Voltamos para o hotel para arrumar as malas e ir para o aeroporto, precisávamos voar para Marabá. De lá, pegaríamos um carro e viajaríamos horas e horas para chegar à tribo dos Xikrin. Desço mais cedo para o lobby, José já está lá. Faço o pagamento dele, agradeço. A TV alemã não dá gorjeta. Eu dou. Ele agradeceu e disse que naquele dia completava 50 anos. Dou os parabéns, meio sem graça. José é um tipo fino e apático. Para ele está tudo bem, tanto faz. Ele é tão profissional e educado que seus sentimentos não são necessários. Fica incomodado com o atraso do grupo. Um dos colegas perdera a hora. No fim deu tudo certo. Em produção de TV, tudo precisa dar certo. Nos despedimos de José. Ele me falou da vida na cidade com pouco entusiasmo. Em dois intensos dias de trabalho, era a primeira vez que realmente papeávamos. Contou-me que tem dois filhos e é professor de história formado, o que me explicava a sua eloquência. Está frustrado. Não me disse, mas seu desânimo em contar a história mostrou a infelicidade de estudar anos para virar motorista. Ele tem dois filhos, repete. A escola particular é cara. “Você estuda com eles também? Ensina história?” Ele responde irritado que não. Uma irritação sofisticada. Pergunto mais, pergunto se seria possível dar aula e ser motorista ao mesmo tempo. Pergunto se a mulher dele trabalha, pergunto por que ele não mudou de cidade. Pergunto, pergunto… e ele se despede aliviado, tirando apressado as muitas malas do carro. Ele não gostou de mim. Eu também não gostei dele. Era bom profissional, excelente. Contrataria de novo. Mas ele não sentia o cheiro de manga. José não suspirou com o mangal. José me lembrava o Brasil doído e real em um lugar que eu só queria o Brasil imaginário. Eu só queria a fantasia. Acabou. José ficou em sua vida e eu segui meu roteiro. Tinha datas, horários, endereços, tudo super bem orquestrado, diferentemente da minha vida pessoal, completamente desestruturada.

Luciana Rangel é jornalista e escritora carioca. Mora na Alemanha desde 2005. Em sua trajetória, soma experiência na imprensa internacional e nacional. Suas produções sobre história, política e cultura foram premiadas pela União Europeia e TV Globo. Recebeu também o Prêmio Petrobras pelo documentário Brasil: País da saudade. Como autora, participou da antologia bilíngue Saudade é uma palavra estragada (Bübül Verlag), de Escrever Berlim (Editora Nós) e do Salão de Outono do Teatro Maxim-Gorki de Berlim. É doutoranda do Instituto Latino-Americano da Universidade de Bielefeld.

memórias do boi, de Raquel Wandelli

O boi, o cabresto, a manada. Obediência no pasto. Vida besta, vida de gado.

O chicote que muda o destino. A mão que queima a ferro os cornos, mal eles despontam no boi ainda menino. A mão que marreta, mutila o bicho-moço, secreta o sêmen fecundo. A mesma mão que dá farelo e feno tortura e capa. Conduz e amansa a boiada.

Gado, cabresto, guampudo, boi ladrão, corno manso, rês. Reificar, coisificar. Coisa para ser comida, rés-do chão…

Há muito tempo o gado vem sendo injustamente usado como alegoria de povo ludibriado. “Povo marcado e povo feliz”, diz a canção.

Essa mania cada vez mais em voga de fazer escárnio alheio atribuindo ao boi comportamentos de massa e de submissão já foi longe demais.

Pra começar, não encontra argumento objetivo. O homem que arrota grandeza é o animal mais vulnerável, mais desprotegido quando vem ao mundo, como escreveu Montaigne. Aquele nascido desprovido de cascos, patas, penas, pelos, nadadeiras, asas, chifres, espinhos, garras, dentes, presas, enfim, entregue sem defesa à sua incompletude e miséria inicial.

O bezerro, ao contrário, cai da placenta e em segundos já está de pé, alerta sobre as quatro patas. Cabeça ereta, esperto como ninguém!

Por que esta destreza provoca a ira do único ser que conhece a vergonha e a nudez, “o único animal abandonado nu sobre a terra nua”? Na palavra se perpetua a barbárie humana, só porque a liberdade e a coragem do bicho lhe batem na cara.

Que dicionário é capaz de trazer do boi o sentido que escapa à definição humana? Que não seja a imagem da sua própria destruição? Como recusar a perversidade humana na linguagem?

Seria preciso criar um dicionário das bestas que foram, que seriam, que teriam sido.

Ora, o boi não nasceu boi. Não nasceu ao lado da Bíblia, nem da bala. Nasceu livre e indômito.

Sua natureza íntima, bravia e altiva nunca foi tocada pelo vernáculo.

O boi é um touro capado. Podado como uma árvore. No alto, nas estruturas aéreas e nos repositórios baixos.

A maioria dos homens modernos só o vê nas gôndolas e freezers de supermercado. Mas quantos o viram dançando livre sob as estrelas antes da rês se chamar picanha, maminha ou alcatra?

Ninguém quer saber como é degolado ou castrado o boi antes de chegar à butique. Marrete, faca, bisturi, canivete, alicate, injeção química. As bolas presas entre as pernas amarradas, disponíveis para serem extirpadas ou esmagadas. Quase sempre sem anestesia. Dias, semanas, meses de dor… Febre, inflamação, bicheiro.

Por fim morre o touro, nasce a besta domada! Garantia de carne macia.

De imediato, os humanos cirurgiões jogam os miúdos à brasa e devoram a iguaria, arrotando a força do animal exilado do mais belo de si, para sempre apartado de sua potência.

Como dizer aquele que foi sequestrado de sua alma selvagem? Aquele que ainda não nasceu palavra?

Seria então preciso chamá-lo de ex-touro.

E ser capaz de dizer o que restou dos galhos decepados, do desejo arrancado, até se tornar essa vida sem som e sem fúria. Vida sem pulsão, vazia de vaca.

O que restou do touro além da marca do dono humano, humanozinho, demasiado humano?

Tiraram o boi pra palhaço, pra guindaste de obra, pra judas, pra danação… Mas nunca perguntaram ao boi se a vida de gado é feliz, construindo as cidades, a tal civilização.

Nunca o convidaram para o churrasco, nunca o consultaram se queria ir à Farra, como lembrou um dia a filósofa da ética animal, Sônia Felipe…

Cavalgadas, cavalhadas, touradas, feiras, vaquejadas, rodeios: a massa humana se diverte nessas farsas, exerce a fúria dominadora contra o deus que vulnerabilizou. Animal do campo, prisioneiro de guerra.

Quem o homem leva a esses campos de concentração? O animal que ele segue sendo, o outro dele mesmo?

Não é a lírica de Orfeu, nem a voz dos anjos que acorda o povo bovino na alvorada;

quando toca o derradeiro berrante, parte para o abate a vida-que-pasta-a-morte-enganada…

Mas eis que o impulso ancestral nunca morre de todo. De súbito, um frêmito, um estrondo, um sinal de perigo podem trazer de volta o totem adormecido:

a boiada de repente dispara e quando o ex-touro reencontra a lembrança úmida das matas, capitão nenhum mais controla a manada!

Quem se arrisca no território do boi enfrenta um índio bravo subindo acima das ancas. Como um grande cacique, cruza os braços, ajeita o cocar e declara guerra. Defende com fúria a sua gente! Bem erguido sobre as quatro pernas, endurece o queixo, franze o cenho. Bufa, espuma, uma, duas vezes o guerreiro. Levanta poeira, aquece a partida nas patas anteriores, ensaia o coice com as traseiras… E de pronto avança sobre o forasteiro.

Lá no coto do bezerro desmamado, no esconderijo do olho, no resto de guampa, no desejo banido, revive o animal que um dia seria.

O que o homem sabe do boi só o sabe desde si mesmo. E o sentido para nos limites da maldade antropocêntrica…

Nenhuma palavra jamais tocou o deserto do boi… Nunca a língua do homem decifrará o silêncio silvante dos olhos, esse brejo de melancolia onde mergulha o ser violentamente humanizado.

Os olhos do boi guardam o segredo de quem não conhece um eu, mas dentro de si enxerga o mundo, como escreveu Clarice Lispector — a literatura desmentindo a filosofia antropocêntrica que define o animal como um ser pobre de mundo.

Poucos olharam nos olhos de um boi, além dos poetas e dos filósofos…

Além da menina que perguntou à mãe: — Se o boi não pensa, para que ele tem olho?

Alguns foram reconhecidos pelo seu boi na noite do açougue, na hora do abate. E saíram desgarrados pelo mundo, como o ex-boiadeiro da célebre trova sertaneja “Herói sem medalha”.

Outros, como o boiadeiro do conto de Cora Coralina, sentiram na carne servida o gosto de gente, ao descobrir a vingança do irmão contra o seu boi mais querido — herança do pai enterrado na véspera.

Quantos sentiram a dor-criança, ao ver seu boizinho de estimação na mesa de domingo, a dor-caipira que o homem urbano não tem?

Seria preciso ver o mundo como um boi o vê…

Se um poeta visse o homem pelos olhos de um boi, como Drummond viu, os homens seriam de poucas montanhas e calados de gritos agônicos. E carregariam nos olhos tristeza e crueldade, “difícil verdade de ruminar”.

Em vez de falar sobre o boi, pensar como o boi. O animal como método e sintaxe de vida. Em Nietzsche, o estômago da vaca como mecanismo da ruminação, ideal para o pleno pensar: engole, regurgita e torna a mastigar para só então deglutir.

No palco da palavra, ausenta-se sempre o ser-outro, o estrangeiro. Mas o significado não encontra o signo, a imagem não encontra o galope: o animal foge ao sentido, palavra animada (animot), como escreveu Francis Ponge.

Quando ele volta, na tourada, quando apela contra nós, ele quer dizer: “Eu sempre vou ser mais outra coisa”.

E então o boi ganha asas, boi alado, boi mítico, incandescente das narrativas mitopoéticas que tratam os povos da culpa pela antropofagia e pela incomunicabilidade com os animais. A cratera humana.

Quem cura não é o boi calado que recebeu Jesus no presépio, mas o boi falante da fábula, o boitatá, o boi-bumbá, o boi de mamão, boi dos indígenas, das florestas e do Oriente, povos que vivem o seu imaginário e por isso nunca serão gado.

Bois criados para a morte congelam na letra morta das metáforas. Deles, a poesia só pode dar o testemunho de um silêncio. Acabam-se na palavra gasta, sem animus. Restam-lhes uma sobrevida adestrada de boi que só pode ser boi, sem o devir anônimo das bestas incapturáveis, como no poema de Astrid Cabral:

Mas como nomear ou batizar
os bois que não são bois?
As inéditas e fantásticas
bestas que infectam-infestam
nossos prados sem cerca
com seus anônimos tropéis
urros e berros insólitos
suas bostas como bólidos
de planetas ultra-remotos?
Bois que por não serem bois
afivelam asas de dragões
e não consentem que palavra
alguma lhes capture as patas.

O boi é da arte, da infância, da filosofia um amigo. Com elas, divide a doçura, a sensação mesma de existir que faz dos homens seres potentes e felizes, conforme Aristóteles: “A existência é desejável porque se sente que esta é uma coisa boa e essa sensação (aisthesis) é em si doce”.

A doçura do amigo boi contagia a escritura que não quer ser rei, nem boiadeiro, nem cavalheiro. Ela quer compartilhar com ele a doçura da vida. Com as posturas de corpo secretas, que não separam as atitudes dos pensamentos, o animal-palavra produz um tipo de subjetividade opaca. Ele opõe uma barreira de cetim ao sentido, uma “objetivação da doçura” que compõe a ideação das pessoas no mundo. Um mundo onde as sintaxes de vida todas resistem e escrevem — elas vivem.

Daí Agamben deriva o conceito de amizade para o compartilhamento desse gosto pela vida. Mas a amizade não é o que define a comunidade humana “em relação àquela animal”, como propõe o pensamento ainda encharcado de antropocentrismo. Justamente a amizade é o que transborda da existência inumana para o mundo, aquilo que Clarice chama a graça de viver — viver de graça —, a felicidade do vivo.

Um ramo de alecrim dourado tremulando ao vento, a lembrança do azul sobre os caminhos orvalhados… A leveza do pássaro que lhe pousa no lombo. O boi às vezes sonha e se esquece de pastar…

Desde Coração Selvagem, o primeiro romance, Clarice Lispector descobriu esse “poder-de-vida” inumana que transborda na escritura:

“A paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar. […] Tudo é um, tudo é um…”

Desde Joana-menina soube que “a confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma”.

Só a poesia inventa um lugar para um boi gay, Ferdinando, um touro romântico. Há sempre um boi menor, à margem dos rodeios, que precisa de um lugar ao sol no domingo da literatura. O boi malhado, o boi de piranha, boi doente que vai à frente para poupar da morte os sadios que vêm atrás.

A poesia então grita, como em Rimbaud: sou um poeta, um negro, um índio, um eunuco, uma mulher apedrejada, um boi!

Mas ainda não se foi longe demais. Não basta o animal apontar o que o poeta tem de melhor. Seria preciso inverter a posição entre o ponto de vista humano, que invariavelmente estabelece significados para o animal, que é por hábito o depositário de um sentido.

Só resta então repetir o gesto de Clarice em seu “Seco Estudo de Cavalos”, e pedir que o animal me signifique.

Agora eu vejo o boi.

E me reconheço, terrivelmente humana…

Mas num piscar de olhos, misteriosamente animal:

o boi que sinalize o que sou.

Raquel Wandelli é jornalista, escritora e ensaísta, doutora em Literatura Brasileira, professora da Unisul, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Artes Poéticas e Mestiçagens da PGET/UFSC, autora das obras Leituras do hipertexto: viagem ao Dicionário Kazar e Existe, logo escreve: devires do inumano na arte-literatura. Email: [link]

sorriso amarelo e a luta antirracista ou os ‘tamagotchis’ da branquitude, de Henrique Yagui Takahashi

No dia 25 de maio de 2020, Derek Chauvin assassinou George Floyd após asfixiá-lo com o seu joelho. O primeiro estava armado, o segundo, desarmado. O primeiro era um policial com um contingente de 3 policiais para apoiá-lo, enquanto o segundo, um cidadão comum que estava sozinho. O primeiro é um homem branco, o segundo, um homem negro. Ambos, estadunidenses.

Durante os 8:46 minutos, havia um policial que os observava calado. Floyd agonizando sob o joelho de Chauvin. Calado porque era o seu trabalho. Calado porque não tinha nada a ver com ele. Calado porque era mais um dado para a estatística.

Este policial é Tou Thao, da etnia Hmong, imigrante oriundo do Laos, no Sudeste Asiático.

Um imigrante que trabalhou duro em busca de uma vida melhor, sem reclamar. Esta história não te parece familiar?

Tou Thao é um de nós. Não porque ele tenha as mesmas feições, mas porque é um imigrante que buscou uma vida melhor. Ele poderia ser o teu bisavô, avô, pai, tio, primo ou irmão. É o imigrante que sob qualquer custo buscou sua ascensão social. Ascensão que é sinônimo de assimilação. No caso brasileiro, não seria a assimilação festiva e banal. Não é somente o “japonês que gosta de samba”. É a assimilação que se integra à estrutura do mito da democracia racial.

Os amarelos ocupam uma posição estratégica dentro do gradiente racial brasileiro entre brancos e negros. Por não pertencermos à identidade nacional brasileira, somos considerados os “estrangeiros perpétuos”. Sempre que me perguntavam: “De onde você é? Da China, do Japão ou da Coréia?”. Respondia calmamente: “Do Brasil”. O emissor da pergunta me olhava inquieto, tentando digerir a resposta que lhe havia acabado de dar e me perguntava novamente: “MAS DE ON-DE VO-CÊ RE-AL-MEN-TE É?”. Respirava fundo e dizia: “BRA-SIL”.

Esta posição de ser o estrangeiro perpétuo parece irrelevante, porque pode soar como uma “simples brincadeira”. Contudo, por detrás desta “brincadeira”, há a constituição dos asiáticos-brasileiros como engrenagens que reforçam o racismo estrutural.

O nome para isto é o conceito de “minoria modelo”. Por sermos os eternos estrangeiros, a única forma de sermos assimilados pela sociedade brasileira foi trabalhar muito. Trabalhar mais do que o salário recebido. Estudar mais do que o solicitado. Trabalhar sem se queixar. Estudar, mas algo que dê dinheiro. Eles nos deixaram ser doutô, mas calados e resignados.

Ou não diria totalmente calados, pois expressamos nossa opinião em um caso particular.

Os asiáticos são instrumentalizados pela branquitude para ser o seu habeas corpus racista. Alguns de nós afirmam orgulhosamente esta lógica de desumanização, bradando: “Eles são preguiçosos! Nós trabalhamos duro!”. Este é um dos raros momentos que você vai ver um “japonês” expressar-se politicamente em público.

Em 2017, na sede da Hebraica no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro proferiu um discurso que ilustraria a “minoria modelo”: “Alguém já viu algum japonês pedindo esmola? É uma raça que tem vergonha na cara!”. E complementou, “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”.

Não é por um mero acaso que Bolsonaro proferiu este discurso eugenista, referindo-se especificamente ao quilombo. Ele quer diminuí-lo, pois ele sabe de sua potência de transformação radical na sociedade brasileira. O quilombo representa o símbolo de agência política e luta por dignidade humana protagonizada pela comunidade negra.

Aqueles de olhos puxados que apoiam o Bolsonaro em coro representam o duplo ressentimento da diáspora asiática. O ressentimento do poder hegemônico da branquitude e o ressentimento do poder de resistência da negritude. Talvez venha daí a origem do “sorriso amarelo”.

Eu tenho uma tradução particular para o conceito de “minoria modelo”. O definiria como “bicho de estimação da branquitude”. Onde passeamos com o nosso dono três vezes por semana e comemos a ração Pedigree Frango Orgânico com Espinafre. Temos o nosso lugar para fazer xixi e cocô. Temos uma casinha no quintal feita de pinho e uma almofada da IKEA na sala de estar. Porém, se fazemos algo que não agrada o nosso dono, ele bate no nosso bumbum e diz: “Feio! Isso é muito feio!”. Nos escondemos calados, com o rabo entre as pernas.

A “minoria modelo” gera uma forma de existir que chamaria de ontologia do pastel de flango. A expressão “pastel de flango”, construída pela branquitude, significa ao mesmo tempo: “você me serve” e “você nunca será um de nós”. Por isso a diferença entre “flango” e “frango” não é apenas uma questão de correção gramatical, mas uma subserviência ao modelo hegemônico de existência.

Você pode me perguntar: “Se você critica o Brasil, por que você não volta para o seu país?”. Primeiro, já respondi esta pergunta. Segundo, não critico a brasilidade para defender os nacionalismos asiáticos. A China e o Japão ocupam historicamente na Ásia a mesma posição imperialista dos EUA e Europa no Ocidente.

Peço licença a José Martí, mas por detrás de patriotismos como o brasileiro, o japonês, o cubano, o estadunidense ou o chinês, há genocídios. Não é à toa que o filho do rei português que virou imperador do Brasil por ME-RE-CI-MEN-TO bradou: Independência ou Morte! Ou mesmo, a famosa frase do comandante Che Guevara: “¡Patria o Muerte!”. Ambos sinalizaram que não há pátria sem morte. O auto sacrifício como sinal de heroísmo demonstra que não há ação política patriarcal sem a aniquilação de si e do outro. Apesar de Dom Pedro I e Che Guevara estejam em espectros políticos diametralmente opostos, ambos, argumentam o uso político da morte em defesa da pátria. O sacrifício do herói com sua pátria é, em última instância, a aniquilação para a manutenção patriarcal do poder. Não é por coincidência que a origem etimológica de pátria em latim é patrius, terra dos antepassados aka terra do pai.

Com as manifestações do Black Lives Matter eclodiram vários movimentos em defesa de uma solidariedade antirracista. Sem nenhuma surpresa, vi alguns brancos progressistas tupiniquins declarando que as marchas são manifestações românticas e impulsivas. Dizem não se comover pelo “surto de empatia”. Em resumo, formularam as mais variadas explicações para argumentar que seus privilégios como herdeiros da Casa Grande no Brasil não se estenderiam em terras estadunidenses, por este motivo, infelizmente, não poderiam ir às manifestações.

Na hora “H”, o branco progressista fala, fala e fala (porque tem muita visibilidade para falar), justificando com termos acadêmicos bem precisos o seu medo da soberania popular. Tem medo porque ele precisa que haja um sistema de opressão para a manutenção de seu privilégio.

No horizonte utópico de transformação social, não haveria nem a esquerda patriarcal nem o progressismo branco. As feministas latino-americanas, em especial as feministas negras brasileiras, vêm construindo há décadas esse modelo de solidariedade antirracista, antipatriarcal e anticapitalista. Não é como algum de nós, que se deparou com estas lutas somente agora.

Para citar algumas dessas intelectuais-militantes: Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Rita Segato e Silva Rivera Cusicanqui.

Por isso, Marielle Franco mobilizou e mobiliza tanta gente. Marielle como mulher, negra, lésbica, acadêmica, vereadora e de favela não representa apenas uma pessoa individual com todas estas identidades. Marielle Franco, parafraseando a antropóloga argentina Rita Segato, é o símbolo vivo da política como poder coletivo e solidário.

O assassinato de Marielle simboliza a política de aniquilação constitutiva da branquitude, do patriarcado e do capitalismo. A lógica de extermínio representada hoje por Jair Bolsonaro.

Elas nos mostram como o pensamento feminista construiu um modo de pensar o mundo criticamente, não se restringindo à vagueza da abstração autorreferente, produzindo assim uma ação prática. Elas que me ensinaram os sentidos das relações interseccionais que me atravessavam como homem amarelo emasculado que aspirou integrar-se à minoria modelo. Este pensamento produz uma ação com reflexão, ao mesmo tempo estrutural e existencial, do mundo.

Até quando seremos os tamagotchis da branquitude?

Henrique Yagui Takahashi nasceu em São José do Rio Preto, interior do estado de São Paulo. Possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. Foi professor de sociologia e filosofia no ensino básico e superior no Brasil. Atualmente é doutorando em Estudos Literários e Culturais Latino-americanos pela The Ohio State University. Integrante do podcast Amefrica Landina, um espaço de discussões em português, espanhol, portuñol e spanglish sobre América Latina.

Brasil: (im)possíveis diálogos #5

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

As reinvenções de si e a vulnerabilidade como resistência

Por Raimundo Neto

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Vitor Rocha

O medo ensinou-me muito sobre mim. Não havia uma dinâmica de perversidade na casa em que nasci, sempre prestes a cair e a ensinar a todas as mulheres e poucos homens que o amor era capaz de arrancar pedaços. Existia um aprendizado de que os sacrifícios e os eternos papéis parentais/filiais eram imutáveis, e que todo amor devia prender, sufocar, desgastar e depois morrer. Parecia-me que o amor era uma porta sempre fechada, e dentro, um lugar escuro e apavorante.

Nasci numa cidade rural do interior do Piauí. Batalha. Eu e alguns dos meus amigos crescemos no armário. Ou fomos empurrados para lá. As cenas de berros de “viado”, bicha, puta, mulherzinha, baitola, foram persistentes ao longo da nossa infância. As escolas que frequentamos foram os espaços mais cruéis. Não entendíamos o que tornava os meninos/jovens/homens incontroláveis em suas raivas, aqueles olhos famintos, aquelas mãos duras, aqueles gritos estridentes.

Nosso corpo tinha gestos desconhecidos para nós. Só começamos a perceber muito tarde que aqueles gritos/risadas/berros chegavam de fora também porque éramos bichas no Piauí. A bicha era tudo que um homem masculino-macho jamais seria. Uma bicha era/é um corpo tipo como promíscuo, sujo, vil, que corrompe, seduz; pernicioso. A experiência da bicha começa(va) e termina(va) no abjeto, até morrer, até hoje.

Éramos crianças. Não fazia sentido os gritos, as risadas dos outros sobre nós. Eles diziam algo sobre nós que era incompreensível. As injúrias começavam na escola, percorriam reproduzidas pela vizinhança, circulavam em casa, e voltavam para nós, aterrorizadas. Tudo o que não entendíamos sobre nós, em algum momento, autorizou jovens homens mais velhos a, além dos gritos, a usarem nosso corpo para algo que, neles, pelo que diziam, era incontrolável. Foi o período da vida em que nós, crianças, bichas, fomos mastigados, tocados, virados ao avesso, sangrados, expostos, pelas mãos, língua, e tudo mais que aqueles homens tinham em seu domínio. E eles contavam isso para outros jovens homens mais velhos. Isso só parou quando alguns de nós trancaram-se em casa, no armário. O que chegava a ser ridículo. Era impossível escapar do que éramos.

No meu caso, minha mãe sabia de algo. Acho que por isso gritava tanto “Fala como homem, caminha como homem, seja homem”. Dos treze aos vinte e dois anos, isso tudo continuou em outras escalas e aspectos. As piadas tornaram-se mais amplas. As mãos ainda vinham de meninos mais velhos que eu, e depois as injúrias circulavam nas rodas de conversas/fofocas, sobre a bicha que tirava as melhores notas na escola, mas que era bicha.

Aos vinte anos eu sabia que queria ir para longe, ou simplesmente sumir. Tentei morrer duas vezes. Para ir embora eu precisaria aprender a contar outra história sobre a minha vida; eu precisaria que as narrativas sobre mim fossem escritas por mim. Mas como se escreve sobre si e sobre o mundo com medo? Eu achava, mesmo, que era preciso apenas coragem, integral e permanente, para escrever-me.

Enquanto vivi na casa do meu nascimento, o medo era de que alguém me arrancasse do armário, o lugar onde supostamente eu estava seguro. Mas, se era esconderijo, por que todas as pessoas diziam aspectos graves sobre mim que eu desconhecia? Afeminado, veado, molenga, maricas, putinha, frouxo, bicha, bicha, bicha, bicha.
Eu tinha medo que tudo caísse, que todas as pessoas da minha casa morressem, as mulheres que me nasceram. De Batalha a Teresina, meu caminho foi entre injúrias e os cuidados maternos. Uma mãe preocupada e afetiva, e que se incomodava com aquele filho que jamais seria o homem que disseram que ela deveria esperar; porque também esperavam muito daquela mãe como mulher. O discurso das casas vizinhas à nossa, da igreja, da escola, esperava muito de mim e da minha mãe.

As experiências que meus desejos provaram foram me levando para além do corpo. Pessoal e profissionalmente. Eu começava a entender que família não era apenas a ideia mantida e sustentada por muitas instituições, definindo e organizando corpos, desejos, sexualidades e identidades; que dentro daquele espaço familiar acontecem muitas violências, provocando tantos medos; que o amor não brotava com naturalidade como se houvesse uma essência registrada nos genes. Havia algo muito mais complexo. Havia outros tipos de relações e afetos, construídos, elaborados, sobrevivendo para além das naturalizações e essencializações de mãe/pai/filhos/filhas/homem/mulher.

Nesses caminhos, eu não largava a Literatura. Descobri primeiro um refúgio, depois entendi que podia ser uma saída. Eu me escondia nas bibliotecas que fui descobrindo. Foram os únicos lugares em que me senti protegido. Todas aquelas narrativas, todas aquelas palavras. Depois Guimarães Rosa, Mario Faustino, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Cassandra Rios, Michael Cunningham, Hilda Hilst, Virginia Woolf, Oscar Wilde, João Silvero Trevisan, James Baldwin. Ao ler todos aqueles corpos e afetos, que eu nunca tinha lido antes, senti alívio, alegria, desespero, angústia; senti que era possível seguir sem morrer sempre um pouco mais.

Depois, muito depois, fui pelos caminhos da escrita. Inventei pessoas e futuros. Havia medo em todas aquelas histórias. Eu escrevia invenções sobre mim e, só muito depois, entendi que era sobre outros também. Foi assim que Literatura, memória, vivências e escrita, cruzaram-se diante e dentro de mim, encontrando meus medos. E assim comecei a perceber que, de algum modo, eu não escrevia sozinho. Havia todas as memórias, as minhas e as das minhas amigas, nossas histórias que se cruzaram; havia as casas que caíram e as famílias tornadas ruínas; havia muitos gritos e pedidos de pessoas antes de nós, especialmente as bichas e corpos abjetos invisibilizados. Havia todas as histórias de medo que nos antecederam. E essa mesma escrita do medo proporcionava encontros, quando pessoas desconhecidas se reconheciam naqueles medos.

Entendi muito mais tarde que voltar para o armário era impossível, e também um ato político, como bicha que conquistou alguns privilégios. Voltar para o armário seria me ocultar, e isso reproduziria um princípio heteronormativo de gestão de subjetividades, corpos e desejos.

Em São Paulo, algumas injúrias e violências ocorreram. Eu sentia esse medo me acompanhando, e acompanhando pessoas próximas a mim. Comecei a refletir que o medo também foi um dos caminhos para as minhas lembranças.

Do armário onde vivi durante anos, até a saída da porta da minha primeira casa, depois chegar a São Paulo e suas diversidades, foi um caminho longo; construir uma linguagem contada pelos sentidos daqueles Brasis que eu vivia e também pelo corpo-bicha escapando das normas foi um dos modos de ser político e resistência. Foi inicialmente um processo um tanto intuitivo de investigar escrita, identidade, memória e afetos.

Quando me aproximei das leituras de Didier Eribon, Butler, Orham Pamuk, Foucault, Silviano Santiago, Elvira Vigna, Nicole Krauss, James Baldwin, Toni Morrison, comecei a refletir sobre identidade, escrita e literatura:

1. “A injúria não é apenas uma fala que descreve. Ela não se contenta em me anunciar o que sou. Se alguém me xinga de ‘viado nojento’ (ou negro nojento ou judeu nojento), ou até simplesmente de viado, ele não procura me comunicar uma informação sobre mim mesmo. Aquele que lança a injúria me faz saber que tem domínio sobre mim, que estou em poder dele. E esse poder é primeiramente o de me ferir. De marcar a minha consciência com essa ferida ao inscrever a vergonha no mais fundo da minha mente. Essa consciência ferida, envergonhada de si mesma, torna-se um elemento constitutivo da minha personalidade. A injúria me diz o que sou na medida em que me faz ser o que sou.” Para Eribon, um dos princípios estruturantes das subjetividades gays e lésbicas consistiria em procurar os meios de fugir da injúria e da violência, que isso costuma passar pela dissimulação de si mesmo ou pela emigração para lugares mais clementes.

2. O resultado das últimas eleições revelou (revelou para quem?) os conservadorismos e violências sempre presentes. Ou talvez pessoas privilegiadas em suas vivências cis, masculinas, brancas, hetenormativas, sudestinas, tenham percebido com outros olhos e ouvidos tudo que era feito e dito sobre gays, lésbicas, homens e mulheres trans, travestis, negros, mulheres cis, índias e índios, por exemplo. Mas se noticiou aparentemente mais casos de violências especialmente contra pessoas LGBTQIA. Brasil, o país que mais mata LGBTs no mundo, provavelmente continuaria liderando esse ranking, infelizmente.

Refletindo sobre ideias de Orham Pamuk e Nicole Krauss, concordo que um romance é uma segunda vida, e que quando se escreve um romance descobre coisas sobre si mesmo que eram desconhecidas. Para Nicole Krauss, precisamos ter algo a dizer sobre quem somos, e também por isso estamos escrevendo o tempo todo sobre o fardo das nossas heranças, o que nos disseram/contaram sobre nós; propondo a ideia da escrita como ficção do Eu, quando assumimos também reescrever quem somos, e contar as narrativas sobre nós de outro modo: contar a história sobre nós do nosso ponto de vista.

3. Ouvi a escritora Elvira Vigna falar sobre seu processo de escrita uma vez, pessoalmente. E acompanhei tudo que foi publicado, e também tudo que foi dito por ela sobre os seus processos de escrita em entrevistas e vídeos. Ao ser questionada sobre literatura e escrita, ela dissera, entre outros detalhes, que só escrevia o que lhe batia muito forte, o que a fazia doer: “Eu exijo de mim uma presença emocional brutal, porque senão não serve. Se eu quero chegar ao outro, eu tenho que me apresentar como apta emocionalmente a chegar perto desse outro. Escrever é um troço duríssimo, te modifica. O que eu busco é o humano. Para mim, Literatura é uma forma de você de dividir, compartilhar experiências humanas.”

Partindo disso e do medo das violências, das injúrias como produtoras/definidoras de subjetividades (particulares e coletivas, resguardadas as devidas interseccionalidades), das memórias de infância, vivências e marcas, das possibilidades de assumir as narrativas sobre o Eu e (reinventar-se) e esse devir e potência, e da escrita e literatura como uma forma de proporcionar encontros, iniciei esse caminho do que também poderia chamar de investigação e produção de algum tipo de linha de fuga, por assim dizer. Embora o começo disso tudo tenha sido intuitivo, só muito depois se tornou algo mais consciente e elaborado.

Assim, se a linguagem inventa mundos, faz sentido dizer que escrever sobre corpos, identidades, sexualidades divergentes das normas vigentes, sobre deslocamentos e diferenças, é possibilitar que outras pessoas se aproximem dessas vidas tão diversas e que durante muitos anos estiveram escondidas e silenciadas, o que possibilitou criar as linguagens e narrativas das personagens que escrevi numa casa/família desmoronando, aprendendo o amor pelo sacrifício e violência, um filho “bicha” que tenta escapar; a linguagem das personagens tentam inventar-se para além do que a norma diz que são. As personagens estão também inventando outras casas, outras famílias e afetos: Todo esse amor que inventamos para nós.

De algum modo, comecei a refletir que a escrita e essa Literatura poderiam ser também processos de investigação, em que as vozes contando as narrativas começavam a se contar na minha história, e por isso a marca autobiográfica (mas talvez não confessional). Deborah Levi me ajudou a pensar um pouco sobre isso com seu ensaio “Coisas que não quero saber”, quando disse que quando uma escritora leva uma personagem para o centro de sua investigação literária (…) “e essa personagem começa a projetar sombra e luz por toda parte, ela precisa encontrar uma linguagem em parte relacionada ao aprendizado de como se tornar um sujeito e não uma ilusão, e em parte relacionada ao desenlace de como ela mesma foi construída pelo sistema social, antes de tudo.”

Contar ficções buscando quais personagens contarão aquelas narrativas é pensar também as reinvenções que somos, e pensar como fomos construídos socialmente, que sistemas criaram normas reguladoras de famílias e corpos, produzindo “anormalidades”, dissonâncias, violências, e muito medo.

Considero, portanto, que escrever sobre o medo é narrar diferenças e reinvenções de si, é contar o caminho do armário até o cosmopolitismo aparentemente dissidente de uma cidade grande, é construir narrativas em que as personagens contam-se diversas, portas abertas, inventando outros afetos, escritos ou não por pessoas que se identificam a partir dessas dissidências. Escrever sob o medo é também promover encontros, resgatar humanidades, que é uma das muitas possibilidades da Literatura e da escrita; promover encontros entre diferenças, entre pessoas, e que esses encontros possibilitem outras descobertas e outros caminhos.

Escrever, mesmo com medo, como a possibilidade de transformação, não para produzi-lo ou reforçá-lo, mas para enfrentá-lo, à medida que nos reinventamos. Escrever o medo para resistir.

O meu medo nasceu no armário. Havia uma instituição contando algo sobre o meu corpo e meus afetos, dizendo-me inadequado. As vozes ao redor aprenderam sobre corpos abjetos e empurraram tantas outras bichas para dentro do armário ou para dentro de casa, aquelas que sobreviveram. O medo vive dentro de casa também, reproduzido, reproduzindo, camuflado como amor.

Escrever o medo é assumir o que nos falta, o que nos dói, partindo de incertezas, mas a observar urgências e dissidências indomesticáveis, e entregar-se ao impossível; é reinventar-se e seguir; é seguir rumo ao Eu em construção que sou/somos e que pode ser tantos outros e outras. É inventar estéticas com as palavras, comunicando-se com todas as produções artísticas nos muitos Brasis que existem, é também questionar regimes de identidade à medida que esses criam silenciamentos e marginalizações.

Escrever o medo é assumir os riscos, incorporar resistências e inventar uma casa nova e outros afetos; é inventar o amor que queremos para nós, todos os dias, antes de quase morrer mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, todo dia.

Escrever sob o medo, com o terror à espreita, é também criar linhas de fuga, buscar coerência entre falar/agir, manter encontros potentes e honestos com pessoas e afetos, a assumir vulnerabilidades para identificar modos de resistir, e seguir, seguir, seguir.

Raimundo Neto nasceu em Batalha, no Piauí, onde viveu até 2014. Venceu o Prêmio Paraná de Literatura com o seu livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós (Editora Moinhos), e foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura com romance inédito. Integra a antologia brasileira escritas por LGBTQs A resistência do vaga-lumes (Editora Nós) e a coletânea de contistas piauienses Caçuá (Fundapi). Foi colaborador da revista eletrônica São Paulo Review. Mora em São Paulo e trabalha como psicólogo e garantia de direitos de crianças e adolescente no Tribunal de Justiça do Estado.

a economia do céu, de Dirce Waltrick do Amarante

Sentada na fileira 14 de um avião que ia de Brasília a Florianópolis, participei, gratuitamente, de uma palestra motivacional proferida pela colega da poltrona ao lado. Com muita segurança e propriedade, a palestrante formulou, em quase duas horas de voo, as teses mais diversas: “devemos reconhecer nossas inteligências e desenvolvê-las” ou “somos a imagem e semelhança de Deus”. Não era a mim que ela se dirigia, mas à colega da poltrona ao lado da dela. Contudo, foi-me impossível escapar da sua ladainha, pois o voo estava cheio e eu não tinha para onde ir. O fato é que o que ela dizia, em tom bíblico, parecia chegar aos meus ouvidos antes de chegar aos ouvidos de sua real plateia.

A palestra não começou sem um introito em que a palestrante contou um pouco de seu percurso até aquele momento: era médica, mas a “medicina havia se tornado ‘pequena”’ para ela, depois que descobriu sua missão nesta vida, e sua missão era ser influenciadora. Explicou que temos os influenciados e os influenciadores e que, quando somos fortes, inteligentes e capazes, não nos deixamos influenciar, mas influenciamos. Aqui, desviei o olho do meu livro (sim, tentava ler sem sucesso um livro sobre Georgiana Houghton, a espiritualista inglesa considerada a precursora da arte abstrata) e olhei para ela com curiosidade; queria saber quem era aquela pessoa tão especial que sentara justo ao meu lado.

Sua ladainha prosseguiu com ela afirmando que sua missão era ensinar. Nesse momento, embora disfarçadamente, não pude mais tirar os olhos dela e até prestei atenção, pois sou professora e podia tirar algum proveito de sua sabedoria.

De repente, para a minha surpresa, ela disse que o que ensinava mesmo era economia e mostrou à sua plateia, com muito orgulho, um livro que acabara de ler, Chaves para a economia do céu, e profetizou: “Nele vamos reconhecer Jesus Cristo”. “Senhor!”, pensei, “não estou entendendo mais nada”.

Mas logo entendi que o livro, cujo título achei muito criativo, beirando o nonsense, era coisa séria, tratava de princípios econômicos ditados pelo Senhor. Um desses princípios, segundo a palestrante, era fazer a economia girar, e para fazê-la girar, disse ela, “temos que dar e receber; entretanto, não podemos esperar para receber primeiro, temos que dar início ao ciclo; então, temos que dar, doar, nos esvaziar e só depois…”. Não escutei o resto porque tive que ir ao banheiro, vou muito ao banheiro quando viajo de avião.

Quando voltei, ela já estava nas sete leis espirituais do sucesso, que eram citadas em inglês (ou algo parecido) e, em seguida, em português. Essa coisa de falar em duas línguas parecia dar mais credibilidade. A moça que a ouvia atentamente parecia embasbacada e disse: “Yo hablo español”.

A ladainha só teve fim quando chegamos a terra firme. No primeiro aviso de desatar os cintos, pulei da poltrona, peguei minhas tralhas e parti.

Disso tudo, confesso, ficou um aprendizado, do qual agora não me recordo.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de Cem encontros ilustrados (Editora Iluminuras).

parte bicho, de Julianne Veiga

A parte bicho da moça sobrevivente

Goiás, 04 de julho de 2019.

A moça é adulta agora. Tem quem, inflexível que é, a considere envelhecida. Ah, pobre do sujeito que pensa assim. Sabe pouco este, pensa reduzido, fechado no espaço curto de um torto tempo limitado pela visão isolada de um. Ela, caso estivesse aqui ditando o norte do relato desta sua histórica, talvez até desse razão a quem assim o diz. Fazia pouco de si mesma esta moça. Mas isto de ser ou de estar velho quase nenhuma diferença faz. Pode fazer uma diferença meramente subjetiva, já que ou a velhice é coisa de dentro, introjetada em cada um, ou é coisa apenas de quem, de fora, olha só por olhar e, embora pouco ou nada veja, julgue: está velho aquele. Em geral, ser velho na atualidade é situação vexatória, segundo os padrões predominantes. Bom, mas predominância é como a maioria sobre cuja definição o cronista foi duro ao indicar a respectiva e insuficiente inteligência. A moça da nossa história, porém, aceitou envelhecer. Nada disto, tampouco, importa aqui. A moça, que é agora adulta, desde sempre consumiu seu tempo, todo ele, é o que lhe parece porque tempo também é subjetivo, procurando a porta de saída. Não é bem assim, na verdade, esta moça não tinha uma noção clara sobre si, sobre sua história e sobre como ela e sua história se inseriam, bem ou mal, no mundo, no vasto mundo que circundava a si e àquilo que era tido por ela como sendo a sua vida. Bem, a porta de saída era um desafio. Sair nunca é fácil, principalmente quando você não tem certeza de que é a saída aquilo o que busca, que ela é o fim almejado ou, pior, que ela existe e que é preciso que por ela se saia para algum lugar onde estará, enfim, salvo. Pensa bem: você nasce num grupo familiar, num determinado lugar, cresce nele, vive segundo aqueles padrões. Então, não me diga que a porta de saída é visível a olhos desnudos. Ora, se fosse, sequer haveria procura, menos, ainda, a saída seria necessária, estaríamos delas e de tudo mais todos a salvo. É preciso, por isto, entender que a moça percorreu caminho. Foi menina. É adulta agora, velha como podem preferir os apressados. Antes engatinhou confusa sobre uma história que construiu para si mesma e nela se salvou e se perdeu. Esta tal moça é forte e ardilosa: sobre a história de base, que deixou submersa em seu inconsciente, construiu uma outra ficta, assentada sobre falsos cenários verdes, com céus azuis de primavera, igualmente irreais. Sobre tal virtualidade perfeita se assentou como pessoa feliz. Só que a base falsa tem sempre frestas incontidas por via das quais a verdade escapa, infalivelmente. A moça, antes menina, desde então, cresceu sentindo-se um blefe. Inadequada. De fato, era ela um blefe, vez que firmava-se sobre aquelas bases falsas e inseguras que, sabia, eram produto de suas idealizações de sobrevivência. A menina da moça, precedendo a agora adulta, creu em seu mundo virtual de felicidade, idealizado como campo de paz. Num determinado momento, ousada, fez tudo ruir. Ela fez ruir. Estava cansada de não saber bem quem era. E aí, ela desmistificou sua felicidade falsa, sua segura insegurança. Pulou de “de ponta” no poço fundo que era ela. Teve coragem. Submergiu. Emergiu faz pouco à superfície. Está agora tomando fôlego, quieta ao seu próprio lado. Tem a si como companheira.

Julianne Veiga é de Goiás, uma antiga e histórica cidade do interior do estado de Goiás. Casada, três filhos, três netas.

um país deserto e sem céu, de Franklin Carvalho

O ônibus que seguia para o sertão deu uma parada e ali subiu um senhor com aparência sexagenária que vendia pastéis e outros salgados. Na caixa plástica dos seus lanches exibia um grande adesivo com a frase “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Ele desfilou pelo corredor anunciando seus produtos e, nas cadeiras do fundo, encontrou dois homens seus conhecidos. Comentou com eles algum episódio de crime, e concluiu:

— Conheci um cidadão que foi preso e na cadeia havia um ferro quente, desses de marcar gado, e lhe gravaram na traseira uma letra. Devia ser assim até hoje. Deviam pegar cada preso e arrancar as unhas todos os dias, durante uma semana, de alicate.

Ele voltou e me ofereceu as peças de trigo que eu já havia recusado.

— O senhor é cristão? Não foi isso que Jesus sofreu?

Não precisei colocar mais detalhes, o vendedor já sabia que eu estava entrando na sua conversa sobre tortura. Sem aparentar qualquer surpresa argumentou que “no tempo de Jesus” já havia castigos.

— Sei disso, houve o caso de Maria Madalena, e Cristo se opôs àquela barbaridade.

— No velho testamento se castigava assim também!, afirmou o ambulante, já se adiantando para descer no próximo ponto, sem ouvir minha comparação entre os dois livros da Bíblia.

Uma mulher jovem do outro lado do corredor olhou para mim parecendo concordar com o que eu dizia. Lá atrás os dois amigos do pasteleiro mergulharam numa conversa cheia de risadas que eu não conseguia ouvir direito, mas que tinha expressões de contentamento com a brutalidade. Senti que eles precisavam rir enquanto faziam comentários carniceiros, e que era melhor não escutá-los. Prossegui a viagem crendo que nenhum daqueles valentes assumiria a tarefa de arrancar unhas, que delegariam a função a um miserável mal assalariado, como os governantes fazem, que contratariam um carrasco faminto para a manutenção da sua grande moral e do seu grande Deus.

No retorno a Salvador, num carro de frete, o motorista jovial falava também de temas de segurança pública. Eu vinha calado ao seu lado, a conversa dele era com um idoso que viajava atrás. O velho, que balbuciava contra os direitos humanos, mudou o assunto para a economia e disse que “era grande o rombo na Previdência”. O homem ao volante concordava mas desviou, e falou que o presidente da República fala muita bobagem, é fraco e não se comporta como um governante. Também condenou a “trambicagem” que fizeram para prender o Lula. O velho, desistindo, abriu uma Bíblia e começou a gaguejar na leitura de algum trecho sem começo nem fim.

Vontade de chegar em casa. Como no dia em que saí da Festa Literária de Cachoeira (Flica), em 2017, e peguei uma van de frete e, na viagem, fui submetido a um ritual cheio de “aleluias”. A produção da Flica tinha me oferecido transporte, mas eu me atrasei e voltei em condução improvisada. A van pegou engarrafamento na rodovia e eu até dormi, mas acordei no meio da noite, o som gospel em alto volume no carro. Quando o cantor elevava a voz, o motorista empolgado soltava o volante e erguia as mãos em transe. Mas chegamos.

Vontade de chegar em casa. No dia seguinte à Festa Literária de Cachoeira eu já estava em Maceió, para apresentação na Bienal do Livro da capital alagoana. Terminado o trabalho, fui passear pela orla, a lua cheia na praia serena, ao longo da avenida urbana. Vi na areia um grupo religioso, jovens com violão simulando um luau, mas o assunto era muito grave. Novamente muitos “aleluias”.

— Cada um promete fazer sua irmã deixar de ser imoral? Cada um promete lutar para que a universidade não seja ambiente de prostituição?

Segui pela calçada, conheci as barracas, a tapioca, alguns moradores de Maceió e regressei. No retorno comentei com alguns dos rapazes que desarmavam a cena religiosa: “Tem gente com fome! O Brasil precisa de revoluções em tudo”. Responderam com o código que tinham, excitados: “Jesus te ama”.

Vontade de chegar. Segundo as Escrituras, na casa do Senhor há muitas moradas.

Nota do autor: Título da crônica tirado da música italiana A casa de Irene, de Nico Fidenco, que diz “I giorni grigi sono le lunghe strade silenziose / Di un paese deserto e senza cielo.” (“Os dias cinzentos são como as longas estradas silenciosas / de um país deserto e sem céu.”)

Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante também na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017), na Festa Literária de Paraty 2018 e em outros eventos literários. Tem contos publicados na Revista Gueto e na Ruído Manifesto.

a peteca, de Chico Viana

Eu fazia o segundo ano ginasial. Meu colégio não era nenhum modelo de prática pedagógica, mas gozava de prestígio na cidade. Estava longe de ser, como se costuma dizer de certas escolas, pagou, passou. Também não impunha aos alunos grandes desafios; estudando razoavelmente, a gente conseguia passar de ano até chegar ao temido vestibular. Isso permitia que eu tivesse um razoável sucesso, pois as peladas e os jogos de botão não me impediam de fazer os deveres e me preparar para as provas.

A turma deixava a desejar quanto à disciplina. Falava-se muito, gritava-se vez por outra. Havia dias em que os professores não conseguiam controlar a classe e tinham que chamar o diretor. Ele vinha, dava uma lição de moral, prometia suspender ou mesmo expulsar os rebeldes. Isso nos acalmava um pouco, mas não era suficiente para nos manter concentrados. Bastava um espirro, uma tosse estridente (proposital!) para que começassem os risos, que não raro evoluíam para a algazarra.

Quem nunca tinha esse tipo de comportamento era Jurandir. Sua mãe enviuvara e vivia de faxinas. Como a família não tinha condições de pagar a escola, ele recebera uma bolsa e procurava corresponder com um comportamento exemplar. Evitava todo tipo de indisciplina e era muito esforçado. Sabia que o bom comportamento e a aplicação eram essenciais para que continuasse como aluno. Evitava, assim, deixar-se levar pelas más disposições de espírito dos colegas, cujos pais podiam pagar não apenas a escola como também o curso de língua estrangeira (além de outros pequenos luxos da classe média).

Entre nossos professores, havia um que era mais duro. Chamava-se Godofredo (quando ele disse o nome, olhamo-nos com um ar de riso). Godofredo dava aula sentado, com a cabeça baixa. Mandava-nos ler um trecho de Camões, ou de Machado de Assis, e pedia que interpretássemos. Como quase ninguém dizia nada, ele não tinha papas na língua para enfatizar a nossa estupidez. Éramos estúpidos porque não tínhamos interesse em ler, conhecer a nossa literatura, dominar os recursos semânticos e sintáticos para escrever bem…

Hoje entendo melhor Godofredo. Ele tinha um amor verdadeiro pela língua e queria nos transmitir um pouco disso. Queria que crescêssemos. O que lhe faltava era a habilidade para nos sensibilizar. Preferia o confronto direto, a ilustração de nossas fragilidades. Não suportava indisciplina, e quando a turma se mostrava rebelde ele ameaçava chamar os pais para uma “conversa séria”.

O que houve numa de suas aulas me marcou para sempre. Foi numa dessas ocasiões em que estava difícil controlar a turma, que na aula anterior praticamente expulsara a professora Gisleide, de História (uma candura de pessoa, mas sem força para impor disciplina). Godofredo entrou na sala sério, sentou-se como fazia habitualmente e abriu a gramática. Nesse momento a peteca irrompeu não sei de onde e passou rente ao seu rosto. O giz não o atingiu diretamente, mas bateu no quadro e foi parar em cima do birô. Ele pegou o pequeno petardo, examinou-o, e em seguida olhou para a turma com ar colérico, como se fosse revidar.

— Quem foi?

Silêncio. Godofredo ficou nos encarando por cerca de meio minuto. Repetiu a pergunta:

— Quem foi?! Quero saber agora!

Como ninguém falasse, ele aliviou o semblante e esboçou um sorriso:

— Perguntei por perguntar, pois sei quem jogou a peteca. Eu queria ver se o autor tinha a decência de se revelar.

Depois de dizer isso, apontou para um de nós e falou num tom que não admitia réplica:

— Seu Jurandir, saia da classe e vá até a diretoria. O senhor está suspenso.

Jurandir ficou branco e começou a tremer. Com voz sumida, tentou negar:

— N…não f…fui eu.

Sabíamos que não tinha sido ele, mas Godofredo insistia. Repetiu alto, como se falasse para toda a turma:

— Foi, sim! Eu vi. Tenha a dignidade de reconhecer e vá à diretoria.

Jurandir levantou-se, encurvado, com lágrimas nos olhos. Olhamo-nos sem saber o que dizer. Como suportar aquela enorme injustiça? Godofredo parecia convencido e não estava disposto a voltar atrás. Se ao menos tivesse apontado outra pessoa…

Mas antes de o acusado transpor o umbral da porta, um dos alunos se levantou e disse de um jato:

— Não foi ele, professor. Fui eu.

Respiramos aliviados. Não nos surpreendia que tivesse sido Claudionor. Ele era pouco estudioso e costumava fazer baderna. Talvez até gostasse de passar um tempo em casa, vendo televisão e lendo gibis.

Godofredo dirigiu-se então a Jurandir, que havia parado quando ouvira o colega assumir a culpa:

— Volte, seu Jurandir. Sente-se no seu lugar.

Depois olhou para o responsável pela brincadeira, que continuava em pé enquanto era alvo do olhar da turma:

— E você, seu Claudionor, vá para a diretoria.

Voltou ao birô e pediu que abríssemos o livro de textos. Tentávamos voltar ao normal. Notei que ao longo da aula Jurandir permaneceu intranquilo. Parecia desconcentrado e tinha no rosto um resto de palidez. O que se passava pela sua cabeça? Pensava, talvez, que teria sido vítima de uma injustiça caso o colega não assumisse a culpa. Quanto a mim, jamais tive dúvida; Godofredo sabia muito bem que não tinha sido ele quem jogara a peteca.

Chico Viana é doutor em Letras pela UFRJ , jornalista, professor de língua portuguesa e redação.