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sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
Nas torturas toda carne se trai
E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente,
Displicentemente o nervo se contrai
Com precisão
Vila do Sossego, Zé Ramalho
Sonhei com isso agora há pouco
Você não consegue dormir, mesmo que queira. Não existe sonífero no mundo que faça fechar os olhos. Você fica em estado de vigília constante, esperando que tudo tenha sido um pesadelo. A certeza de que não é aparece pelo resto do mundo dizendo que não foi. Todos os olhares de pena e palavras de consolação cansam, você precisa de remédios pra aguentar tudo. E mesmo tomando aqueles que fariam dormir, esquecer, estes não têm efeito. Somatiza a perda em dores de cabeça, pontadas no peito, maus-jeitos nas costas e nos braços, o que pode ser efeito das noites insones, mas você não atribui uma coisa à outra. Claro que no meio de todas as circunstâncias acima, existe, primeiro e corriqueiro sentimento, a vingança, a vontade de tomar a si a atribuição de justiçar. Coisa que não é atributo só teu, são de todos vocês. Vocês que foram privados da presença deles, do riso, da alegria inerente de quem tem só por ser genitor. Existe a vontade mas não há forças pra ir atrás, empreender caçada, nem protestos ou pedidos junto à autoridade — que eram insistentes nos primeiros dias — continuaram após certo tempo. Um que outro ainda peregrina da delegacia ao promotor, e deste ao juiz, há ainda o delegado, mas depois de um entregar ao seguinte e esclarecer suas responsabilidades, as solicitações, os mandos de que se “faça justiça” acabam ganhando uma gaveta, um armário de onde só conseguem saída com os mais insistentes, os que não conseguem acreditar, iguais a você, ser tudo real. Não fosse ter sido vítima a atriz, o caso seria esquecido por completo. E ainda existe a questão de saber se o encontro do(s) culpado(s) trará o que você almeja. Certamente não. Não é punição o que você deseja de fato. O que você deseja não te será dado, não nesta vida. Então fica o embate entre o conformismo e a indignação, mas nenhum resultado positivo e oposto a um destes restitui aquele ser. Dentro da casa vocês são fantasmas, não sabe se o outro compartilha o mesmo que você, pois não falam mais como antes depois do acontecido, o que faz pensar que o vínculo com aquela pequena criatura era o que ainda os unia. Tornaram-se desconhecidos depois do enterro. A dor pode ser a mesma atingindo cada um com impactos diferentes. Então o que resta é ficar observando aqui do alto, desta janela. Ficar olhando lá pra baixo, pro colégio que a criança frequentava, esperar que ela venha sorrindo feliz cruzando a rua e subindo pelo elevador, pelas escadas, ou que espere você descer pra buscá-la, dar um abraço cuidadoso pra não machucar e beijar as maçãs do rosto com todo o carinho e afeto possíveis. Resta essa ilusão, como tantas outras. E mesmo que você dormisse, sonhasse que estava tudo bem, que nada do que aconteceu, aconteceu, não seria pior? O que torna uma situação pior, pior? Assim, melhor contar mais um dia que você não a tem, e enquanto vê crianças saindo do colégio lá embaixo, pede que algum deus prive seus pais da mesma pena, no idêntico segundo achando que se houvesse algum deus, de fato, nem teria razão de existir tal pedido.
A nu
A menina foi encontrada como as outras. Como todos eles. Foram meninas, meninos, idades entre cinco e dezessete anos, possuindo similaridade nos corpos: as crianças e adolescentes masculinos e femininos geralmente magros, nos últimos os seios quase inexistentes como se fossem corpos dos garotos; os corpos dos adolescentes esguios, como as garotas, quase sem pelos. Tinham em comum — além dos ferimentos perfuro-cortantes (causados por uma faca, um estilete, um facão? nem a perícia tem certezas) — isto: quase sem pelos. Criaturas recém descobrindo a perversidade do mundo. Descobrindo e já esgotadas por tal saber. As meninas e moças, meninos e moços, todos foram estuprados. Os cadáveres foram localizados desovados em vários pontos da cidade — no lixão, num beco, numa obra abandonada ou não, nesse caso em horários em que não haviam testemunhas. Cruzamos os pontos de descarte pra ver se havia uma espécie de padrão, ou então se os locais estavam próximos um do outro; nada foi revelado nesse sentido. Trabalhar com tais tipos de crimes é foda. Foda no sentido ruim, claro. Não sou pai mas eu vejo a dor deles. Dá pena, muita pena mesmo. Desafiariam a nu muitos cães raivosos pra não serem privados dos filhos, fariam o que fosse preciso. Sabe, todos esses anos só me deram uma certeza: o ser humano não nasceu pra ser bom, apenas aprende a ser, mas a maldita da nossa natureza é tendenciosa ao ocaso, nosso e de quem nos rodeia. Tudo que é belo destruímos. Vivemos numa falsa felicidade, guiados por crendices de alegria que criamos, na maioria das vezes, convenientemente. Enquanto não filosofo, investigo. Fumo e tomo café com as fotos dos corpos espalhadas na mesa. Algumas bocas estão abertas em gritos audíveis só a mim.
A paz dura pouco
Existe uma falsidade inerente em crianças atrizes/atores. Mesmo ouvindo elas falarem fora do texto decorado, parecem que sempre estão atuando com frases previamente escritas. É o caso de Julieta. Seus pais gostavam tanto da peça que escolher um nome ao rebento não foi tarefa difícil. Se fosse menino seria Romeu. Julieta começou fazendo pontas em comerciais de lojas locais da cidade natal, depois a mãe decidiu colocá-la em uma agência de publicidade com sede na capital que tratou de providenciar propagandas de lojas e outros estabelecimentos conhecidos em nível estadual e nacional, com gravações, na maioria das vezes, também na capital. Na metrópole foi, após alguns testes, indicada a fazer mais testes em emissoras grandes de televisão, dos quais, ao ser aprovada, após viagens ao Rio, São Paulo e Minas Gerais, catapultou-a ao papel da filha da protagonista da novela das dez de uma delas. No país inteiro então, por cerca de dez meses, sua fofura auxiliada pelos olhos claros em heterocromia e teatralidade indisfarçadamente falsa, atribuída à sua infantilidade, dominou as tevês no horário. Depois do primeiro sucesso, a menina continuou fazendo outras novelas, um seriado e diversas propagandas, mas, como dito no início, a um analista prevenido todos os papéis, frases e atuações se resumiam a ser o que em público refletia em entrevistas. Não se dissociavam mais a vida artística da real, pela diferença de que na última ela mantinha os estudos escolares. Até que.
Vinde a mim
Da janela. Observo da janela, aqui do alto. Existe um colégio lá embaixo e quando dá quinze pras doze venho até o parapeito e miro pra lá, na direção daquelas crianças e adolescentes saindo. Consigo averiguar cada laço nos cabelos, cada tiara, cada sorriso bocó de cada figura vulnerável. Fito suas mochilas com motivos cartunísticos televisivos, suas roupas compradas com desapego e ao mesmo tempo com toda aflição financeira de dinheiro-que-nunca-chega dos seus pais ou responsáveis. Anoto mentalmente seus trejeitos, o jeito acriançado nos rapagões de quinze ou dezesseis anos e a seriedade pura nas crianças de cinco ou seis. Aguardo quando um(a) deles(as) subirá pelas escadas ou pelo elevador, trazido(a) por mim ou pelo Destino e quando tudo mudará. Pra mim e pra ele(a). Fico contente. Fico contente em poder alterar rumos tão desinteressantes.
Andrei Ribas é autor dos livros O monstro (2007), Animais loucos, suspeitos ou lascivos (2013) e Cada amanhecer me dá um soco (Bestiário, 2016). Possui trabalhos reproduzidos nas revistas eletrônicas brasileiras Plural, Flaubert, R.Nott, Pessoa, mallarmargens, 7faces, Subversa, entre outras publicações. Escreveu resenhas e críticas literárias para os sites Amálgama e Homo Literatus.
sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
Osvaldo era homem macho. Não reclamava do acaso, nem chorava morte alheia. Dizia que guardava as lágrimas para quando chegasse seu dia. Seguia a vida pelos seus passos. Mas, de todo caso, aquela não era uma morta qualquer. Era esposa de Alberto, amigo de infância, parceiro de negócios. Teria mesmo ele que fazer presença na despedida? Justo ele, que nem dela gostava, sempre pronta a dar-lhe respostas malcriadas, num ciúme doentio a julgar ser ele o ladrão dos momentos em que ausente o marido.
Mulher é bicho teimoso. Quando enfia ideia na caixa lá de cima, não tem quem a tira. Da situação, Alberto é que gostava, pois, assim, mascarada estava a constância da sua farra. Que longe do amigo tudo acontecia. Bem feito pra megera, que se achava, pensava Osvaldo, ao tempo em que se retrucava: “Mas que pensamento mais mesquinho, a esta hora, quando morta a criatura”.
Enterro é coisa chata, o defunto estirado ao centro, rezas, ladainhas e o invariável endeusamento. Nestas horas, ninguém lembra defeito. E Osvaldo, que nem sofria de esquecimento, se questionava: “vou fazer o que naquele enterro?”. Odiava obrigação. Teatro. Dissimulação. Chegou lá com a hora adiantada, no exato momento em que o Padre destacava a dor da família e, principalmente, a de Alberto, já que filhos não tinham alcançado. Pensou o amigo: “Minha avó dizia que em vaso ruim não nasce flor. Mas podia nascer diabinho, puxado no gênio da mãe”. Que horror. Bem sabia que não devia ter ido. Em horas como aquelas, alegrava-se por quase nem ter família: “Sorte a minha, que nem casei. Melhor assim a viver como Alberto, na falsidade do dia a dia, preso a um casamento sem amor, a experimentar o sexo com tantas quantas lhe ofereciam o calor”.
E eis que, cerrada a cova, floreada a lápide, choros, prantos, velas e Alberto a fingir sua dor, vem Aninha, a prima do interior, pedir licença para ler carta que a alma que se ia, escreveu ainda em vida, pedindo que fosse lida, em público e em seu último momento de luz:
Aos que aqui vieram, para minha despedida, e que cercam meu corpo, onde por certo nem mais estou, revelo: Alberto, homem bom, trabalhador, que de mim cuidou e a mim manteve-se fiel, sem nunca me dar um motivo sequer de desconfiança, merece todo meu respeito. Ainda assim, devo admitir que fraquejei ante aos encantos da carne. E agora, quando tudo é vencido e não me obrigam os segredos sociais, posso enfim confessar: dentro de mim queimava um desejo incontrolável por Osvaldo. Ah como fui ciumenta doentia, com relação a Osvaldo. Pensava eu, a todo instante, por que com Alberto passava ele tantas horas, a matar-me de inveja? Sei que minha morte terá como causa doença do corpo, espalhada pela dor que se instalou no meu coração. Ah Alberto, quantas noites sem você, distante a trabalhar, me perdi em fantasias de amor com Osvaldo, a fazer com ele as mais criativas orgias que para você não pude dar. Sim, você, homem de família, não sonhava sequer a puta que em mim habitava e nutria por ele os mais devassos desejos. Sim, era por Osvaldo, que eu gemia. Gozava quando em mim ele debruçava um simples olhar. Liberta, agora, dos desejos terrenos que me ligava a ele, seu melhor amigo, posso ser eu sua esposa, completa, ainda que em alma, mas verdadeira e celestial. Porque você, Alberto, é o homem a quem, na presença de Deus, jurei eterno amor.
Ainda bem que silêncio é marcado mesmo pela ausência de palavras, pois impossível descrever o momento. O ódio de Osvaldo por ela ganhou força: “A vaca, até morta, é porca”. Desfeita a vida dela, não contente, arruinou os negócios e a amizade de Osvaldo e Alberto. E este passou de garanhão a corno e, de súbito, assumiu posição de vítima, marido perfeito, homem de respeito.
Terminada a carta, Osvaldo secou, por dentro, todo choro que havia muito guardava e que, naquela hora, jorrou em lágrimas, molhando-o em prantos.
Chegando atrasado ao evento inesperado, colega de trabalho da agora ex-vendedora de sapatos, daqueles que se obrigam a sociais de qualquer sorte, vê, atônito, o choro descontrolado de Osvaldo, a quem consola, em forte abraço, pela viuvez.
Jussara Resende é brasiliense. Graduada em jornalismo e direito, passa os dias a escrever, quando não textos técnicos, por lazer. Ensaios, poemas, crônicas e comentários que divulga em sua página no Facebook. Escritora amadora, no exato sentido da palavra.
sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate, recebeu o convite em sua casa — um sobrado caindo aos pedaços, localizado num dos piores bairros da cidade —, onde morava com a mãe, velha detestável, manca e diabética. Os olhos do mensageiro não desgrudaram dele, enquanto Zacarias segurava com dedos flácidos o papel:
— Que merda é essa?
— Esteja lá às oito em ponto. Não se atrase.
Um baile de máscaras. Zacarias pegou o terno que acabara de confeccionar para o melhor cliente, a cartola e a bengala que fora de seu pai, e a máscara que ele mesmo, Zacarias, alfaiate, costurara às pressas apenas para o evento. Uma carranca horrenda, parecida com as usadas por pigmeus africanos em rituais de feitiçaria.
— Que tal?
A mãe tirou os olhos da tevê, mediu o filho e cuspiu de lado.
— Você está a cara do prefeito — foi a única observação que ela, criatura odiosa, fez, antes de voltar a enfiar os olhos na tela prateada. A velha havia cuspido de lado porque não gostava do prefeito.
Ao chegar ao baile Zacarias percebeu que tudo não passava de uma armadilha.
— Você será enforcado, canalha dos infernos! Como tem coragem de aparecer aqui depois do que fez?
— Eu não fiz nada. Fui convidado. Deixem-me em paz.
Dezenas de máscaras o cercaram:
— Facínora!
— Assassino!
Quem regia a saraivada de insultos era justamente o prefeito, que por coincidência também se chamava Zacarias Sepúlveda Bezerra. Além disso Zacarias Sepúlveda Bezerra, prefeito, usava uma máscara que lembrava bastante o rosto de Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate.
— Tragam uma corda. De hoje esse sujeito não passa.
Havia muitos homônimos no salão, visto que todos os presentes, exceto os do sexo feminino, se chamavam Zacarias Sepúlveda Bezerra.
O prefeito com cara de alfaiate tinha violentado e estrangulado, no seu gabinete, um garoto de doze anos. Por isso o alfaiate com cara de prefeito estava sendo levado, contra sua vontade, até uma forca montada de uma hora pra outra no fundo do salão.
— Me soltem. Vão tomar no cu!
O alfaiate esperneou e distribuiu sopapos a torto e a direito. A multidão mascarada afastou-se por um instante, depois engolfou-o:
— Maníaco! Sodomita!
No chão coberto de confete e serpentina, a cartola, a bengala e o convite um pouco amarrotado.
— Meeeeee sol… teeeeeem…
Enforcaram-no. O corpo, já sem ânimo nem cor, ainda estrebuchou durante três ou quatro segundos. Quando a máscara caiu, todos viram que não era Zacarias Sepúlveda Bezerra, alfaiate, mas sua mãe.
— Escapou mais uma vez, o depravado.
Atiraram a velha pela janela e deram prosseguimento ao baile, que, apesar dos dois linchamentos posteriores, ambos transmitidos ao vivo pela tevê, não foi tão espetacular quanto os bailes do carnaval passado, em que o número de justiçados e de crianças violentadas havia sido bem maior.
Nelson de Oliveira é escritor e doutor em Letras pela USP, muito cedo percebeu que a literatura é o local ideal para o exercício da liberdade. Incapaz de ser um só, desdobrou-se em outros três autores: o poeta Valerio Oliveira, o desenhista Teo Adorno e o ficcionista Luiz Bras.
sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
Daí fiz uma piada sobre pó com o cara lá no trabalho. Disse que estava praticando uma nova arte marcial pra emagrecer. O caratê colombiano. Todos riram pra caralho, mas ele riu um pouco e depois ficou sério, me analisando.
Agora o filho da puta não me deixa quieto. Fico resfriado ele já me olha estranho. Apareço menos gordo e ele com cara de pena. Escrevo minhas paradas de autoficção e ele mandando mensagem do Smilinguido no inbox.
Aqui cabe uma confissão. Eu também não desmenti nada. No fundo, ou nem tão fundo assim, eu tô é gostando de ver a confusão dele.
Eu falo pra ele: “Tô bem cara, só me deixa aqui em paz.”
Ele parece que aceita com resignação, mas quando menos espero vejo ele falando pros meus amigos do trabalho:
— Alguém tem que falar alguma coisa pra ele. Tá dando muito na cara. Ele tem um problema.
— Que nada. Ele não é disso. Ele gosta é de reggae, Caetano Veloso. Tem até pulseirinha do Greenpeace.
— Sei não. Todo mundo sabe que essas coisas andam juntas.
Isso já começa a me aborrecer, mas resolvi não desmentir ainda. Quem sabe ele fica com medo, resolva que não valho a pena, sei lá, e me deixa em paz.
Um dia no almoço ele veio falar comigo:
— Pô cara. Sei que você que tá passando umas coisas aí mas não precisa ir pra esses caminhos não.
— Do que você tá falando?
— Você sabe. Relaxa cara. Eu não te julgo não.
— Eu também não julgo quem gosta, mas eu não curto, porra!
— E aqueles poemas doidões lá?
— É ressaca, fluxo de consciência, mentirinhas, sei lá cara. É ficção.
— E você emagrecendo aí, com essa cara chupada?
— Como de três em três horas e faço exercícios, não tem segredo.
Ele não escondeu a decepção. Não sei se achou que eu estava mentindo, ou se preferia que eu estivesse.
— Olha — eu digo — tá bom, você me pegou. Tô nessas aí, afundadão. Mas não fica espalhando aí, sabe? Pode dar problema pra mim.
Ele sorriu e disse:
— SABIA!
Daí ele hesitou, vacilou, ensaiou pra caralho e finalmente disse:
— Também sou do movimento, irmão! Mas tô devagar ultimamente. Você pode me arranjar um aí?
— Claro. Te entrego amanhã.
Cuzudo fdp.
Agora tô aqui. Raspando um giz, quebrando e amassando balinha de açúcar, misturando com pó royal. Tô pensando em colocar uma aspirina também, e uma pitada de rivotril vencido pra dar um grau. Depois disso vou embalar tudo num saquinho velho de supermercado e levar pra ele.
Não vou cobrar nada. A primeira é de graça. Ele vai ter a trip da vida dele.
Rafael Vieira é escritor, morador do extremo de leste de São Paulo. Participou de antologias e revistas on-line de literatura com poemas e contos, sobre faculdade largadas, casamentos desfeitos e bebedeiras (que ele diz ser ficção pra evitar processo).
sobre humores ou fluidos | segunda semana bílis negra
o querido ouvinte
Adoro ouvir histórias. É a única hora em que não tenho pressa nenhuma. Se levar o dia inteiro, aí é que eu me divirto mesmo. Quando eu era pequeno, toda noite minha avó me contava uma história. Aqui é a mesma coisa. E todo mundo conta. Cada uma melhor que a outra. Ah! Como eles inventam. Mesmo que no começo eu precise incentivar, com choque elétrico, palmatória e afogamento.
classificados 2 — o especialista
O salário é ótimo, sem dúvida. E os horários, bastante flexíveis. Terei total autonomia para definir a ordem e o cronograma de todas as etapas. Me garantiram que há grandes possibilidades de ascensão na empresa e se dispuseram a arcar com as despesas de um pós-doutorado no exterior. E o melhor de tudo, as armas, a munição e os atestados de óbito, eles mesmos fornecem.
yeah, yeah, yeah
Para Natercia Rossi e Claudia Fernandes
Como sempre, não há quase nenhum movimento na rua. Os quatro rapazes chegam na esquina, com suas roupas coloridas, brincam muito uns com os outros e atravessam a rua cantando. O fotógrafo ri e vai pedir calma, pois ainda nem montou sua câmera. Mas não há tempo, um caminhão de mudanças dobra a esquina, avança o sinal e atropela os quatro.
Foi uma pena, não só pela dor das famílias, mas porque todos ali em Abbey Road dizem que eles levavam muito jeito pra música.
sim
Todos os dias, um pouco depois das seis da tarde, ela vai até o quarto, abre o guarda-roupa e tira de lá o traje, que veste com cuidado. As meias finas, o longo vestido armado, as mangas de renda, os sapatos também brancos, o véu e a grinalda.
Então senta-se em frente à janela e aguarda. Quando os sinos no campanário da igreja em frente tocam as sete horas, ela se levanta e, feliz, joga o buquê pela janela do oitavo andar.
| estes contos estão no livro Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos (Editora Oito e Meio, 2017) |
Cesar Cardoso (Rio de Janeiro,1955) publicou os livros de contos As Primeiras Pessoas e Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos (Editora Oito e Meio). Escreve para TV e mídia (revista Caros Amigos, jornais O Pasquim e O Planeta Diário, programas Tv Pirata, A Grande Família, Sai de Baixo, Toma Lá Dá Cá, Zorra etc). Também tem publicados livros infantojuvenis. Seu conto “Ai de Mim, Copacabana” saiu na coletânea Para Copacabana, Com Amor (Editora Oito e Meio) e no livro The Book of Rio, lançado pela Editora Comma Press, em Londres, na Inglaterra. Participou da Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura — em 2009 com o poema “Carochinhas brazileiras” e, em 2015, com o conto “O Veredito”. Também em 2015 lançou coisa diacho tralha (poesias, Editora Texto Território). É editor do blog Patavina’s.
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— Vou ali matar o presidente!
Ele disse e passou a mão numa baguete comprida que estava sobre a mesa.
Uns poucos passos separavam sua casa da residência presidencial. Tão logo viu a determinação do homem, um dos seguranças se aproximou com a autoridade típica dos que cumprem com seus elevados deveres:
— Visitas não são permitidas, ainda mais com baguetes.
— Avisa o seu chefe que hoje já era — afirmou o futuro assassino.
— Por quê?
— Porque sim.
— Com isso aí?
— Não duvide jamais do poder de uma baguete!
Havia muito a se considerar naquela frase: uma baguete velha, por exemplo, endurecida pelos rigores do tempo, poderia causar, sim, graves lesões em qualquer um, principalmente se a vítima fosse o presidente. O segurança se lembrou de um caso ouvido há pouco: um conde francês de nome Ferdinand Cèline saiu para caçar e, ao apontar sua baguete em direção à cabeça de um unicórnio teve morte imediata; o tiro saiu pela culatra e a notícia saiu na mesma tarde nos principais jornais europeus, o que gerou uma consternação geral de enormes proporções e nenhuma resolução prática, como é natural em situações dessa natureza. Cabia a ele, portanto, o segurança, tomar uma medida preventiva:
— Chamem o ministro da Defesa — falou em seu rádio comunicador. — É um caso de vida ou morte. Mais de morte, provavelmente.
Como era cedo ainda, o ministro compareceu vestindo sua tradicional cueca suja. Ficou ali uns bons dez minutos avaliando a baguete e o seu portador. Dada a sua larga experiência em assuntos de defesa e ataque, uma vez que fora goleiro e centroavante do Avaí FC na sua já distante juventude, ponderou: fudeu!
— O que é mesmo que você vai fazer com isso? — perguntou ao futuro assassino.
— Matar o presidente. É sim.
O ministro, defensor habilíssimo de si mesmo, tirou o seu da reta e passou a bola para a imprensa; a imprensa, por sua vez, espetacularizou tudo e transformou a baguete num fuzil israelense e o homem, que era servente de pedreiro, em um perigoso terrorista foragido que costumava se esconder em Jurerê Internacional.
Lá pelo meio-dia, alertados pelos boletins extraordinários das TVs, em frente à residência presidencial havia uma multidão composta por todos os setores da sociedade de bem: banqueiros, garis, empregadas domésticas, ladrões de galinha, vagabundos & socialaites, deputados federais empenhados em capitalizar o fato para suas futuras campanhas, soldados, ministros da Economia & Justiça, motoristas do UBER e estudantes que entoavam mantras tibetanos de paz e purificação espiritual.
O presidente aproveitou a súbita popularidade e resolveu fazer um pronunciamento relâmpago:
— Diga ao povo que fico!
Foi a gota d’água: uma confusão generalizada explodiu coxinhas voaram para o alto mortadelas eram lançadas como bombas o segurança enfiou o nariz na cueca do ministro que nem se defendeu jornalistas usaram suas câmeras e microfones como escudos e ao fim de dez segundos todos eles se mataram com requintes de estupidez jamais verificados na história deste país.
No chão restou intacta apenas a baguete.
Claudio Parreira é escritor. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, entre outras publicações. É autor, pela Editora Draco, do romance Gabriel e também da coletânea de contos Delirium, pela Editora Penalux. Facebook: Claudio Parreira.
sobre humores ou fluidos | primeira semana bílis negra
Refere Hamlet a Horácio haver mais coisas no céu e na terra do que sonha a (sua) filosofia.
Críticos literários, filósofos, psicanalistas, teólogos, acadêmicos e esotéricos de toda espécie por séculos botaram-se a tudo, gastaram seu latim para entrever na célebre passagem shakespeariana um mar de angústias de perquirições humanas e espirituais das mais abstrusas, quando, em verdade, aquilo a que se referia o diretor cênico e casualmente príncipe dinamarquês não era nada disso, senão, pura e simplesmente, o cu.
Segundo a Clinical Enciclopedia of Proctology, o ânus é o orifício final do intestino grosso — conceito que pode ter levado a ciência e o prosaísmo a embaraços teóricos. O comentário do Dr. Harry Townled no artigo “Anus: a complete immersion” (Martinnopolis, 1971), presente na Enciclopedia, indica que, em razão de ser o cu prerrogativa final, fim do sistema digestório e fim de e em si mesmo, sobre si atuam influxos bioepistemológicos universais, o que se traduziu, do ponto de vista linguístico, em uma correspondência sígnica plúrima, multifacetada, sendo certo haver, em todas as línguas conhecidas, uma palavra ou expressão a ele — o cu — correspondente para cada uma das 23 letras do alfabeto latino original. Sobrelevam-se algumas em português:
Aro 13. Brioco. Carió. Digníssimo. Entrada USB. Fandango. Girassol. Holofote. Intencionado. Junta-mosca. Lado B. Mialheiro. Nadeguete. Olho-cego. Preguiado. Quadrado redondo sem tela. Rego. Soprador. Toba. Urna. Vesúvio. Xilindró. Zingaleta.
Contudo, a asserção do Dr. Townled e seu curioso rol igualmente permitiram uma sorte de equívocos conceituais. Para esmiuçar o problema, ao cabo é preciso definir o que é o cu.
O cu é o nada, o vazio. Não se confunde ele, o cu, com seu entorno, a parede do reto; é ele, o cu, justamente o espaço vazio da extremidade retal. Disso decorre, portanto, que o cu é o que não é — isto é, o que é não sendo; o cu é senda, e equivale ao não-ser. Parmênides de Eleia, um dos primeiros cuzões da história da filosofia, inconscientemente desvendou o segredo do cu; ainda que “desvendar” — ou mesmo as equivalentes “desvelar”, “descobrir” e outras — sejam imprecisas, eis que não se venda, vela ou cobre aquilo que não é. O que não é, por definição, não existe, e portanto não pode ser passivo daquilo que é (desvendamento, desvelamento e descoberta são). Se para Heidegger a linguagem é a casa do ser, sensato inferir que a linguagem, portanto, não é a casa do não-ser; sensato inferir, ainda, que, se o cu tem casa, esta é a não-linguagem. Se o cu tem casa, portanto, trata-se de uma casa evacuada, um asilo solitário onde não vigoram os princípios que regem o mundo da linguagem, que é a casa do ser. Sensato inferir, portanto, que o cu não é linear; não porque seja redondo, como quer fazer crer a filosofia barata — o cu não é linear do ponto de vista lógico-matemático. Daí que mandar o outro tomar no cu é equivalente a dizer vá viver com suas regras próprias lá na casa do caralho, que alguns pensam ser o cu. Ledo engano. O chamado prazer anal, ao contrário do que reza o juízo comum, não incumbe ao cu, mas às terminações nervosas do reto que são, isto é, que existem, ao contrário do cu. E em falar em expressões, habitual ouvir dizer que determinado lugar é o cu do mundo — equivalente a dizer, metaforicamente, que tal lugar é mais longe que Interlagos, de modo que a ele é impossível se chegar. Portanto, tal lugar não existiria — conferir o artigo “Un viaggio per Brasile: ma vaffanculo, l’Acre veramente esiste?”, de Italo Calvino.
Ora, e faz algo o cu, ou, em não sendo, apenas senda, nada faz? Não faz, rigorosamente, mas serve — não o cu, propriamente, que não é, mas aquilo que cotidianamente se diz e se pensa ser o cu — a uma política biológica utilitária: é através do cu que sucedem o peido e a merda. O peido, como se sabe, foi a última tentativa da natureza de fazer com que o cu falasse. Afinal, é bem assim: o peido é a fala do cu, uma fala própria, individual, inexistente na linguagem do mundo que existe — o peido é uma não-linguagem. A merda, por seu turno, é privilégio final da alimentação humana, cuja circunstância de ser expelida passando exatamente pelo cu não é casual: para que uma coisa que era parte de um ser que é deixe de ser, é preciso que tenha de si sua presença retirada, o que se dá a partir de uma transitória viagem pelo mundo do nada, vale dizer, pela casa do não-ser: a casa do cu, crivo quimérico que retira o ser da linguagem, tornando-o, assim, não-ser. E daí dizer ao outro que é uma merda de pessoa é o mesmo que dizer que não vale nada, que é mais que insignificante, é inexistente para o mundo daqueles que são. Portanto, não resta dúvida: a ideia de cu é inconcebível. Ergo, o cu não é humano.
| esta peça foi escrita à razão da primeira e da segunda teses de Piglia, que em janeiro deste ano foi se juntar ao cego bibliotecário na inconcebível Babel |
André Balbo nasceu em São Paulo em 1991. Autor do livro de contos Estórias autênticas — importunâncias do engenho alheio (Patuá, 2017). É conselheiro editorial e colunista da revista Lavoura. Já foi trainee da Folha de S.Paulo, editor-chefe e colunista do Arcadas, jornal da Faculdade de Direito da USP, na qual acidentalmente está concluindo a graduação.
sobre humores ou fluidos | primeira semana bílis negra
— Pai, trouxe essa perna pra você. Quer comprar?
— Que isso, menina?
— O filho da dona Jussara morreu, não vai mais precisar. Quer ou não?
— Eu não perdi minha perna.
— Ainda não perdeu, pai. O médico falou que vai ter que amputar se você continuar comendo essas porcarias. Vai querer ou não?
— Não vou querer coisa alguma, menina. Que desaforo! Não perdi minha perna. Ela está aqui, veja!
— Estou vendo, pai. Um horror! A mãe disse que você nem levanta mais desse sofá sozinho. Essa perna aqui ainda pode ser útil.
— Ela é pequena pra mim, filha, não está vendo?
— Deve servir.
— O filho da dona Jussara tinha o quê? Um metro e sessenta? Eu tenho um e noventa, não vai servir.
— Usa muleta, pai.
— Eu não vou usar nada. Não perdi minha perna. Mulher, venha cá! Veja o que sua filha está fazendo? Quer me vender uma porcaria de perna de anão, como se eu já tivesse perdido a minha.
— O que é essa gritaria? O que foi, homem?
— É sua filha. Veja!
— Mãe, eu peguei essa perna com a dona Jussara pro pai. Ele não quer comprar. Pode ser útil pra ele em breve.
— Dona Jussara deu essa perna pra você?
— Sim, mãe.
— Por quê? Você precisa de uma terceira perna?
— Na-não.
— Por quê, então?
— Ela de-deu pro pai, ca-caso ele perca a perna.
— Essa menina tentou me vender a perna, mulher. Sua filha tentou me vender a perna!
— É sua filha também, homem. Agora, se ela deu pro pai por que você quer vender pra ele?
— Só pe-pensei… Ah, quer saber de uma coisa, fica com a perna pai. Toma! Tenho mais o que fazer.
— Viu isso, mulher? Que desaforo! Nem perdi minha perna.
— Deixa a menina, homem. O almoço está quase pronto.
— Não tem uns torresmos pra tira-gosto enquanto espero?
— Quer saber de uma coisa, homem? Essa perna postiça ainda pode ser muito útil.
Rodrigo Novaes de Almeida é escritor, editor e jornalista. Autor de Carnebruta (contos, Editora Oito e Meio e Editora Apicuri, 2012) e A construção da paisagem (crônicas, com Christiane Angelotti, Editora Sapere, 2012), entre outros. Site e Twitter.
sobre humores ou fluidos | primeira semana bílis negra
Amiga, santo Uber, viu? Se eu precisasse cuidar de mim ontem, estava perdida. Nunca mais bebo daquele jeito. Sim, fui embora com o moço, o moreno baixinho. Era ruivo? Pois é, eu também lembrava dele ruivo quando a gente se beijou na festa. Ruivo, barbudo, alto. Mas a noite foi tão louca que no final ele virou moreno de cara lisa, todo atarraxado. Sei lá, também não entendi. Vamos pedir esse café e te conto tudo. Quer dizer, nem tudo, tem parte que não lembro. Apaguei, menina, logo depois de entrar no carro, deitei no banco de trás a caminho da casa dele. Oi? Quando te falei que ia pra minha casa? Eu não estava falando coisa com coisa. Abri os olhos e mal lembrava onde estava. Mas o destino era a casa dele, lá pros lados de Higienópolis. Acho que ele também tinha passado da conta. Sentava longe de mim, todo desconfortável, olhando o celular. Pouco antes a gente se agarrava. Bastou dar uma dormidinha e a gente nem se falava mais direito. O motorista ofereceu água, ele aceitou… acredita que nem perguntou se eu queria um pouco? Nossa, achei grosso. Uma hora, soltei: você deve me achar uma doida, né? Ele olhou espantado, disse não, imagine, normal, todo envergonhado. Se vacilar, estava passando mal, não faço ideia. Só sei que me bateu um bode e, quase chegando ao prédio do cara, decidi que precisava da minha cama. E sozinha. Foi o carro parar, segurei o braço dele e falei a real. Que era melhor cada um ir pro seu lado, que foi legal a gente se conhecer, mas que não era o momento certo e que, sinceramente, no dia seguinte ele nem ia lembrar do meu nome. Sabe o que ele respondeu, meio rindo? Eu não sei o seu nome agora. É, dá para acreditar? Ah, você me conhece. Eu sou calma, só não seja estúpido comigo. Mandei tomar no cu e escorracei o babaca do carro. O tiozinho do Uber me pediu calma, só que eu já estava puta da vida. Disse pra seguir até a Vila Mariana. De novo?, o senhor perguntou. E eu vou saber? Acho que tinha feito corrida pra lá pouco antes. Só confirmei e fui todo o caminho desabafando. Falei que homem não presta, que os caras se acham os fodões. Era um senhorzinho todo gentil, ouviu tudo, confirmando com a cabeça, e me deixou em casa sã e salva. Ah, teve um bêbado ruivo que me segurou quando eu ia entrar no prédio. Ele nem imaginava, escolheu o dia errado pra me encher. Acertei uma joelhada certeira nos bagos dele e fui embora. Ruivo, sim. Esse era ruivo, tenho certeza.
***
Amor, não peço mais Uber Pool sábado à noite. Você paga mais barato, mas acaba compartilhando viagem com tudo que é maluco. O que houve? Já te conto. Só preciso tirar os sapatos. Fique à vontade para me fazer uma massagem… Agora mesmo, lá na Paulista, vindo pra cá. Dividi com uma perua completamente chapada, você não imagina o estado. Pra começar, estava desmaiada no banco de trás quando abri a porta. Pensei por um segundo em me sentar na frente, mas, sei lá, entrei. Ela se ligou do mico e acordou meio desorientada. Fiquei na minha. Só que não parava de me olhar. Ah, sei lá se era bonita, não reparei, estava cansado e… ok, ok, até que era bonitinha, mas nada a ver. Sabe o mais engraçado? Fui ver no celular e não aparecia no aplicativo que eu estava dividindo aquela viagem com alguém. É, vai saber, essas coisas dão pau. Juro que fiquei afastado, sentado bem no canto, olhando pela janela. E ela me vigiando, noiada. Baita climão no carro. Tanto que, quando o motorista ofereceu água, mesmo sem sede peguei. Só pra disfarçar. De repente, ela vira pra mim: você deve me achar uma doida, né? Verdade! O que eu ia dizer? Sim, você parece psicopata, por favor, não me mate. Disse que não, claro. Fiquei feliz quando entramos na sua rua. Mas, nem te conto, chegando aqui, ao descer, ela segurou meu braço. O que eu podia fazer? Gelei. Não, foi tudo muito rápido. Ela veio com um papo de que curtiu a viagem, mas cada um tinha que seguir com sua vida e que eu nem ia lembrar o nome dela. Então, foi o que eu respondi, pô! Como eu ia lembrar se eu nem sabia o nome dela? A mulher virou um bicho. Precisava ver. Gritou, xingou, me empurrou pra fora do carro. Agora, sério, só tem maluco na noite de São Paulo.
***
Pois é, doutor. Eu não dou sorte com mulher. Quando acho que elas me dão bola… Não é justo terminar minha noite nesse hospital com uma bolsa de gelo no saco. Dói, claro… Caramba, nunca te acertaram os ovos? Eu fiquei um bom tempo na posição fetal lá na calçada. E o que eu fiz? Troquei a maior ideia com a gatinha, a gente se pegou gostoso e sugeri ir lá pro meu apartamento. Eu moro em Pinheiros, a duas quadras da balada… É o ou não o mais fácil? Só que ela quis me levar pra casa dela, lá longe, na Vila Mariana. Beleza, eu estava muito a fim, topei. Até pedi o Uber! Eu sei, eu sei, tinha bebido um pouco também. E a vontade de ir ao banheiro? Levamos uns vinte minutos até lá. Talvez menos. Admito que pesquei algumas vezes. Sei que quando o carro encostou, nem me despedi do motorista. Desci do carro. E xixi é psicológico, né? Seu cérebro sabe que está chegando e te deixa com mais vontade ainda. Eu ia molhar as calças antes de transar. O que teria feito? Corri pra uma árvore grande e mijei no canto. Foi ótimo. Ouvi o carro acelerando e nem imaginei que a menina foi junto. Não entendi nada. Fiquei lá que nem um idiota pensando em uma razão pra ela decidir não descer. Será que mentiu e aquele não era o endereço dela? Ou ficou ofendida com a minha bexiga solta? Porra, doutor, necessidades fisiológicas, diz aí. Melhor que pegar uma infecção urinária, não é? Então, fiquei uma meia hora sentado na sarjeta, na maior deprê. E não é que a dita cuja reapareceu… no mesmo Uber! Olha, gosto das coisas bem resolvidas e fui lá de boa. Ela já era outra. Do nada, soltou o joelho no meio das minhas pernas e me largou lá. Pode? Ficar brava por causa de uma mijadinha…
***
Filha, sei que a ideia desse Uber Pool é boa, mas as pessoas não estão se entendendo muito bem, não. Fui atender a uma chamada em Pinheiros e entrou uma moça e um rapaz no banco de trás. Primeiro achei que era um casal, mas depois vi que nem se conheciam, cada um cochilou de um lado. E quando a gente chegou ao destino, na Vila Mariana, pensava que os dois iam descer, encerrei a corrida e fui embora. Logo apareceu uma corrida compartilhada na Paulista e começou a ficar estranho demais. Peguei um sujeito moreno e fomos lá pra Higienópolis. No meio do caminho, eu vejo no retrovisor a moça da primeira viagem. Sim, ela continuava lá! Ou seja, compartilhando a viagem, não é assim que funciona? Não sei, no aplicativo não aparecia pra onde a moça ia. Ofereci água, segui o manual como se tudo estivesse certo. Até pensei que era esse que ela conhecia e não o outro, porque teve um momento no qual eles conversaram na maior intimidade. Pensei: se não aparece, é porque vão pro mesmo canto. Eu que sei como o aplicativo adivinha que conhecidos vão pegar o mesmo carro? Inteligência artificial, ué? Só que não acabou. Na chegada, de novo, só ele desceu. Ela ficou, depois dos dois baterem boca e tudo. Ela estava nervosa, pedi calma. Mas, espera, tem mais. Adivinha pra onde ela queria ir agora… Vila Mariana! De volta ao mesmo endereço de antes. Faz sentido? Pior que não aparecia nada no aplicativo. Àquela altura, achei melhor não entrar em detalhes e leva a mulher de volta. Falava muito. Preferi não contrariar. Dessa vez, desceu do carro e fiquei aliviado. E quem me aparece? O primeiro cara! E ela bate nesse também. Como vou saber? Preferi puxar o carro na ignorância a tentar entender o que aconteceu.
Alex Xavier, 42 anos, é jornalista refugiado na ficção. Publica contos no Medium: @alexxavier_27042