Ela sentia intenso prazer quando via alguma coisa queimando à sua frente. Havia algo naquilo, aquela cor que só o fogo tem, aquela imensidão que só o fogo tem. Como é que as outras pessoas não ficavam assim, hipnotizadas? Como resistiam à vontade insana, que a fazia coçar os pulsos, de querer queimar tudo? Aquele instinto desgovernado era mais forte que ela, um negócio primitivo que se remexia por dentro e a fazia ficar mal quando não conseguia queimar. Se ela não queimasse algo não se sentia viva. Chegou ao ponto de não poder dormir à noite.
Não se recordava direito de como aquela obsessão tinha começado. E isso importava? Talvez não mais. O que importava é que, como os pequenos hábitos de infância que se tornam importantes, ele se manteve pelo resto de sua vida. E provavelmente a última coisa na qual pensaria antes de morrer, dali a 67 anos, é que ela gostaria de ser devorada pelas chamas de vez.
Se não se lembrava do começo, pelo menos se lembrava, com certo prazer, de quando recolhia as folhas de árvores e papéis do lixo caídos no quintal, até formar uma pilha enorme para queimar. E arder, arder, arder. E ninguém estranhava, ninguém imaginava o prazer que ela ocultava, o que acontecia à noite, ali do lado de casa, no terreno baldio, onde ela se infiltrava escondida para jogar o saco de lixo no latão gigante e, com muito furor, acender um fósforo e lançá-lo para o fundo, vendo as chamas estalarem.
Às vezes, quando estava assistindo o fogo crepitar, sentava-se tão paralisada que parecia uma escultura. O que ela via de tão fascinante? Não se sabe. Mas seus olhos tinham interesse pelo fogo, e seu corpo era desejo de fogo, e ela inteira queria ser fogo, bem lá no fundo, embora soubesse que não era possível ser assim tão quente.
Quando se esgueirava para entrar no terreno, tomava cuidado para não ser vista nem antes, nem durante, e nem depois. Não queria ter de explicar o que não conseguia explicar sequer a si mesma. Não queria ter de acalmar a mãe dizendo que não estava doida para matá-los à noite, muito menos se defender dos vizinhos que comentavam sobre os prováveis drogadinhos que vinham ali usar o espaço vazio para se aquecer e fumar ou injetar.
— Coisa de drogadinho, isso aí. Você sabe, agora que eles se espalharam pela cidade, a gente não tem mais sossego — dizia Dona Lurdes, indignada, toda vez que passava na frente do terreno baldio.
E ela, muito quieta, via que Dona Lurdes tinha uma coisa má à sua própria maneira; por isso nunca dava nenhuma resposta, por mais que desejasse.
Sua vida ia seguindo, até que um dia, lá por novembro, alguém levou seu latão embora. E ela não queria se arriscar a queimar os papéis e folhas direto no solo, porque o fogo poderia se espalhar pelo mato seco e logo estaria queimando o terreno inteiro, e quem sabe acabasse por queimar sua casa.
Aquela tinha sido uma semana perturbadora. Ficou amuada, seus sonhos não eram sonhos, eram pesadelos, e quando acordava se deparava com a infelicidade. Nos primeiros dias, resistiu com bravura, mas foi se deixando levar, o humor caiu, a esperança caiu, e ninguém conseguiu entender por que ela estava daquele jeito. Ninguém, exceto seu pai.
Ela não sabia, mas o pai conhecia seu hábito escondido. Ela não sabia, mas quando ia se deitar, o pai jogava água fria nas cinzas e ficava à espreita para ter certeza de que o latão não ia virar e botar fogo no mato, e botar fogo na casa, e botar fogo no bairro todo.
Então, quando levaram o latão embora, ele com discrição tratou de arranjar outro. No sábado, convidou a filha desanimada para tomar um sorvete e fez questão de passar na frente do terreno, mesmo a sorveteria sendo para o outro lado, para que ela pudesse ver o novo objeto. E ela viu, e ela sorriu, e ele sorriu, e ninguém disse nada.
| conto do livro Doce olho do furacão e outras fúrias (Editora Penalux, 2021), disponível no [link]. |
Laura Elizia Haubert é doutoranda em Filosofia na Universidad Nacional de Córdoba. Graduada e mestre em Filosofia pela PUC-SP. Já participou de várias revistas literárias, entre elas Revista Subversa, Revista Gueto, Revista Ruído Manifesto e a Revista Ponto do SESI-SP. Publicou, em 2017, pela Editora Patuá, o livro Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul; em 2019, Memórias de uma vida pequena, pela Quintal Edições; e, em 2021, pela Editora Penalux, Doce olho do furacão e outras fúrias. Atualmente, vive em Córdoba, na Argentina.