aos 45 graus
de um salto
arranco lascas do meu couro derretido em ácido
e com os pés em carne viva chuto o lixo das esquinas de são paulo
bem alto
até cobrir a torre da catedral e de longe
saco uma foto do topo da bela dama que tem o ar de uma senhora medieva
com seu chapéu
de longe
à la coco chanel
o lixo de são paulo
mas são apenas restos sujeira excreção
apenas o cocô em zoom
os respingos da cultura ocidental
pintarolando as bordas dos pratos brancos dos que sentam à mesa
e arrebitam o charme de buñuel na ponta dos seus narizes pontiagudos de cristais de neve ácida
e mal escondem seu esgar de cera diante de tudo que não brilha
e não é branco
como a lua
então rio e choro rio e choro rio e choro
e grunho minha solidão nos buracos das bocas de lobo ardendo em febre
e toco gasolina e umas faíscas de um cano de prata até meu coração arder no fogo do inferno
em praça pública
e cavo sete palmos debruçada no cimento coberto de merda e rachaduras de um conserto mal feito de onde saltam pontas de estrelas feito pulgas famintas um estandarte de tangerina uma dançarina de cabaré antigo um ombro direito pisoteado pela madame cleci um espadachim seminu que sempre desce a rua da consolação o terceirizado nem aí com o serviço largado coçando o saco bem na cara do corre do centro o pipoqueiro do teatro que morreu de corona e os sem teto sem buraco sem cobertor sem prato sem papel higiênico sem água sem dois metros de distância sem vacina sem nada
e corro corro corro
e me afundo na areia revirada da represa imunda e deliro
atrás de ciscos e lascas de conchas de mil anos e me afogo
até esquecer esquecer esquecer
então esfrego com sal grosso minhas retinas nas pontas dos meus seios
e rasgo com os dentes embora moles meu útero seco para que a dor de doer sem pele sem mente sem sangue sem memória sem herdeiros
seja apenas o converter-me em ossos apaziguados
como baba de leite que jaz numa esquina qualquer
até explodir a lua cheia
e perder os sentidos de uma vez no seu
círculo polar
(In: Mulherio das Letras na Lua, Portugal, 2021)
Beth Brait Alvim é poeta, escritora e atriz, fez FFLCH-USP, especializou-se pela ECA- USP, e é mestre pelo Prolam–USP. Tem poesia e prosa em veículos nacionais e internacionais. Representou o Brasil nos VI, XVI e XVII Encuentros Bajo el asedio de los signos e no Festival International de Literatura de Sonora, 2020, 2021, ambos no México. Atua como júri e curadora, ministra oficinas, e se apresenta em saraus com Daniel Joppert e em performances multiartísticas com a Orquestra SPIO, sob a regência de Daniel Carrera. Tem resenhas literárias no antigo Entrelinhas da TV Cultura, vídeos sobre sua vida e obra e entrevistas na Rádio USP, na Rádio Unesp na Rádio Valentín Letelier de Valparaíso, Chile etc. Assinou direções teatrais, e participou como atriz em espetáculos; o mais recente, Mistério do Fundo do Pote ou Como nasceu a fome, de Ilo Krugli, do Teatro VentoForte, Em 2021 atuou, redramaturgizou e produziu o podcast História de lenços e ventos, de Ilo Krugli, para o Sesc Bom Retiro. Autora de Mitos e ritos (Scortecci Editora, 1987), Visões do medo (Escrituras Editora, 2007, Prêmio PAC-Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura do Governo do Estado de São Paulo), A febre e a mariposa (Editora Patuá, 2018), A noite e o meio (Editora Córrego, 2019), poemas. Ciranda dos tempos — espaços do desejo, 1ª ed. 2005, 2ª ed. 2006, ensaio sobre sociologia da cultura.