dez sonetos sentimentais (X)
Dentro da noite que construo aos poucos
para meu próprio uso, tudo é sombra
em que repouse a vista, salvo a lua
eventual, que me ilumine o espaço
que falta eliminar e meça o tempo
em que me esqueço a contemplar o tédio
que descasco e rejeito, em que dispenso
a luz do dia, excesso que não quero
ou não mereço, luxo que desprezo
sem sombra de arrependimento ou luto.
Aqui onde me resto tudo é meu
e mudo, e a noite me cai muito leve
sobre os ombros frios, como um manto, ou como
um outro pano mais definitivo.
(de Liturgia da matéria, 1982)
nenhum mistério (X)
Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços
de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.
Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.
É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.
(de Nenhum Mistério, 2018)
fim de verão (XIV)
A noite total tarda a chegar:
aproveite-se a luz que há.
É um lume sensato, difuso,
que não dissipa o lusco-fusco
porém o disfarça e matiza,
atenuando o tom de cinza
com laivos quase sinceros
de azul, vermelho e amarelo,
proporcionando às retinas
já habituadas à rotina
de emprestar às sombras de agora
tons subtraídos da memória
uma oportunidade tardia
de gozar um quase dia.
Quase, sim: melhor do que nada,
melhor que o nada.
(de Fim de verão, com previsão de lançamento para 2022)
Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1951) é professor de tradução e literatura na PUC-Rio. Publicou sete livros de poesia, dois de contos e três de ensaios. Traduziu mais de 120 livros do inglês, incluindo obras de ficcionistas como Jonathan Swift, William Faulkner, Henry James e Thomas Pynchon, e de poetas como Byron, Wallace Stevens e Elizabeth Bishop. Ganhou diversos prêmios literários, como o Portugal Telecom, o da Associação Paulista de Críticos de Arte e o da Fundação Biblioteca Nacional.