cinco poemas de Daniel Glaydson Ribeiro

não neste hoje depois de ontem

Chegou o momento de lembrar da fome
e da sede, porque ouviu-se uma orquestra
de estômagos e intestinos e das peles labiais
ressecadas e brancas, quebrando ao chão.

então foi preciso chamar os peixes,
trocar com eles uma ideia, encantá-los
e comê-los. e aprendeu-se a mergulhar
para colher as verduras submarinas.

e descobriu-se que havia carvão
e papel demais no convés,
e disso fizeram filtros e filtraram
a água do mar.

descobriu-se simultaneamente uma
infinidade de armas, munidas, enga
tadas, quase já miradas para suas
mesmas cabeças, mas nelas ninguém
tocou então, pois não havia polícia
nem milícia, juízes, tribunais, poderes
para acusá-les, então mantiveram-se sãos
e não houve assassínios.

deixaram-nas munidas, talvez mesmo
engatadas, para o caso de piratas,
companhias das índias ou marinhas.

esquizocapital

Era uma vez minha terra
tinha palmeira e palmares
hoje tudo queima
e a Flor-
esta
cinza pelos ares:

cinza que cobre estrelas
fumaça enforca dores
ouro-lama afoga gente
num rio tóxico
Rio Doce

os quilombos e as aldeias
que diziam “demarcadas”
são o intermitente cenário
de guerra das bandeiradas

minha terra, mina
nem sei mais se é terra ou veneno
e tudo continua sendo
para o progresso
de São Paulo.

distopia

o bicho banha-se no lixo
ornamenta seu peito com o perfume dos plásticos
faz-se distopia e viraliza

expõe o seu corpo para o estupro
nadando em milícias e metralhadoras
para compor novos mitos

sobrevoa a sobrevivência das paisagens
sapateando demência pelas aldeias
passando a boiada no vazio do gênesis

lágrima

o silêncio da voz que se fez lágrima
e foi
numa correnteza

como

…se ao poema coubesse ainda e apenas
lê-lo, com humana voz sem excesso
no ritmo puro do tempo disperso
como se houvesse raças e antenas,

numa ausência de qualquer artifício,
como se eu detrás duma cortina,
sumisse, e esta língua que imagina
já não fosse a máquina do início.

Tal como a luz do sol ou a da lua
as nuvens, os raios e tempestades
são sublime teatro-transcendência,

a Voz é meu corpo a dançar, eu nua;
língua é ruído de todas as vontades,
o poema: barulho-excesso-essência.

Daniel Glaydson Ribeiro é natural de Picos, Piauí; pai de Anita, Tarsila e Bento. Autor de Pulsão de língua (Recife: Selo Mirada, 2021). Coorganizou o Almanach Muda junto ao Grupo Ausgang de Teatro, quando publica o ensaio “Poesia Muda: Butes Ostranênio”. Outros diálogos, artigos e traduções constam em revistas e sítios no Brasil, Argentina, México e Cuba. Na tese de doutorado Carnifágia malvarosa: as violações na Suma Poética de Jorge de Lima (Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH, USP), indicada ao Prêmio Capes, publica material renegado da Invenção de Orfeu. Hoje, é coordenador de Extensão e professor no Instituto Federal do Piauí, campus Cocal. Para um blog bissexto E-scritura.