Carro, estrada, cheiro de carro, calor, náusea, parar (vai, vai), vomitar. Por vezes dava para controlar. Mas tinha de olhar para frente, só para frente, como minha avó me ensinou: “Não desvie o olhar. Encare lá para frente e não vire o rosto. Só pare quando chegar”. E funciona até hoje. Quase sempre.
E o trânsito? O carro estático, minha mãe reclamando da marginal, podia ter voltado de ônibus, mas essa hora é perigoso, filha. Trem vai rápido. Mas não resolve, ele para a 2 quilômetros de casa. Tornei-me independente quando descobri a bicicleta para trajetos urbanos. Mas e para ir mais longe?
Por mais que adorasse viajar, estar em outros lugares, minha relação com carro sempre foi conflituosa. Era o mal necessário para chegar onde queria, na falta de transportes mais civilizados (e que não me enjoassem).
Isso até o dia da ponte João Dias.
Ele dirigia. E dirigia devagar. Como devagar sempre tocou a vida. Falava devagar, ria devagar, gostava devagar, desgostava mais devagar ainda. Eu estava ao lado, por vezes ouvia o que me dizia, mas basicamente curtia a viagem lenta por uma marginal excepcionalmente livre. Talvez por conta do momento incomum.
A ponte do Jaguaré, escuríssima. Na cidade universitária podia fazer o anel, chegar em algum lugar da Praça Panamericana, talvez um sanduíche, a fome crescia. Só pensei. Na Rebouças vertigem, mas não enjoo. As luzes vinham e passavam, traços de outros veículos — uma cor, um zumbido — mas nada ficava lá com a gente.
Cidade Jardim? Como cheguei aqui? Você me contava de um filme que viu. Ou era livro? Sonho? Sonho sim. Eu entrava no sonho e já não sabia se estava no seu sonho ou na avenida. Avançamos. Ali sairíamos para Bandeirantes, com sua discreta mas indisfarçável inclinação rumo a outros lugares. Não. Você seguiu. Qual minha avó, sem virar. Exceto que seus olhos, de soslaio, procuravam-me. “Cuidado para não enjoar”, quase alertei. Mas não. Ele que sabe de si, quem sabe é homem que não se abala?
Ponte do Morumbi leva à minha irmã, ia comentar. Mas a boca só murmurou o calor de agosto. Até onde iríamos? Tem combustível para tanto? Será que não faríamos falta, será que pendurei a roupa da máquina, será que as frutas vão estragar? Fechei os olhos e frutas, roupas e falta desapareceram.
E daqui para frente pouco lembro. Lembro sim, mas não há palavras, porque palavras não chegam. Em uma São Paulo tão barulhenta são poucos e inconfundíveis seus silêncios. Precisamos deles. Por isso, peço, imploro. Por favor, Prefeito, mude o nome dela. Não é João Dias. É ponte do Silêncio.
Luciana Pinsky é, originalmente, jornalista, com passagem pela revista Época e pelo jornal Valor Econômico, entre outras publicações, e se enveredou para a ficção, especialmente para crônicas. Publicou um romance, Sujeito oculto e demais graças do amor (Editora Record). Atua, desde 2005, como editora de livros pela Contexto. E mantém seu blogue de textos ficcionais: http://www.altamentecronicavel.com.br/