aprender outra liberdade, de Wanda Monteiro

wanda_capaPreso, numa exígua cela, dentro de um quartel de exército e sob uma excessiva segurança, Miguel ficou por muitos meses em total incomunicabilidade. Miguel nunca imaginara experimentar, um dia, essa incomunicabilidade que lhe impunha o silêncio implacável de toda e qualquer voz humana: Ninguém podia lhe dirigir a palavra, nenhum oficial, nenhum soldado e nem sequer um advogado poderia lhe dirigir a palavra. Era uma incomunicabilidade quase absoluta que só era quebrada pelos torturantes interrogatórios, onde a voz dos oficiais do comando militar martelava sua mente até o ponto em que ela não respondesse mais às lesões perpetradas contra o seu corpo físico.

A visita da esposa, dos filhos, dos pais e dos irmãos estava, terminantemente, proibida. Nem na mata densa do Curuá, região amazônica, onde ele havia se escondido por muitos dias, Miguel experimentara essa incomunicabilidade. Lá, havia o correio da mata, levado pela voz dos mateiros, pelos posseiros de terras e pelos ribeirinhos em suas canoas. Chegavam também as notícias pelo seu rádio transistor: essa era a rede de comunicação e espionagem que davam a Miguel, com segurança, as localizações e o movimento de seus perseguidores. Essa rede também levava à Miguel outras noticias: de sua cidade sitiada e militarmente ocupada, de seus pais em confinamento, de seus companheiros e de seus amigos próximos sob ameaça e tortura, e das patrulhas militares seguindo seu rastro para executar sua prisão. Mas, havia a voz da floresta: o canto dos pássaros, os sons dos animais selvagens, o farfalhar das folhas nas imensas árvores nativas, o som das águas nas corredeiras dos rios e igarapés, a música do vento e a música da chuva. Essa era a voz da mata, dos rios e dos animais que Miguel conhecia e compreendia, tal era sua intensa conexão com a natureza.

Depois, a caçada, a captura forjada e a brutal exposição de sua prisão na senda do rio e em terra firme. Sim, Miguel depois de pagar em dinheiro aos oficiais do exército por sua vida, se entregou para poupar a vida de seus pais e de seu irmão e para evitar que sua esposa e filhos sofressem mais violências. Todos que lhe eram próximos estavam sob constante ameaça pelos militares que cumpriam as ordens do comando militar. Ele fez com os militares um pacto: o de confirmar sua captura e não a sua rendição mediante um acordo financeiro.

Miguel foi exposto como um animal, amarrado, quase nu, primeiro em cima de caixotes dentro da embarcação que percorria o rio. Depois, ele foi exposto em um jipe do exército que percorreu as ruas de sua cidade natal. Ao chegar ao aeroporto da capital de seu Estado, Miguel foi exposto sob os holofotes da imprensa rendida ao sistema imposto pelos militares: os mesmos militares que promoveram o famigerado golpe contra a democracia de seu país.

Na incomunicabilidade da cela, havia a conexão de Miguel com as vozes de seu imaginário poético e mítico. Com as vozes de seus rios, de seus igarapés, de seus igapós, da mata densa de sua cidade natal. Havia também as vozes de afetos de suas histórias e sonhos: Miguel não podia ser ouvido e nada ouvir além dessas vozes. A cada amanhecer, a tortura de comer, beber e fazer suas necessidades orgânicas, mais íntimas, sob a mira de uma metralhadora apontada para sua nuca ou para sua testa. A cada anoitecer, dormir com os sons de sirenes, toques de recolher, com batidas de canos de ferro sobre a porta da cela e com o som do revólver jogado para dentro de sua cela. Na prisão, na mesma tortuosa hora de cada noite, um revólver era jogado para dentro da cela de Miguel. Ele já não se assustava mais e esperava por aquela cena. Depois que a arma era jogada, ele deixava passar algumas horas, e empurrava o revólver para fora da cela, pela mesma fresta em que ele era jogado. Ele sabia que aquela cena se repetiria dias e talvez meses, até que ele perdesse o controle. Como ele era um homem público e os olhos da imprensa local estavam voltados para sua prisão celular, ele não podia ser morto facilmente. Para o comando militar, um suicídio seria um fato conveniente para aquelas circunstâncias. Miguel sabia que aquela incomunicabilidade imposta tinha o deliberado propósito de enlouquecê-lo e de levá-lo ao suicídio.

Mais um amanhecer, a mesma tortura que parecia outra e sempre outra, mas era a mesma. Outra tarde, que parecia a mesma, sem sol, sem ar, sem vento, sem voz: a mínima portinhola de ferro de sua exígua cela se abre: Não era um oficial, mais uma vez, lhe ordenando com os olhos que o acompanhasse para mais um agonizante interrogatório. Não, não era, pelo capacete, dava para ver que era um soldado.

— Doutor! Sou eu, o senhor não tá me reconhecendo? Sou eu, filho de sua comadre, aquela que o senhor ajudou a reconhecer, na forma da lei, o nosso pedaço de terra, o senhor lembra?

Miguel, atordoado com a luz invadindo a cela e mais do que com a luz, com aquela voz que lhe quebrara um implacável silêncio, não conseguia ver nem os olhos do soldado, nem sua feição e mal conseguia lembrar se era de tarde ou se anoitecia.

— Por que estás falando comigo? Não sabes que tu podes ser preso por me dirigires a palavra? Como te chamas? Como chama tua mãe?

— Ah doutor, sou eu Firmino, mas olhe, hoje eu consegui furar esse cerco pra falar com o senhor, prometi pra minha mãezinha que daria notícias do senhor pra ela. Olhe doutor, antes que chegue mais um da tropa, deixa eu lhe dizer, eu tenho tanta pena do senhor. O senhor tá aí tão preso, preso na pior cela, preso nessa pior prisão e preso nesse silêncio. Tenho tanta pena do senhor.

No entreato desse diálogo inusitado e nervoso com o soldado, Miguel pensou no significado das palavras: pena, prisão, silêncio. E num átimo de tempo, lhe veio à mente a palavra liberdade. E lhe veio a mais clara ideia de que ele era livre para pensar. E de que o pensamento era o seu chão, era a terra onde podia nutrir, livremente, seu imaginário e suas ideias. O pensamento era a terra em que ele pisava. Por todos aqueles intermináveis meses, a incomunicabilidade de Miguel com o tudo de fora da cela o fez entrar em contato e em total sintonia com o tudo que vivia dentro de sua mente e que se movia no pensamento.

“Me sentia esmagado pelo ferro da porta, pelo ferro da grade e pelo cimento do chão, das paredes e do teto. Primeiro foi o espaço. Depois foi o tempo. O espaço, a princípio, me limitava a visão e a audição dos passos cadenciados dos soldados, não entendia o que eu tinha lido em Martin Heidegger: que escutando, o pensamento fala. Pois fala do pensamento é escutar. A escuta é a dimensão mais profunda e o modo mais simples de falar. O barulho do silêncio constitui a forma originária do dizer.” (posso ouvir as palavras de Miguel escritas em seu livro de ideias)

— Firmino, não tenha pena de mim. Tenhas um pouco de pena de ti, estás mais preso que eu.

— Como assim doutor, o senhor aí tão preso e olhe eu tenho até medo do que pode lhe acontecer, eu ouço dizer pelos oficiais que o senhor é o mais perigoso dos subversivos. Mas olhe, eu digo pra mim mesmo que mesmo não entendendo nada do que eles alegam dessa tal subversão, eu digo de sua bondade com o povo lá do nosso povoado feito com esmero na beira do rio. Mas, a modo que eu tenho é pena sim. Me desculpa o senhor. Mas como assim que eu estou mais preso que o senhor, onde está a sua liberdade?

— Firmino! Estou mais livre do que tu porque eu ainda posso pensar. É no pensamento que mora a minha mais íntima liberdade.

Um som alto de uma sirene de recolher rasgou o espaço e fraturou o tempo daquele breve e proibido diálogo. Firmino fechou, rapidamente, a mínima janela de ferro da cela, voltou para seu posto, bateu continência e ficou naquela sua prisão. Ele ficou preso em seu gesto de prontidão e vigília, com seus olhos mirando o vazio das distâncias.

Miguel fechou os olhos, respirou profundamente, e voltou para o chão do pensamento. Nesse chão, Miguel voltou a pensar, livremente.

| conto do livro Chão de Exílio (Editora AMO, 2021). |

Wanda Monteiro é advogada, escritora, uma amazônida nascida à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer, Pará, Brasil. Obras publicadas: O Beijo da Chuva (Editora Amazônia, 2008); Anverso (Editora Amazônia, 2011); Duas Mulheres Entardecendo (Editora Tempo, 2015), em parceria com a escritora Maria Helena Latinni; Aquatempo (Editora Literacidade, 2016); A Liturgia do Tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019); Aquatempo Aquatiempo, tradução versão em espanhol de Bianca Guzzo (Editora Patuá, 2020).