Pois que, Montezuma, naquele tempo, vendo-se ante as tribulações da chegada dos espanhóis, ainda na feição da profecia, mandou que vasculhassem a nação em busca de uma nova pedra sacrificial para os rituais de esfolamento. Os deuses andavam insatisfeitos, tinham gana, demonstravam sua ira por meio da natureza ou das traições humanas. Era por isso que a cidade de Tenochtitlán se encontrava à mercê das agonias do rei, torturado dia e noite pelos prodígios sucessivos que os mágicos e sacerdotes anunciavam, lendo nos céus e por meio de visões e sonhos os sinais de grande transformação.
E os tenochcas encontraram a pedra, numa colina alta na província de Chalco, uma pedra monumental que demandou a ajuda de centenas de homens de cidades confederadas para que fosse retirada de lá. Foram feitos esforços ao limite das capacidades físicas, e então foram feitas conjurações e entoados cânticos, aspersões rituais e marcações mágicas. Só assim a pedra obstinada cedeu e foi arrastada, com alavancas e cordas, por estradas e aldeias. Mas as cordas se rompiam, sucessivamente, as alavancas emperravam, sem trégua, e as gentes de províncias diversas e de cidades aliadas a Montezuma já se encontravam à beira da desistência. E a pedra disse, de voz própria e contundente, a pedra disse não querer ir a Tenochtitlán. Iria, se fosse o caso, até onde lhe aprouvesse. Era seu direito não ir. O rei, ao saber da teimosia da pedra e ao ser informado de suas palavras, em princípio não acreditou na história dos mensageiros e mandou que fossem sacrificados.
Enquanto isso, a pedra insistia em se pronunciar, a cada tentativa fracassada de demovê-la de onde estava, a meio do caminho para a capital mexica.
Será um mau sinal se eu chegar a Tenochtitlán. Não devo estar presente para assistir à catástrofe. Digam ao seu senhor Montezuma que já é tarde, o que acontecerá com o povo dele está posto e é destruição. Foi mais ou menos isso o que disse a pedra. E depois, vendo que os homens, ameaçados por Montezuma, não se conformavam em ser vencidos naquele empreendimento, deixou-se a pedra finalmente arrastar com facilidade.
Diante de Tenochtitlán, a pedra encontrou os festejos do povo. Foi recebida com incensos e cantoria, oferendas e sacrifícios. E ordenou-se que conduzissem a pedra por uma ponte de vigas grossas e maciças, disposta sobre um canal profundo, a fim de que a pedra entrasse pela porta principal da cidade. A pedra aquiesceu e seguiu, levada pelo cortejo, o rumo imposto por Montezuma. No meio da travessia, no entanto, foi ouvido por grande número de gente o estertor da madeira ao ser arrebentada. A grande pedra tinha desabado sobre o canal profundo, levando consigo dezenas de homens. Em fúria e incredulidade, nem mesmo diante dessa tragédia quis Montezuma desistir da pedra. Mandou mergulhadores com cordas para encontrá-la no leito do canal e trazê-la de volta à superfície. A pedra haveria de cumprir o desígnio que tinha sido, por ele, descendente dos deuses, determinado. Mas os mergulhadores retornaram sem nada. Não a encontraram no fundo do canal. Tendo vasculhado por todos os lados, verificaram que ela já não estava naquelas águas.
Alguns dias depois, chegou notícia do paradeiro da pedra. E Montezuma ficou sabendo que, em verdade, ela repousava em seu lugar de origem, ainda coberta de oferendas, ainda manchada do sangue dos sacrifícios.
E uma mulher, no século vinte e um, tendo organizado alguns itens pessoais em uma pequena mala, e tendo tomado o caminho de um aeroporto e lá chegado, e tendo entrado pelo portão de embarque, andado alguns passos dentro do corredor móvel que conectava o prédio a uma aeronave, de repente dava as costas e fazia o caminho inverso.
Naquela manhã de sol obstinado em janelas sujas de carros e ônibus, a mulher atravessou a cidade com o pensamento voltado a uma viagem que tinha feito há anos. Fotografou, então, as colinas e os montes, rondeou os vulcões do Vale do México, andando principalmente pelos arredores do município de Chalco, em busca de uma pedra monumental que correspondesse ao descrito nos relatos astecas da Conquista.
Tinha escrito, há poucos dias, sobre essas fotografias. Escreveu também sobre as ilustrações dos manuscritos mexicanos de antes e de poucos anos após a invasão dos espanhóis. Era o seu tema para a palestra do congresso, alguma coisa oscilante entre a arqueologia e o mito, entre a história monumental e o fenômeno poético primitivo que lhe impelia a manusear uma câmera. Agora não conseguia fazer sentido de tudo aquilo. Não é isso, pensava, relendo suas anotações e reflexões escritas no computador. Não é isso. E antes mesmo que o táxi parasse na frente do edifício, ela se disse, uma confissão há muito protelada: eu gostaria de fazer outra coisa.
Ao chegar em casa, viu-se no espelho oval do outro lado da sala, como quem não esperava se ver, por entre flores e folhagens meio murchas, amareladas. Tomada de assalto pela própria imagem, de mala na mão. Tirou a câmera portátil da mala e apontou para o espelho. Mais tarde escreveu sobre o espaço em branco da polaroid: Pedra de Montezuma. Datou a foto e a escondeu entre as páginas de um livro volumoso que trazia os códices astecas.
| conto do livro O Congresso da Melancolia (Editora Urutau, 2021). |
Léo Tavares nasceu em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, vive e trabalha no Distrito Federal. É Doutor em Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Pesquisa a relação entre a palavra e a imagem. Autor dos livros de contos O Congresso da Melancolia (Editora Urutau, 2021), Ruibarbo do deserto (Editora Patuá, 2019) e Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Modelo de Nuvem, 2014), prêmio Contista Estreante, pela FestiPoa Literária, de Porto Alegre.