nós só compreendemos muito tempo depois
é perto das quatro, o sol incide
obliquamente sobre as palmeiras
o vento rege uma canção entoada pelos
pássaros e cigarras —
aquela que veio de nenhum passado
agora, uma ave branca cruza o silêncio
nós só compreendemos muito depois
esta paisagem, este corpo, esta travessia
compreendemos numa estação diversa
quando as folhas estão secas no chão
ou sabem à resina
tudo está calmo e quieto
mas ninguém sabe os mundos que o coração
do homem abriga
os bois se juntam no pasto
e tangem os rabos contra as moscas
também meu coração tange algo
que não sei nomear
estamos no presente como em um lago
onde pousamos os pés
e não sentimos o assoalho
e de repente se faz muito tarde
quando desejamos regressar
e abrimos a porta da memória,
há um caminho que muda
a cada entrada
então, na curva de tantos dias,
deixamos um pouco do passado
agora, o musgo cresceu
range a porta
damos talvez por uma falta
mas não saberíamos dizer
mesmo isto —
nós só compreendemos muito depois
o cheiro da tangerina
todas estas coisas são muito antigas
a tarde
o sol
a meio caminho do horizonte
um homem
sem outra companhia que seu pensamento
navegando na tarde imóvel
todas estas coisas são muito antigas
o cheiro da tangerina
impregnado nas unhas
as cortinas esvoaçando na sala
os poliedros de luz que o sol faz no assoalho
tudo isto é muito antigo
a tua silhueta
contra o anteparo da janela
o halo distante da lua
na noite ausente
muito antigos
um homem
e a vontade de núpcias
impossíveis com o universo
à luz da manhã todas estas coisas começarão mais uma vez
e a manhã e tu mesmo estarão sob o sol
sem o frescor da criação
meditação em Ouro Preto
chove
e ao tombar a chuva sequer descreve uma melodia
o silêncio do estio retumba em praças lúgubres
e o tempo escoa no ciciar da noite sem cortejo algum
as esferas estão vazias e nada acolhe o teu desejo
a tua carne jaz triste em um colchão de hotel
entre os pilares inexistentes do dia, não irrompe
um bocejo de tédio dos deuses ou dos bêbados
o coração do tempo se profanou definitivamente
escutas apenas uma pancada forte nas paredes
mas não há ninguém do lado de fora
são as paredes do teu corpo que estertoram
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife, onde vive. É autora de Juventude (Editora Reformatório, 2018), vencedor do Prêmio Maraã de Poesia 2017.