nove, poema de Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida

Quem é que poderia imaginar que ela seria nove ao invés de dois. Que a vida seria a linha em redemoinho permanente. Que seu corpo seria o fio de um discurso muito longo girando ao redor do mesmo tema. Quem é que poderia imaginar que ela seria a única personagem do livro que eu escreveria. Quem é que poderia imaginar que assim é que ela viveria para sempre. Que sexo era só o que seria diversão. Quem é que poderia pensar que ela viria caminhando em direção oposta. Quem é que poderia imaginar que ela declamaria versos em voz alta. Quem é que poderia imaginar que ela voaria como pássaro selvagem na floresta não tão encantada assim. Quem é que poderia pensar que ela seria capaz de falar duas línguas ao mesmo tempo. Quem poderia pensar que ela se dedicaria à pesquisa de fundamentos básicos da sociologia. Que driblaria questões que não eram físicas. Que teria pleno domínio de arte e matemática. Quem poderia imaginar que ela tomaria duas doses de conhaque na primeira noite de inverno. Quem é que poderia imaginar que ela teria este longo cavanhaque. Que dela seria um cavalo chamado Oberon. Quem é que poderia imaginar que ela trocaria a noite pelo dia. Quem poderia imaginar que um dia ela vestiria quimonos e gravatas. Quem é que poderia imaginar que o que ela mais desejaria na vida era ter destino comum. Tal qual no primeiro dia em que saiu de casa para andar de bicicleta. Quem é que poderia imaginar que um homem inteiro não seria feito de meias palavras. Que o que ele diria ontem seria o que hoje ele silencia. Quem é que poderia imaginar que a casa é o que restaria onde ela já não mais estava. Quem é que poderia imaginar que haveria vento deslizando na superfície da terra. Quem é que algum dia poderia pensar que uma nuvem faria sombra na topografia. Quem é que algum dia poderia imaginar que haveria flores no jardim de todos. Quem é que poderia imaginar que dali a poucos minutos alguém partiria para nunca mais voltar. Quem é que poderia imaginar que ela seria um só. Que às vezes ela seria ele. Que ele nunca estaria fora dela. Quem diria que a vida seria feita de milhares de fragmentos. Quem diria que um dia isso tudo passaria. Quem é que poderia imaginar que haveria tanto drama na última hora. Quem é que poderia imaginar que ela teria o mínimo de disciplina. Para colocar talheres sobre a mesa. Para organizar livros na estante em ordem decrescente de tamanho. Para levantar hipóteses, para relembrar isso e aquilo outro. Quem diria que ele vestiria saia plissada no verão. Quem diria que dali a poucos dias seria um vestido verde. Quem diria que um dia ela ainda colecionaria pesos de papel. Quem é que poderia adivinhar que ela iria gostar de Picasso, mas não de Pissarro. Quem poderia pensar que não haveria regra sem exceção. Quem diria que o mínimo de perspectiva seria fundamental para atravessar a rua. Quem diria que o traço no desenho seria diagonal. Que qualquer julgamento seria sempre parcial. Que o sentimento seria mútuo ocasionalmente falando. Quem quer que fosse imperador. Quem é que poderia imaginar que ela não teria coragem. Quem é que poderia duvidar que ela teria medo. Que daqui para a frente nada seria como antes. Que ela não seria igual a ele. Quem diria que ela não teria cílios postiços. Quem é que poderia imaginar qual seria a cor dos olhos dele. Quem diria que não haveria mais tempo para pensar no primeiro dia do ano. Parábolas seriam feitas disso. Antenas parabólicas também. Quem é que poderia imaginar que ontem de madrugada ela voaria tão alto. Quem é que poderia imaginar que ela cairia da escada antes do final do dia. Que aquela que não era ela que ali estava na minha frente. Quem é que poderia imaginar que ela teria dois casamentos na vida. Que o amor também seria feito de desencanto. Desencontros seriam fenômenos relativamente comuns. Quem é que poderia imaginar quantos anéis ela teria nos dedos. Quem é que poderia pensar na luz acesa hoje cedo. Quem é que poderia ter lembrado disso. Quem é que poderia imaginar o que ele levaria no bolso do casaco. Quem é que poderia imaginar que ele sairia de casa para nunca mais voltar. Que deixaria um par de sapatos para trás. Além de quadros na parede traje esporte fino e outras recordações. Quem é que poderia pensar que ela embarcaria no próximo trem para Genebra. Quem diria que ela teria fôlego para atravessar a longitude do corredor. Quem é que poderia imaginar qual seria o resultado final do exame laboratorial. Quem poderia saber qual seria o diagnóstico final. Quem é que poderia imaginar que ela cruzaria um oceano inteiro a nado. Que haveria ritmo nas braçadas. Quem diria que ela não saberia de nada, mas que também não almejaria nada além disso. Quem é que poderia imaginar que ela viveria setenta e dois anos e dois dias. Que a vida passaria como um suspiro na janela. Que hoje ela teria um monóculo inglês na mão direita. Que depois o monóculo ficaria guardado na gaveta do aparador. Quem é que poderia pensar que ela também colecionaria mapas, além de pesos de papel. Quimeras e o que mais. Do que ela seria capaz se não tivesse medo. Quem é que poderia imaginar que sobraria sempre um minuto do tempo que se perdeu em pensamento. Que de antigas memórias viria uma jaqueta de veludo novinha em folha. Quem é que poderia pensar que ela escreveria uma carta tão longa em plena sexta. Quem diria que seria uma carta de amor monumental. Que o conteúdo da carta seria puramente sentimental. Que ela seria personagem principal. Quem é que poderia falar de seu próprio destino. Quem diria que ela ainda veria tantas crianças correndo no meio da rua. Quem seria a mulher com quem trocou meia dúzia de palavras hoje de manhã. Quem seria o homem que cuidava dela no hospital. Quem seríamos nós às cinco da tarde. Quem seríamos nós quando a noite cai. Quem é que morre quando o outro nasce. Quem poderia pensar que dali a meia hora já seria outro dia. Quem poderia pensar que ela não voltaria atrás. Quem é que poderia imaginar o que viria adiante. Quem é que poderia pensar no que sempre acontece de repente. Quem pensaria igual, quem pensaria diferente. Quem saberia dizer o que não sente. Quem ela pensaria que era ele agora mesmo. Quem poderia imaginar que ela não fosse dourada. Que não tivesse nuvens nos olhos. Quem é que poderia imaginar que ela não teria eira nem beira. No que pensaria ela ao abrir a janela do quarto. No que pensaria ela ao pensar nele e vice-versa. Quem é que poderia imaginar que ela seria mestre na arte de desaparecer sem dar notícia. Que faria um curso de caligrafia japonesa. Quem imaginaria que um dia ela seria assim. Quem seria ela despindo as roupas no banheiro. Quem seria ela fechando os olhos depois de apagar a luz. Quem seria ela nos braços dele. Quem seria ele aos olhos dela compasso e espera. Quem teria sido ele na noite passada. Quem é que poderia imaginar que ela não soubesse disso. Quem é que poderia pensar no que não faz falta. Quem é que poderia imaginar que ela faria uma anotação qualquer. Que depois disso ela apagaria a luz de novo. Quem é que poderia imaginar que ela ficaria em silêncio. Quem é que poderia imaginar qual seria a direção do vento. Quem é que poderia imaginar que um dia ela sairia correndo na direção do mar. Quem é que poderia imaginar qual seria a hora exata em que isso aconteceria. Quem poderia dizer que horas eram quando ela não voltou mais.

Maria Fernanda Vasconcelos de Almeida é formada em Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado — FAAP e funcionária do Itamaraty desde 1994. Já morou em Berlim e Nova York, atualmente reside em Londres. Colecionadora de palavras, profundamente interessada em tudo aquilo que acontece ao redor.