Elas marchavam sob o sol (Editora Dublinense, 2021)
Mortas podem ser as pessoas, mortas podem ser ideias e revoluções enterradas às pressas, antes que floresçam e mudem definitivamente a ordem das coisas.
Mortas podem ser as mulheres, enterradas vivas pelo fato de não serem vistas, quando, de fato, elas são os planetas, as deidades, o fundo do mar, tudo o que é incontável ou impossível de se medir.
Uma lenda que trago comigo: em um passado remoto, havia uma velha, ela vivia em um deserto e soprava ossadas que encontrava pelo caminho. Havia velas acesas no interior do seu corpo antigo.
Ao despejar sobre as ossadas o calor das suas entranhas, a velha as preenchia com carnes e narrativas que delineavam formas nada correspondentes às necessidades de consumo dos homens.
Desertos são oceanos extintos: os esqueletos se transformavam em conchas e somente depois se tornavam corpos. Esse era o seu pequeno milagre.
Ela sempre se assombrava com o acúmulo de ossos sobre o chão. Em posições variadas, eram favoráveis ao reconhecimento de que haviam pertencido a mulheres.
A velha caminhava entre eles como quem não quer pisar em ovos, ela era uma jardineira de flores calcificadas. Naquele canteiro sem água, havia um registro raro e diversificado. A secura pode conter germinações e reter temporalidades, embora sejamos convencidos a acreditar no contrário.
Dia a dia, a velha regava suas joias inertes com o ar e o fogo, com um passear ritmado e um canto que, de tão rouco, parecia ter nascido no início do mundo. Naquele lugar em que todos os acontecimentos são ideias não projetadas na realidade linear, pólen em suspensão, raio de sol sem parada fixa. Ela observava as ossadas como se as acariciasse.
Exalava chamas e reconstituía o que estava perdido — não apenas os corpos, mas a beleza oceânica deles, aquela que está contida no movimento e os define na ausência de limitação, na geometria dinâmica das ondas, no cheiro do sal.
Elas marchavam sob o sol, lançado 4 anos depois de seu último romance, apresenta narrativa sobre aprisionamentos relacionados ao feminino e a corpos dissidentes. Saiba mais no [link].
Cristina Judar nasceu em São Paulo, é escritora e jornalista, autora do romance Oito do Sete, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e finalista do Prêmio Jabuti do mesmo ano. Escreveu o livro de contos Roteiros para uma vida curta (Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014) e as HQs Lina e Vermelho, vivo. Seus textos curtos também figuraram em diversas antologias publicadas no Brasil e no exterior. Elas marchavam sob o sol é o seu segundo romance.