a agência, conto inédito de Micheliny Verunschk

Era mais uma sexta-feira quente como outras daquele mês, o barulho do ventilador se repetindo como um mantra, seu ciclo sonolento e desalentador. Eu gostava de me imaginar como Dupin, decadente em Montmartre, mas a verdade é que me faltaria sempre o brilhantismo intensamente humano do personagem de Poe. A chamada que me levou ao Trevo do Corredor me sacudiu do marasmo, um corpo dentro de um carro esperava pela composição de uma narrativa. E se eu não me mexesse, ela permaneceria congelada, à espera de alguém que a fizesse se movimentar.

O homem estava sentado no banco do carona. A cabeça fora esfacelada por cerca de 15 tiros e os dedos arrancados grosseiramente, o que sugeria que o crime fora passional ou, por outro lado, se tenha tido o intuito de dificultar a identificação do cadáver. Fiquei com a segunda hipótese, muito embora soubesse que se o assassino quisesse mesmo embaralhar a investigação seria mais produtivo incinerá-lo e, aí sim, atravancar o trabalho em meses. Entretanto, se aprendi algo nesses anos de profissão é que o criminoso sempre deixa a senha para ser pego, uma pequena negligência, um aparente descuido. Mesmo no crime perfeito, a chave está lá, é preciso apenas ter olhos para ver. Nem sempre os tenho, é verdade.

O que me sugeria que não fosse um crime passional? A uma primeira vista, a posição da vítima dentro do carro me dizia que ela fora morta em outro local. Num segundo momento, eu soube que aquele corpo com a cabeça horrivelmente disforme morava a poucos metros de mim, no mesmo conjunto de apartamentos da zona sul da cidade. Eu já havia visto no elevador aquela combinação de calças listradas e camisa xadrez, e a proximidade do crime a poucos metros da minha vida me deu um arrepio. O corpo foi enviado à Medicina Legal e eu, cumprindo o meu papel, resolvi tudo em quatro linhas.

Gazeta da Aurora
26/01/2018

Corpo é encontrado desfigurado

O corpo de um homem não identificado, com o rosto desfigurado, foi encontrado num carro abandonado próximo ao Trevo do Corredor. Segundo os policiais, os assassinos desfiguraram a vítima no intuito de dificultar sua identificação. O corpo, que teria recebido cerca de 20 tiros, foi encaminhado ao IML.

A última vez que eu vira o sujeito fora mesmo no elevador cerca de três dias antes. Ele levava duas caixas consigo e suava desesperadamente, olhou para mim algumas vezes como se procurasse algo, talvez empatia. Na garagem, deixara a chave do carro cair algumas vezes. Não ofereci ajuda, afinal nunca nos cumprimentamos. Achei patético e agora sabia o quão de espetáculo grotesco pode haver numa morte anunciada, porque estava claro que o homem saíra de casa para morrer e estava ciente disso e, mais, haveria de saber também que não haveria fuga possível, contorno que pudesse fazer que o colocasse fora do alcance do seu destino.

Resolvi voltar para casa aquela noite. Nem sempre eu voltava, é certo, perdido entre rodas de cerveja e mulheres anônimas. O apartamento estava um verdadeiro pardieiro, cheiro de comida azeda e tabaco, livros por todos os lados. Por baixo da porta, um envelope pardo se comportava como um inseto sem nome, parado, atento ao que eu faria, o joguei em cima da mesa e desabei no sofá. No dia seguinte, ao examiná-lo, uma série de recortes noticiavam atividades antigas da Agência de Controle Epidemiológico. Não entendi nada até a hora em que fui conversar com o porteiro sobre o vizinho de calças listradas. Foi aí que consegui um nome, André Salviano, e sua ocupação, funcionário da Agência.

O homem morto havia, finalmente, conseguido a minha atenção.

Liguei para a Agência e perguntei pelo homem. Três ramais depois, um sujeito perguntou grosseiramente o que eu queria com André. Preciso falar com ele, respondi, sabendo da impossibilidade do meu pedido. Do outro lado, o baque do aparelho sendo desligado sem nenhum esclarecimento possível, tornava as coisas mais sombrias. Foi quando lembrei de fazer uma devassa nas reportagens mais recentes sobre a Agência. Recordei de tê-la visto nas páginas policiais não havia muito tempo.

Sim, fato corriqueiro, um arrombamento, nada de valor aparentemente levado, e algum vandalismo. Mas agora, um funcionário morto trazia um elemento a mais para a trama na qual eu me enredava.

Gazeta da Aurora
19/01/2018

Criminosos arrombam escritório central da Agência de Controle Epidemiológico

O escritório central da Agência, na zona sul, foi arrombada nesta madrugada. Não há informações sobre o que foi levado e até o momento, ninguém foi preso.

A vida oficial de André Salviano parecia monótona. Seu perfil no facebook mostrava um homem solitário. As postagens públicas em geral compartilhavam insistentes alertas de cuidados com a saúde, meios de evitar surtos e epidemias, o que me levou a crer que fosse um desses maníacos por limpeza. Sem relacionamentos aparentes, nada o direcionava para a trágica cena da qual fui uma das primeiras testemunhas e foi crescendo em mim a certeza de que aquele desfecho estivesse relacionado à Agência. Os rumos da investigação policial, sempre lentos, me desmentiam. Colegas reconheceram o cadáver e uma suposta amante misteriosa foi trazida ao enredo por uma titubeante testemunha.

João Oliveira dos Ramos, ambulante, depôs que por volta do dia 23 ou 24/01/2018, ofereceu água e balas a um homem com as mesmas características de André Salviano, 45 anos, funcionário da Agência de Controle Epidemiológico, encontrado morto em circunstâncias misteriosas no último dia 26. Segundo a testemunha, uma mulher de cabelos claros acompanhava o homem”.

A Agência sempre gozou de boa reputação por seu trabalho social, entretanto em 2015, havia se associado a um grande laboratório multinacional para a prevenção de epidemias e desenvolvimento de novas vacinas. Na época, setores ligados aos movimentos sociais levantaram bandeiras contra uma suposta privatização da agência, denunciando também intervenções não muito éticas do tal laboratório em países da América Latina e África. Em 2016, o governo determinou sigilo de 50 anos nas atividades da instituição. Quanto mais eu pesquisava sobre a Agência mais me convencia de que havia algo cheirando mal naquilo tudo e não, não era apenas o cadáver.

No apartamento de Salviano, nenhuma pista que pudesse levar à mulher misteriosa. No seu enterro, apenas os colegas da Agência. O seu computador não foi investigado. Um crime sem solução, diriam alguns. As pás do ventilador eram agora a trilha da minha obsessão e um homem sem obsessões é pouco menos que fumaça de cigarro, gelo derretendo dentro de um copo.

Foi então que conheci a família de Salviano meses depois, em outro estado. Não pareceu que seus pais estivessem interessados ou animados em quem afirmasse tentar descobrir a verdade sobre a morte de seu filho. Mas antes que eu partisse, recebi no hotel duas caixas misteriosas, da qual dou notícia agora e que são responsáveis por parte da minha teoria.

Março/Abril de 2016, o país ferve com mudanças radicais na vida política. Grupos oponentes se enfrentam nas ruas. Uma série de insurreições contra um golpe desferido nos anseios democráticos do país transforma as cidades em palcos de uma guerra amplamente anunciada. No auge das contendas, um vírus mortal passa a se propagar entre a população causando perdas de vidas, hospitais e emergências inchados. André Salviano, 45 anos, funcionário da Agência de Controle Epidemiológico documenta os passos dessa receita para o caos minuciosamente. Políticos e Empresários trabalham de mãos dadas para esvaziar as ruas com uma epidemia em proporções alarmantes. Com material suficiente para responsabilizar os mandantes de gabinete, André Salviano é eliminado. Agora que estou com suficientes provas materiais, começo a receber ameaças veladas. Ontem uma mulher loira me observou por vários minutos no bar. Não é a primeira vez que a vejo. Se você estiver lendo esse relato, minha vida corre perigo.

Hoje recebi um telefonema: André Salviano não está morto, mas você está.

Nota da autora: Em março de 2016 fui convidada a escrever este conto para servir de base, junto a outro texto, de autoria de Luiz Roberto Guedes, da dramaturgia da peça “Urubus Noir”, da Cia Quase Cinema. Este conto acabou por me surpreender nos últimos dias, após revisitá-lo em leitura, por ocasião da reestreia da peça em formato de live por conta das restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Muito embora retrate as tensões políticas presentes naquele início de ano, parece antecipar o cenário do mundo pandêmico que passaríamos a viver exatamente quatro anos depois. Obviamente isso não parece ser uma qualidade da autora, mas uma característica da literatura e do fazer literário, antena a prenunciar o futuro, ou como disse Oscar Wilde, “a literatura antecipa sempre a vida. Não a copia, amolda-a aos seus desígnios”.

Micheliny Verunschk é autora de livros de poesia e prosa. Seu primeiro romance, Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014) foi agraciado com o Programa Petrobras Cultural e com Prêmio São Paulo de melhor livro de 2015. É mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. É autora também de O movimento dos pássaros (Martelo, 2020) e de O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021).