blues
Me é estranho pensar que posso
ter o mundo em minhas mãos
— sendo eu rapaz
de pouco dinheiro e bens,
sem altos cargos de prestígio e poder,
sem passaporte ou documentos importantes
de livre acesso às fronteiras,
ou mesmo detentor das raras chaves
dos preceitos e amarras sentimentais.
Me é estranho,
mas não impossível.
Não se faz impossível quando me noto, emudecido,
com versos prontos desprendendo dos meus bolsos,
do céu azul de minha boca e do fundo quente da casa-forte
que se faz em eterna alvorada
dentro do meu peito imenso.
Dentro do meu peito imenso
habita uma palavra cara demais
aos homens do mundo:
liberdade
[na língua minha,
e em seus segredos de paladar e semântica,
traduz-se seu sinônimo
como vastidão]
quarentena I (Ou: Fissuras)
I. A primeira poesia de quarentena
tem gosto amargo
de própolis de dor de garganta
e de melancolia de dor de existência.
O vírus arrasa
meu país e meu povo.
Encurralados estamos sem nenhuma opção
resistindo à guerra microscópica.
Cinza amanheceu o dia
na alegoria e na concretude:
é como se o vírus conseguisse
carregar a melancolia minha
junto aos seus arrasos,
tropeços
e mortes gerais.
Esse apartamento
parece pequeno demais
para meu peito apartado
cheio d’água por cair;
para meu corpo
necessitado de apertados abraços;
para esse barulho
confinado em minha garganta fogo;
para meus ansiosos passos
movendo poeira e areia
às fissuras da madeira.
Quero na rua brincar feito criança
e ver a praça da Matriz de perto
cheia de gente, cor e cheiro: gente feliz, gente minha.
Quero a normalidade da vida
para além das panelas que batem na varanda
suplicando o fim desse governo de morte e medo.
II.
Já tirei o relógio do pulso:
que me importam as horas?
É o fim dos tempos — o apocalipse mundial.
Me questiono a duração desse maldito terror,
sabendo não saber a resposta.
Ao vírus não importam as etnias,
as histórias, as crenças, as fronteiras;
o vírus desfaz o teatro do atual sistema:
poderoso e visceral, governa os governos.
III.
O semáforo na esquina pisca toscamente:
Vermelho, amarelo, verde.
Ninguém passa. Não há ninguém para passar.
Os semáforos
não deviam trabalhar;
e nem as empregadas
e os porteiros do prédio vizinho.
Elas e eles até que bons sujeitos são;
deixar de trabalhar é que não é opção.
ipê-amarelo
I.
Eu sinto muito as dores do mundo,
a paleta de cores do nascer do dia
e o significado fatal do seu repouso.
Eu sinto muito cada gesto e lembrança
e cada começo, meio e fim.
E sinto tudo, ainda mais,
quando estou sentindo algo por alguém:
eu sinto a paixão chegar em mim
e estacionar-se em meus vazios,
preenchendo com calor cada canto solitário
— acampando, indeterminadamente, como tiver que ser.
II.
O muito sentir me faz pesado na leveza do que sou.
A inspiração é um arcanjo que nos leva às alturas do mundo,
e poeta que sou sempre enxergo a beleza em seus detalhes.
III.
Confesso que os ipês-amarelos são especiais,
e que também me encanta o cantor do quadro verde,
a fotografia do filme italiano de nome inglês
e a vista da janela se abrindo às cortinas da imensidão cinza.
[Eu poderia derrubar estrela por estrela
e prometer-te remendá-las depois no tecido da noite
— só para dançarmos nus, no semiescuro,
agraciados pelos brilhos dos cacos na varanda:
sem medo do tempo, do espaço
e dos sentimentos em colapso].
| poemas do livro grão, gota (Folhas de Relva Edições, 2020). |
Eduardo Rezende Pereira nasceu no interior paulista, no verão de 1996. É jornalista, jovem militante incansável, e cientista social formado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Entre a primavera de 2014 e o inverno de 2016, publicou uma sequência de artigos sobre cultura, política e sociedade no jornal impresso em que trabalhou durante a sua adolescência. Além de muros, já escreveu em algumas seleções de poesia. grão, gota (2020) é sua primeira publicação impressa, feita pela Folhas de Relva Edições.