disfarces ocultos, de Julianne Veiga

capa_meio_do_mundoNão importa aqui para o relato dar a ela um nome, ele se perde em meio ao das demais que como ela vivem histórias com enredo assemelhado. É que, no geral, muitas das mulheres, muitas, a maioria delas, talvez, podem se reunir num mesmo e amplo perfil de lutas e recaídas pela individualidade, sobrevivência, integridade e dignidade. A mulher deste caso há muito não tem mais pouca idade. O que a deixa tão envelhecida é a percepção de que falhou em suas escolhas, em sua vida, de que a desperdiçou, de que não há mais saída possível, de que está definitivamente enredada nas teias de casulo que tece desde que conheceu este homem com quem vive e que pensou dela fosse.

Ela olha para ele ali do outro lado da sala e conclui, depois de décadas de convivência, que o conhece bem, que hoje sabe onde encontrar seu verso e reverso. Sabe por quais vias periféricas transitam as suas mal disfarçadas intenções, agora já para ela reveladas. Aprendeu a ler suas entrelinhas, seus olhos fechados em falso, a ouvir as palavras não ditas. Sabe dos atalhos usados. Sabe quantas voltas ele dá, por quantos becos caminha para chegar soturno até ela. Consegue identificar seus ares de desdém e deles se defender. Hoje ela sabe que não é dele o objeto de afeto, sequer o é do desejo. Sabe, no entanto, que sua vida ocupa lugar central na dele, porque é ela o ponto para onde convergem todas as pedras por ele jogadas com suas mãos ocultas. Hoje, ela o conhece.

Nunca se calou, mas inutilmente, como muda, gritou palavras inadequadas que ele jamais ouviu. Travou, só, batalhas invencíveis. Esbravejou desorientada, num enfrentamento cego, irresponsável, se expondo ingênua e sem reservas para ele. Deixou à mostra suas fragilidades. Consumiu longo tempo até perceber que tudo que revelava voltava-se contra ela como munição usada em arma de ataque. Descobriu tarde, tarde demais, não sabe sequer onde cavar trincheiras para nelas se jogar. Nada mais pode fazer. E, por isto, trata de eliminar mágoas. Resta pouco mais que tolerância. Se perdoa. Afasta a amargura e continua firme no propósito de ser feliz: sozinha, ela decide.

Pouco tempo passado, porém, ela percebe que ele a está vendo. Ela se aquece. Ele lhe faz uns agrados banais, ela fica agradecida. Ele fala com ela em tom quase gentil, ela se envergonha do que lhe disse antes e dos pensamentos que sustentaram sua equivocada fala estridente, é como passa a lhe parecer. Ele lhe dá um beijo na testa antes de dormir, ela se enternece. Tais fatos bastam para que ela comece a acreditar que se enganou outra vez. Outra vez depois de tantas outras. Ele é bom, é um tanto rude, mas é bom, ela se convence. Acaba por acreditar, também, que ela mesma, dominada por seus antigos fantasmas, foi quem deu margem ao surgimento desta nova crise, assim como das anteriores. Perde a segurança quanto a si mesma e a seus julgamentos. Acha que faz transferências indevidas. Começa a duvidar de sua sanidade. Não se conhece bem como pensava, volta a concluir angustiada. Não o conhece, também. Não por inteiro. Constata que ela não é quem julgava ser e que ele é mais do que consegue enxergar, ou do que antes cria ver. Sente-se desequilibrada. Envergonha-se.

Resolve afastar as lentes duras do seu olhar. Tenta se desfaz de velhas certezas que passa agora a considerar inúteis. Aceita suas oscilações de entendimento e de sentimentos. Aceita igualmente as dele. Perdoa a si e a ele. Perdoa aos dois até por seus próprios erros de percepção e decide continuar firme no propósito de ser feliz. De ser feliz junto dele. Continua ao seu lado, ele que há muito está ali, do outro lado da sala.

Convicta do erro de seu julgamento sobre o companheiro, ela torna a baixar todas suas guardas. Sai da trincheira emocional em que havia se colocado. Retoma antigos gestos de carinho. Se oferece. Entrega-se. De novo, desnuda sua alma para aquele homem rude que está do outro lado da mesa. Ele, por sua vez, (re)impulsionando o velho círculo vicioso, volta a fazer dela seu objeto de desdém, brinquedo estragado, sem uso, abandonado para não ser visto, não ser tocado. Ela está ali do outro lado da cama entregue a ninguém. Ela que outra vez, outra vez, de novo, volta sofrida a se sentir recusada, humilhada, recaindo em seu antigo e destrutivo sentimento de menos valia. A diferença nesta crise derradeira, entretanto, está na ciência que ela vem consolidando de que enquanto não tirar aquele homem do outro lado da sala, da mesa, da cama, não conseguirá ter paz. Já não cogita mais ser feliz.

| conto do livro Histórias do meio do mundo (Editora Patuá, 2021). |

Julianne Veiga nasceu, em dezembro de 1957, na histórica cidade de Goiás, antiga capital de seu estado, onde voltou a residir no final de 2010. É casada, mãe de três filhos e avó quatro vezes. Servidora pública aposentada como procuradora de seu estado. Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas, pela Universidade Federal de Goiás — UFG, e em Direito, também, pela UFG. Iniciou, em 2017, bacharelado em Filosofia, novamente pela UFG. Como amadora, borda e toca tambor. Tem contos e crônicas publicadas pela Gueto, revista online de literatura em língua portuguesa. Participou com crônicas das coletâneas Literatura Goyas — Antologia 2015, Livres Pensadores, e Histórias de ternura, Kelps, 2015. Histórias do meio do mundo é seu primeiro livro publicado.