o que nos sustenta é teia tênue
bordada de delicadezas
ponto cheio, nós, correntes
retalhos adormecidos
costurados
avesso emaranhado de fios
remendo no peito
cerzir onde passa o frio
coser sutilmente o
tecido gasto, proteger-se
com dedal de prata
o que nos acalenta é teia tênue
trançada mal traçada quente
rede que suporta o peso
manta que resiste ao tempo
* * *
tudo vermelho hoje
a noite vermelha
minha conta no vermelho
minha calcinha vermelha
hoje não verei as estrelas
atrás das sirenes
dos semáforos vermelhos
das luzes de freio
nem irei a lugar algum
— tenho contas a pagar —
tampouco farei um filho
tudo vermelho hoje
até mesmo o céu
o sangue e as maçãs
* * *
carta aos sobreviventes
para Nahum All
Sobrevive-se às distopias, sobrevive-se às
tragédias planejadas, às leis do desespero.
Sobrevive-se
porque há estrelas sobre nossas cabeças,
porque os deuses de hoje são os mesmos
do começo e do fim do mundo.
Quando a aeronave caiu a trinta e cinco mil
pés, você sorriu. Entre os destroços, me
plantou a memória de que caminhávamos
pela lua. Os sobreviventes do incêndio
brincam com as cinzas em suas mãos.
Elas são mornas e surpreendentes.
Sonhei que escrevia um poema sobre você
e sobre as conversas que tivemos.
Preferimos ser picados pela serpente a
morrer sem tocar as pedras preciosas.
Onde não há gravidade a pinhata não pode
ser destruída. Sobreviveremos brincando.
| poemas do livro Essa palavra sem coração (Selo Demônio Negro, 2021). |
Tatiana Fraga é poeta, jornalista e gestora de projetos educativos e culturais. Foi idealizadora e diretora do Espaço de Leitura no Parque da Água Branca, diretora do Projeto PraLer — Prazeres da Leitura e diretora cultural da Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campo de Poesia e Literatura. Atriz e cocriadora do espetáculo Anti-pássaro — poemas de Orides Fontela e autora dos livros Nino e Nina (Editora Mundo Mirim, 2012), Brasa (Editora Dulcinéia Catadora, 2009) e Espelho (edição da autora, 2008).