árvores
Há na rua uma árvore
cuja beleza consiste
apenas em existir e
estar ali, ao vento.
Ela simplesmente existe
e nos transmite a mensagem
que eventualmente quisermos
lhe atribuir à distância.
Seu discurso, para si mesma,
é a propagação de sua sombra
na coreografia de suas folhas
e sua linguagem é a do silêncio.
Esta árvore não diz nada
de coisa nenhuma. A metafísica
está no bêbado que lhe atribui
significados além do estar-ali.
Aquela árvore será sempre
(para aquém e além dela mesma)
exclusivamente árvore e isso
é tudo. O mais é estar a vê-la.
Subitamente um carro passa na rua
e arranca as folhas da nossa árvore.
Como não temos galhos para protestar
escancaramos os dentes e voltamos
putos pra casa.
Milton Rezende in: Inventário de sombras.
um cão
Um cão latindo na noite
é sempre um cão.
Sem cor, sem nome e sem
significado
para quem o está ouvindo.
No entanto este cão
traz em seu latido
sombras de milhões de outros cães
sintetizados
em uníssono noite adentro.
A chuva não consegue abafar
este inquietante latir,
profanando o sono dos homens
e o sectarismo estático
das coisas e dos seres.
Alguém para se ver livre
do incômodo latido
desfechou tiros na escuridão,
e a noite se arrastou em insônia.
Da boca sangrenta daquele cão morto
brotaram ruídos confusos
que invadiram as ruas e as casas,
mostrando a todos a inutilidade do ato.
Milton Rezende in: O acaso das manhãs.
Milton Rezende nasceu em Ervália-MG, em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora-MG, onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha-MG. Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas-SP. Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de 12 livros publicados. Fortuna crítica: Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende, de Maria José Rezende Campos (Editora Penalux, 2015).