descobri hoje o nome de uma de minhas bisavós
o espaço oco na árvore ganhou letras que deslizaram em minha boca de bisneta
Maria Rita
perguntei dela para uma tia, já muito velha, meia-irmã de minha avó
era cozinheira, me disse
ordeira, simples
e sozinha
pensei na bisavó que não conheci alimentando muitas bocas
deitando barriga num fogão quente de Recife
perdeu um filho cedo
a outra filha, minha avó, encaminhou-se para a morte também depressa
Maria Rita
um nome duplo que esconde a revoada de se ser só
morreu de câncer, assinalou minha tia
a língua pequena dizia que era pela quentura da cozinha
me apequeno sem saber não de quê, mas como ela partiu
se temia a doença desgraçada, se alguém segurava suas mãos mentindo que ia ficar tudo bem
se os médicos lançaram um olhar de lamento para o corpo com hora marcada de ser coberto
se ela sabia que eu existiria, mesmo em delírio
acendi uma vela para o nome que se descortinou nos galhos da minha ascendência
tentei atribuir um rosto ao nome envelhecido na certidão de óbito de minha avó materna
escrutinei em meu corpo qualquer traço do que me deixou Maria Rita
qualquer linha de expressão que ao bater o olho ela dissesse: essa é minha
ou será que é quando eu cozinho feito feitiçaria que Maria Rita vive em mim?
meia vela se consome sem respostas, eu me conformo com a imagem disforme da bisavó que concebi no peito
de posse do seu nome eu adentro a enfermaria abafada, confusa, com dois números que podem ser seu paradeiro
não me aborreço na procura, porque minha bisavó me sabe
cheguei com atraso, pergunto, pegando nas minhas a mão direita frágil que empunhou tantas colheres
é tempo, acolhe-me Maria Rita baixinho
a voz quase não sai, embargada pela doença, pelo reencontro que aboleta tempo e espaço
minha bisavó é pequena, mas se agiganta pelo fato de sermos duas
Silvas
o sol se põe e em meu invento não a deixo sozinha como passou a vida
percorro em seu rosto amarelado um sinal de que ela ainda se move
a mão que guiou as panelas me solta, como que me conduzindo ao fim do alento
foi quando descobri o nome de minha bisavó que me permiti encontrá-la morrer
Tatiana Lazzarotto é natural de São Lourenço do Oeste-SC e reside em São Paulo-SP desde 2011. É escritora, jornalista e mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). Participou da antologia independente Sós (2018) e é uma das integrantes do Clube da Escrita para Mulheres. Foi uma das contempladas pelo edital ProAC de Obras de Ficção 2020 e em 2021 publicará seu primeiro livro.