o nome de minha bisavó, poema de Tatiana Lazzarotto

descobri hoje o nome de uma de minhas bisavós

o espaço oco na árvore ganhou letras que deslizaram em minha boca de bisneta

Maria Rita

perguntei dela para uma tia, já muito velha, meia-irmã de minha avó

era cozinheira, me disse

ordeira, simples

e sozinha

pensei na bisavó que não conheci alimentando muitas bocas

deitando barriga num fogão quente de Recife

perdeu um filho cedo

a outra filha, minha avó, encaminhou-se para a morte também depressa

Maria Rita

um nome duplo que esconde a revoada de se ser só

morreu de câncer, assinalou minha tia

a língua pequena dizia que era pela quentura da cozinha

me apequeno sem saber não de quê, mas como ela partiu

se temia a doença desgraçada, se alguém segurava suas mãos mentindo que ia ficar tudo bem

se os médicos lançaram um olhar de lamento para o corpo com hora marcada de ser coberto

se ela sabia que eu existiria, mesmo em delírio

acendi uma vela para o nome que se descortinou nos galhos da minha ascendência

tentei atribuir um rosto ao nome envelhecido na certidão de óbito de minha avó materna

escrutinei em meu corpo qualquer traço do que me deixou Maria Rita

qualquer linha de expressão que ao bater o olho ela dissesse: essa é minha

ou será que é quando eu cozinho feito feitiçaria que Maria Rita vive em mim?

meia vela se consome sem respostas, eu me conformo com a imagem disforme da bisavó que concebi no peito

de posse do seu nome eu adentro a enfermaria abafada, confusa, com dois números que podem ser seu paradeiro

não me aborreço na procura, porque minha bisavó me sabe

cheguei com atraso, pergunto, pegando nas minhas a mão direita frágil que empunhou tantas colheres

é tempo, acolhe-me Maria Rita baixinho

a voz quase não sai, embargada pela doença, pelo reencontro que aboleta tempo e espaço

minha bisavó é pequena, mas se agiganta pelo fato de sermos duas

Silvas

o sol se põe e em meu invento não a deixo sozinha como passou a vida

percorro em seu rosto amarelado um sinal de que ela ainda se move

a mão que guiou as panelas me solta, como que me conduzindo ao fim do alento

foi quando descobri o nome de minha bisavó que me permiti encontrá-la morrer

Tatiana Lazzarotto é natural de São Lourenço do Oeste-SC e reside em São Paulo-SP desde 2011. É escritora, jornalista e mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). Participou da antologia independente Sós (2018) e é uma das integrantes do Clube da Escrita para Mulheres. Foi uma das contempladas pelo edital ProAC de Obras de Ficção 2020 e em 2021 publicará seu primeiro livro.