a biblioteca, de Jozias Benedicto

capa_aquinoceuFinalmente, uma biblioteca. Uma verdadeira biblioteca. A Atenas Brasileira, diziam os antigos, entretanto os livros todos mofando com a umidade de tantos invernos, juntos de qualquer forma em lugares improvisados, o Liceu, uma sala do convento, um qualquer lugar. Agora, afinal juntos em estantes no belo edifício com colunata de templo grego, ah Atenas!, e portentosamente cilíndrico como um bolo de festa de fim de ano ou um elefante entronizado sobre a praça mais alta de onde a vista alcança descendo pela Rua da Paz e a Rua Grande até o Largo do Carmo e de lá até a Catedral e o Palácio dos Leões e as águas tormentosas da Baía de São Marcos onde deságua o Rio Anil e de lá se chega a Alcântara e se a nossa vista fosse um pássaro ou um avião ou um dirigível, os mais pesados que o ar, nele poderíamos deixar a grande Ilha e em um sobrevoo sobre Alcântara, a ilha de Santana e as terras do continente até chegar sem fazer esforço, carregado pelos ventos, até Atins onde a todo dia toda hora um mesmo navio naufraga de novo e de novo e de novo e nele o poeta, fragilizado pela poesia pela tísica e pelos amores, preso em seu camarote naufraga e sente as águas quentes invadirem seu pulmão como um bálsamo uma benção, se sente queimar como queimava decerto com as paixões, ah as paixões!.

Mas divago. Não queria falar sobre naufrágios, sobre aviões ou dirigíveis, sobre pássaros, sobre poetas, muito menos sobre paixões. Queria falar da biblioteca, e de meu júbilo ao vê-la pronta, sólida, imortal, eterna. As paredes grossas, as amplas escadarias, os capitéis coríntios, as luzes em formato de finas estrelas, as coleções, os in-fólios, os fascículos, as brochuras, os pergaminhos, os autógrafos, as ricas encadernações. Tudo, tudo lá, uma verdadeira biblioteca. Este humilde mortal sabia que não ia deixar a terra sem que minha marca nesta vida, meus tímidos opúsculos com sonetos de amor dedicados à minha esposa, a mui querida Maria Eugênia, aqui estivessem abrigados, para sempre, a salvo do mofo e das traças e da umidade de tantos invernos em sítios improvisados, o Liceu, uma sala do convento, um qualquer lugar.

Eternamente guardados na biblioteca os meu versos feitos com tanta dedicação, com tanto amor, de coração dedicados à pura Maria Eugênia, sonetos que podem não ser perfeitos como os do poeta mas agora, com a infinita biblioteca que os guarda, são como os versos dele, eternos.

E eu sei bem o que é a eternidade pois nela habito desde que aquele tiro certeiro que levei ao surpreender minha adorada esposa com sua prima em uma situação constrangedora que eu preferia nunca ter presenciado, era o cair da tarde e estava quente e por passar mal com o calor cheguei mais cedo em casa e ao reagir como faria qualquer homem honrado, talvez por tão quente minha esposa e sua querida prima nuas, e eu reagi e em gritos indaguei o que estava se passando e em seguida só ouvi o estrondo do tiro certeiro que me expôs o sangue e a vergonha (Maria Eugênia, como sempre perfeita em tudo o que faz, é excelente atiradora) e me condenou a passar toda a eternidade aqui, nesta biblioteca, mirando a ilusão do amor que me levou a sonetear nestes folhetos de minha lavra que aqui estão para sempre protegidos, instalados, preservados e só me resta torcer para que estas traças que se avizinham deles sejam competentes e terminem a obra que as antepassadas delas apenas iniciaram.

| conto do livro Aqui até o céu escreve ficção (Editora Patuá, 2020). |

Jozias Benedicto é escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Tem especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-Rio. Suas videoinstalações, performances e pinturas que unem literatura e artes visuais foram apresentadas em seis mostras individuais e em exposições como a XVI Bienal de São Paulo e o Salão Nacional de Artes Plásticas. Atua também como curador independente. Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas, foi finalista do Concurso Sesc de Literatura 2012-2013. Como não aprender a nadar conquistou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 (Contos) e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da Diretoria da UBE-RJ. Recebeu premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por Um livro quase vermelho e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por Aqui até o céu escreve ficção, publicado pela Editora Patuá em 2020. Publicou também dois livros de poesia, Erotiscências & embustes (2019) e A ópera náufraga (2020), ambos pela Editora Urutau.