Tudo de valor fica em um pequeno armário de madeira, pouco acima dos meus pés. Há anos não durmo em beliche, quanto mais um triliche. Quase bato no teto. A mala fica aberta mesmo, no chão, como todas as outras, as tripas de roupas expostas, escorrendo, como se mulheres automaticamente fossem confiáveis. Mulheres meninas que pagam quinze euros a noite, café incluso, uma porta com senha que as isola dos outros.
Dez da noite e lá fora os postes de luz parecem fornecer uma iluminação redundante. O dia faz sombra no trecho de céu visível em uma janela comprida e alta, antecipando que as cortinas farão falta na hora de dormir. O cheiro de esmalte que vem da cama de baixo. Uma menina pinta as unhas, vejo na fresta entre a cama e a parede. Outra dorme do lado oposto à nossa cama. Já ou ainda? Não sei.
Uma sirene escandalosa me tira de um marasmo cheio de culpa por estar fechada em um quarto na cidade em que piso pela primeira vez, viajando sozinha pela primeira vez. Pego a cerveja grátis a que tenho direito no bar do albergue e, como sou a única cliente, é minha única bebida. Garrafas de vidro se espatifam no chão a todo instante na rua. Quero sair para quebrar a minha garrafa também, mas volto para o quarto, espatifo a garrafa em um cesto de lixo do corredor, volto para a cama elevada com o teto me claustrofobizando.
A menina de baixo fala ao telefone e reconheço que fala em francês não pelas palavras, mas pela ausência de silêncio entre elas, com um zumbido de boca semiaberta persistente. Em outro canto, a conversa entre duas garotas que não aparentam mais de vinte anos soa como uma gravação tocando ao contrário. Sueco? As três passam a interagir, agora em inglês, jogando nomes de festas e bares com naturalidade. Assisto do alto, e contra a luz das luminárias apontadas para cada cama — não há iluminação direta no dormitório — as cabeças magras parecem raspadas. Ossudas. Incomodada, desvio o olhar.
As malas são diversas como as fisionomias. Uma tem grossas peças de tricô, outra é uma bagunça babando roupas pelo chão. Pequenas, enormes parecendo serem de alguém de mudança, a minha é vermelha fechada, incomunicável, um coração hermético. A enorme coincidência de estarem todas ali, de estarmos reunidas, minha mente transatlântica faz o caminho inverso e leva a bagagem a seu local de origem, em trens, trilhos de outra época cruzando a Europa e chegando naqueles beliches, naquelas promessas. As malas como que voam aos locais de origem, a embarques, ao seu preparo em casas cuja arquitetura desconheço.
Chega a garota polonesa enrolada em uma toalha. Se troca com as costas para a parede, esquálida, reluzente como a lua. Ao vestir seu pijama, procuro uma estrela amarela no seu peito de forma quase instintiva. Uma bobagem, penso, não porque estamos em dois mil e quinze, mas porque ela não pode ser judia e polonesa, é improvável demais. Os alemães venceram, disse a minha orientadora uma vez. Seis milhões, ou melhor, para ser minimamente acadêmica, talvez algo próximo a cinco milhões e meio.
Em dois dias começa o curso, então não mais menina francesa, polonesa, as suecas e suas mochilas minúsculas de ar infantil. Suas calças sarcásticas, a ansiedade delas em estarem no epicentro do deslocado, ideia da qual compartilho, mas algo no final me segura. A sirene escandalosa. Culpa, tudo envolto em um mar de culpa, uma pororoca de ressentimento dos alemães e seu monumento grandioso e asséptico, eu e minha cerveja, minha curiosidade em saber onde compro aquelas mochilinhas. Demonstro interesse naquela conversa que se desenrola em um inglês truncado, perdida naquelas vozes, nos móveis de madeira, estilhaços, beliches beliches beliches gente empilhada, acumulada na Europa em quartos imensos, trabalhos forçados, judeus carga, judeus entulho, judeus nada. Tenho vergonha dessa comparação idiota, mas imagino que ela foi prevista por meus avós, tão contra qualquer viagem à Alemanha, terra dos nazistas, dos yekkes, para mim um mero objeto de estudo no qual aprendi a mergulhar e agora me sentia submersa, de outro jeito, na Berlim dos desmandos, nas leis arianas, estou pronta, de pé, jaqueta grossa, curta e moderna, parte de mim quer ouvir um convite das garotas e outra, tem um surto de coragem para encarar a cidade sozinha, e ela que vai, passa o cartão para abrir a porta, se encolhe no vento frio, atravessa mundos, turcos e seus döners, o prédio onde David Bowie viveu em Charlottesburg, faz fotografias e torce para não ser pega no metrô sem catraca, desiste do metrô e caminha.
Para chegar a uma fábrica, pessoas em fila aguardam benevolentes. Guardas gritam com elas em alemão, quem não responde já é despachado para outro lado, fumaça. Quando chega a minha vez, atravesso fazendo sinais com a cabeça. Me revistam no escuro, recolhem meu telefone celular, todos empilhados em um canto, penso nas posses desprendidas de seus donos para todo o sempre, aqueles amontoados de sapatos cor de terra e um salpicado de vermelho, azul com salto, verniz. Me devolvem o telefone com um adesivo na lente da câmera, agora aquilo ficará entre nós, o que está por vir e a minha confusão proposital, que eu carrego como as panelas, aquilo que se pegava antes de nunca voltar à casa, não sabendo para onde se vai, mas com a certeza de que vai cozinhar. No fundo, se sabia para onde ia, e que lá não haveria o que comer.
Aprender a viajar, a andar por corredores escuros de todos os tipos sem saber o que vai surgir no final, é como essa música, dentro dela há tantas mais. Um espaço enorme, o da fábrica, escuro e cheio de sons graves que vão escavando de mim a visão das meninas carecas, fazendo um rombo, me fazendo expurgar essas imagens em um espasmo, em movimentos como os de uma vela, é o que manda os livros sagrados, ler e se mover como a chama de uma vela, e assim fecho os olhos, me movo, gravidade, escuridão.
Transpiro, penso em câmaras de gás escuras e nos gritos, em como eles seriam, o choro coletivo e o silenciamento que vem com a morte, se eu tentaria fugir escalando pessoas ou me recolheria em um canto esperando cair desacordada, pesquiso quanto tempo levava, lembro de algum filme, agora é difícil não pensar em cinema, e não quero nenhum lugar mental em que não seja verão. Filmes de Segunda Guerra sempre se passam no inverno. E, de repente, me vejo sem estação do ano definida naquela fábrica, olhos abertos, meninas japonesas se aproximando de mim em movimentos sincronizados mas não idênticos, me resgatando de algum breu mental para me integrarem a algum ato coletivo de redenção, de fé no nada. O livro de comemoração de cinquenta anos de relações entre Alemanha e Israel é “nós não nos esquecemos, nós dançamos”. Ouço vozes em hebraico, mãos me tocam no escuro, os dois grandes templos do passado deviam ser assim, negros.
Sou arrastada para uma colmeia imensa de concreto, escalo três alvéolos para chegar a um rosto convidativo. O fetiche dos empreendimentos humanos, sempre prontos para se tornar outra coisa. Outros corpos, línguas, buracos em que se escondem fórmulas mágicas de desaparecimento, a fábrica se mostra em fundição de matéria anônima, fluidos, nenhum idioma que precise ser reconhecido. Volumes chacoalhados naquele espaço dois metros por dois metros, no fundo é um só fetiche, o do sol nascente na volta para casa.
Não há gritos ou gemidos, apenas a respiração alta daquele organismo coletivo, de onde é parido um rosto e um corpo musculoso, que se vira e simplesmente sai do casulo sem dono ocupado por nós. Enorme, loiro, ajeitando a bermuda preta, camisa e em quepe, busco algo como o distintivo da SS em qualquer parte, em pé, ele é gigantesco e opressor. Não consigo me mexer, observo meu suor pensando que enquanto ele estiver lá, estou salva do extermínio. Que aquela colmeia é o meu bunker, a casa em que só posso me mexer à noite, quando os hipócritas dormem. Me pergunto se chegarei no albergue e minhas coisas estarão sendo leiloadas, se não deveria ter vindo.
Tenho certeza que assim vai ser. É assim na Alemanha, terra que não correspondeu ao amor que os judeus tiveram por ela. E aqui estou eu, com os restos desse amor, não, com um sentimento do rejeitado bêbado, saindo do meu trabalho forçado na fábrica, tentando cantar alguma canção, ter a bissale mazal e ainda ver minha mala me esperando ao lado do triliche onde eu e tantas fomos jogadas.
Ou posso driblar a sorte, jogar no inesperado, fugir do delírio nazista pois não existe sol nem calor no extermínio. Primeiro é encarar o medo de comprar um bilhete no metrô, basta apertar alguns botões, não é nem medo que devia se chamar essa insegurança. Os trens de Berlim cruzam a cidade e já cruzavam quando Hitler subiu ao poder. Chego a Wansee antes das cinco da manhã, com uma garrafa de Club-Mate na mão. A casa-museu está fechada mas lagos não fecham. Lago pois See é lago em alemão, um falso cognato. Wansee nomeia a conferência na qual a decisão final se consagrou. O local visto de fora é apenas uma casa de veraneio e assim que o verei para sempre, do início daquele longo verão para a eternidade. Sigo para a água, nua como os alemães, os nazistas. Água fria com vista para A Questão Judaica, parada, inerte, congelada no tempo, com memória de mineral, resquícios daqueles dias, de todos os verões que nos separam.
A água dos campos correu para onde? Só se vê a fumaça antes da dispersão. A água tem que estar em algum lugar, chovendo sobre nós, em fontes tão puras, esgotos pestilentos. Mergulho e seguro a respiração até não aguentar mais, assustada por mais que eu saiba que é impossível alguém morrer afogado dessa forma. Me seco ao sol, o mesmo sol que deve acordar as vizinhas dos beliches do meu quarto, que nina meus cúmplices de bençãos na fábrica, o sol de outrora.
| conto do livro Pessoas promíscuas de águas e pedras (Editora Patuá, 2020). |
Thais Lancman nasceu em 1987, em São Paulo, onde vive. É doutoranda em Letras pela Universidade Mackenzie, onde estuda a relação entre arte contemporânea e ficção. Além de Pessoas promíscuas de águas e pedras (Editora Patuá), publicou Palito de Fosfeno (Editora Reformatório) e, em breve, lançará Meu ano Flávio de Carvalho.