dois poemas do livro ‘Um canto anaeróbico’, de Wellington Müller Bujokas

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Conforme meu corpo sucumbe à fadiga, // mais meus pensamentos se afastam de Deus, e minha consciência se diluindo no mundo com o qual canhestramente convivo // pergunta-se o que devo fazer para voltar ao rumo quando a crença certa de que Deus é o rumo não encontra no corpo força para perseguir tal caminho mesmo como pedinte miserável, // sobretudo pelo receio de lançar-se de cabeça na miséria necessária / (caso recuse a miséria, ela se desenvolve em outras formas, porém).

Ainda que o corpo seja, em parte, desculpa. / Abandonar a crença em Deus: // provavelmente caminho viável e, em teoria, muito mais prático. Daria mesmo ao corpo um espírito relaxado, de quem já nada procura no mundo // (ou fora dele) // e flutua, flui com uma leveza (na mudança de mundo) que aliviaria, provavelmente, quase todo o fardo dos músculos.

Mesmo que Deus não exista, / a crença resiste, // pois a crença no modo de vida moldado nos ensinamentos bíblicos [foi difícil escrever a expressão, que soa tão canhestra, pelo medo de se misturar aos que esqueceram, num panfleto // (aqui se nota como sou dogmático), // seguir o próprio rumo] é, novamente em teoria, parâmetro único a me justificar a vida // (o que não significa que nego a existência de Deus para me assentar só em seus ensinamentos; // significa só não me perder no trabalho fútil e ingrato de usar os mecanismos errados para provar o impossível, em ambos os lados). / A solução óbvia e prática é uma quimera vaga e sempre inacabada, a exigir um esforço parecido ao de passar a andar com as mãos e comer com os pés, como quem se arraiga/se lança a uma moral instável mas translúcida.

O corpo, como se me perde. // Não é nada à parte, / e talvez pelo corpo bem se mostre que abandonar a crença é viável. // Ele a abandona e embaralha os pensamentos que não conseguem mais olhar ao longe, e sem o longe perdem também o perto, / o reto / (que não se afirma no bem, mas só numa decisão, com todas as suas fraquezas), // num movimento traumático, // sempre em mais de uma direção, não opostas ao não se tratar de ceder ao mal, // inimaginado na ausência do bem, mas necessariamente anulantes em alguma medida // (seria inexistência, não fosse traumático).

as vezes de quem não se leva a sério // (de fato, não levo, ainda que isso almejasse). // De fato, o poema é o poema, e a vergonha é grande demais para quem se move rumo a um só destino (com algumas ligeiras ramificações que se tornam cada vez mais pseudoeixos, enganos portanto solidificados e autorizados na ausência da pretendida rota reta).

foi descendo o rio rumo ao ar

Algum artifício sem explicação na vida te faz chorar?
Te faz chorar sem mesmo sentido?
Um choro que não exatamente da vida, concreta, palpável,
cuja explicação seja só o artifício.
Artifício que te carregue ao fundo do nada, um lugar abstrato,
exala tua decisão mais firme de viver neste mundo.

A descoberta do não não me faz chorar,
só a queda.
A descoberta não me move,
como não me bule a verdade.
Ambas concretas, ambas palpáveis,
certeza que não está no que afunda.

A queda me faz chorar,
artifício do que não se nota desespero do que não se entende,
não necessariamente uma agressão.

A verdade não me faz chorar.
Pelo menos não a verdade polida, azeitada, sem arestas,
como um ser divino e distante, inalcançável, hermético,
não reitera mais que a si.

Um chão sem metáfora.
Talvez uma verdade bruta, arestas ásperas, tocos quebrados.
Um mundo desolado por ter demais.
Onde encontrá-la?
Na morte, no vômito. Prefiro não.

O artifício pode ser hermético (mas não seu impacto, salvo pros que choram em atraso).
Não precisa ser.
Artifício um tanto quanto tudo, talvez mesmo somente técnica, se a técnica encerrar o abalo.

Artifício enquanto meio não me abala,
só instrumento, seria concreto como bala,
que fura e dói aguda, certa,
não a dor da dúvida.
Instrumento, é como desse maior valor à descoberta que a seu soco, de descoberta.

Por que escrever uma queda como revelação?
Iluminação?
Revelação (puro artifício) sem sentido, improvável
ao ponto de parecer apenas orgulho besta,
de quem não aceita impotente o absurdo, a mediocridade da própria vida.
Por que ansiar tanto pelo momento em que os outros chorem,
de ser um eco do choro, o abalo sentido?
Por que a ambição de ser elo do fraco, sensível (prazer da fraqueza?)?

A resposta, sempre uma desculpa, devia ter sido proibida,
tabu maior que o sorriso adolor duma moça sobre a ponte, curiosa suicida,
e ao mesmo tempo ufff-fuuuuuuuuuuu povoa, pulula, aos montes, (n)a cabeça.

Wellington Müller Bujokas nasceu em 1982 cresceu em Barão de Antonina, interior de São Paulo. Na juventude, transferiu-se para Curitiba, onde se formou em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná. Posteriormente tornou-se diplomata e mudou para Brasília. Trabalhou em Astana (hoje Nur-Sultan) no Cazaquistão, e em Moscou. Atualmente mora em Baku, no Azerbaijão. É autor de Estudos (Travessa dos Editores, 2012). Um canto anaeróbico (Editora Quelônio, 2021) é seu segundo livro de poemas. Wellington é ainda o tradutor de Vladimir Maiakovski na nossa coleção.