Toda a minha vida transcorreu no exílio. Parti aos três anos de idade e nunca mais revi a pátria.
Meus pais pareciam se amar; assim pensei, ao menos, durante muito tempo. Obrigada pela família a se separar de meu pai e a retornar a seu país, minha mãe levou-me com ela. Nunca mais voltei a casa e nem revi meu pai ou a família dele. Minha mãe logo apaixonou-se por outro homem, com quem se casou quando meu pai morreu. Um dia, descobri que ela tinha dois filhos com esse segundo marido, nascidos antes mesmo de meu pai morrer. Ela foi morar na Itália, deixando-me para trás, aos cuidados de meu avô. Aconteceu de eu ficar meses, anos seguidos sem vê-la. Viúva uma segunda vez, minha mãe casou-se novamente. Houve rumores também de amores passageiros.
Meu avô me amava. Era meu padrinho. Eu era seu neto mais velho. Nunca nada me faltou. A não ser, é claro, os meus pais e a liberdade. Muitas vezes, pensei sobre a personalidade de meu avô. Homem ligado à família, sério, sóbrio, amoroso, ao mesmo tempo não hesitava em determinar o futuro de seus filhos, e o meu, sem nos consultar. Quando minha mãe tinha 18 anos, meu avô deu-a, literalmente, de presente ao meu pai, pensando nos benefícios que assim obteria. Um dia, passou a considerar a ruína de meu pai como mais condizente com seus interesses e para ela contribuiu.
Minha mãe, bela, jovem, frívola e leviana, não era má. Apenas, era fraca e deixou-se sempre levar pela vida, sem vontade própria, atrelada às estratégias de sobrevivência de meu avô. Ele fez o casamento dela com meu pai; ele ajudou a arruinar meu pai e fez a separação dos dois; ele a mandou para a Itália. Em muitas dessas decisões, meu avô escutava um conselheiro seu, que não queria bem nem à minha mãe e nem a mim.
Recebi uma educação esmerada. Dinheiro e prestígio não eram escassos. Todos veneravam meu avô, homem alto, magro, distinto e próspero. A ruína de meu pai deu-lhe novo sopro de vida e incremento de respeitabilidade. O que poderia parecer imoral — a derrocada de um genro em parte graças à atuação do próprio sogro — foi tomada por todos como algo natural e louvável.
Não tendo nunca mais visto meu pai após os três anos de idade, cresci sem lembrança sua. Sei apenas que ele me amava e que meu nascimento representou uma vitória pessoal, a coroação de sua trajetória. Eu era o seu reizinho. Ele também foi degredado, em condições porém mais difíceis do que as do meu exílio. Morreu quando eu tinha dez anos.
Chorei muitíssimo quando me deram a notícia. Embora meus familiares tenham sempre evitado enaltecê-lo, e seu nome, frente a mim, fosse tratado como um tabu, eu sabia que meu pai não era um homem comum. Ecos de suas glórias passadas chegavam aos meus ouvidos. Alguns anos mais tarde, pude ler sobre ele. Sua imagem me apequenou. Senti-me frágil e inútil diante de sua energia, sua fama e sua forte personalidade. Entendi melhor, ao mesmo tempo, a razão para a minha gaiola dourada. Seria impossível, filho de um homem assim, não querer seguir seu exemplo, se eu tivesse liberdade para fazê-lo. O conselheiro de meu avô nunca o permitiria.
Li a obra de um homem que compartilhara o degredo de meu pai e na qual narrava as conversas mantidas com ele. Ali está registrado o seu amor por mim. Senti grande revolta pelo mundo. Minha mãe o abandonara, embora tivesse professado amá-lo enquanto conviveram. Meu avô traíra laços familiares ao lutar contra o próprio genro. Seres que haviam lucrado com o sucesso de meu pai decidiram esquecê-lo. Entendi que o único sentido da vida é ela não ter sentido. Ela faz de nós suas marionetes. Percebi a melancolia da minha situação de exilado, prisioneiro abastado e privilegiado, vivendo com meus parentes maternos, mas levando uma existência distinta, menos exitosa, da que me fora prometida no berço.
Tive amigos, tive amores. Vi a neve, vi o sol. Senti frio, senti calor. Vivi como a maioria das pessoas de minha classe social. A vida é decepcionante, mas não é sempre triste. Há momentos de alegria. Havia sempre em mim, porém, o sentimento de que a vida me pregara uma peça, de que ela não havia seguido o curso previsto, aquele sonhado para mim pelo meu pai.
Um dia, descobri-me tuberculoso. Percebi que minha morte iminente seria um alívio para os parentes de minha mãe, embora eles talvez me amassem. Eu simbolizava um tempo menos edificante de suas vidas, em que haviam sido humilhados por meu pai e, depois, haviam dele se vingado. Provavelmente, viam-me também com incompreensão: embora fisicamente um homem semelhante a eles, eu era também diferente, potencialmente ameaçador, apesar de minha inocência. Imaginei que, para os parentes de meu pai, que eu não conhecia e que viviam longe, minha morte seria motivo de tristeza. Essa ironia doeu, de que minha existência valesse mais para o lado familiar que não me via desde os meus três anos. Entendi ser isso parte da ordem natural das coisas. Compreendi que eu era, apesar dos atrativos físicos, e do temperamento dócil, uma aberração. Simplesmente, não havia lugar no mundo onde eu pudesse me inserir.
Recebi a espada legada a mim pelo meu pai por testamento. Era a espada que ele usara na batalha de Austerlitz, a mais mítica de todas, e na qual derrotara meu avô e o tsar da Rússia. Oficial do exército austríaco, examinei com orgulho esse símbolo da supremacia francesa.
Em Viena, uma vez, apresentaram-me a Wellington, de passagem pela cidade. O duque inglês, eu soube depois, fez elogios a meu respeito, dizendo que eu fora com ele perfeitamente educado e correto. Não havia razão para que eu não o fosse. O vencedor de Waterloo, iludido, pensava realmente ter derrotado meu pai. Ele não entendera que fora apenas o instrumento usado pelo tsar da Rússia, o rei da Prússia, meu adorado avô e o governo britânico para livrar-se de Napoleão.
Moribundo, pressenti que o ato de morrer me engrandecia. Era melancólico viver como cidadão austríaco, se eu nascera príncipe francês e destinado a reinar sobre a Europa. Viver na Áustria, sendo filho de Napoleão.
Morri aos 21 anos. Meu avô declarou a seu conselheiro que minha morte, embora motivo de tristeza para ele, era um alívio para mim e para o mundo em geral. Minha mãe, que viera da Itália para me ver, estava ao meu lado. Enterraram-me na Áustria, ao lado dos meus antepassados maternos.
Cem anos depois, outro austríaco — este odioso, monstruoso — desenterrou-me e levou-me para Paris, onde depositaram meus restos ao lado dos de meu pai, em um jazigo grandioso. Ambos monarcas destronados, degredados, ambos mortos no exílio, saudosos um do outro, terminamos juntos, ambos repatriados após a morte. Meu coração — falo do órgão vital, não de um sentimento — separado do corpo, ficou em Viena. Teria preferido que, em vez do resto do corpo, tivesse sido levado para Paris o coração, pois ele sempre fora, secretamente, francês.
Nasci rei de Roma. Por alguns dias, na infância, fui oficialmente imperador dos Franceses. Terminei como duque de Reichstadt. Na França, fui Napoleão II. Na Áustria, chamaram-me Franz — nome de meu avô, imperador da Áustria.
Na vida, todos terminamos perdendo. Os exílios em Santa Helena e em Viena pouco importavam. Eram apenas castigos físicos. O grave é o degredo emocional. Todos somos exilados de nós mesmos, tendo de sobreviver afastados de nossas aspirações, nossos sonhos, nossas ambições.
Com minha morte, tão jovem, eu criava minha própria lenda, menos grandiosa do que a de meu pai, mas romântica e inesquecível. Victor Hugo e Edmond Rostand celebraram minha vida e meu estranho destino. Impedido de dominar o mundo, entrei na mente dos homens. Como acontecera com meu pai, o exílio e a morte consolidaram meu mito.
Mortos, realizamos nossos sonhos e vencemos o degredo.
Ary Quintella é diplomata. Embaixador na Malásia. Publica seus ensaios em aryquintella.com