Levanto os olhos e ele ainda está aqui. Parece estar dormindo. Minha perna debaixo da dele está dormente. Tento puxar, devagar, a dor da perna tentando despertar. A dor de quem acorda de um sonho ruim, todo o corpo teimando em não corresponder.
As memórias da noite ainda estão frescas na mente de quem não dormiu. Esperava que os primeiros raios de sol apagassem o que eu não soube assimilar. Os gritos presos na garganta, as lágrimas soltas no travesseiro, o sêmen derramado no lençol. O pulso arroxeado, o não dito repetido, repetido, repetido.
Com dificuldade, me levanto, a mente ainda embaçada pelo vinho, que volta à garganta, parece não querer ficar dentro do meu corpo. Eu também não quero ficar dentro do meu corpo.
Para onde ir?, pergunto à perna, ela não responde. A dor dilacerante que não me deixa esquecer por um segundo tudo o que havia acontecido. Do lado de fora do quarto, a vida acontece como se esquecesse. Um barulho ensurdecedor.
Busco sentido na correspondência em cima da mesa da sala de jantar. Não encontro também em nenhuma parte da cozinha, na gaveta de talheres milimetricamente organizada, na estante de temperos que eu mandei fazer sob medida, como meu vestido de casamento, como a toalha para a mesa oval que sempre sonhei e demorei muito para encontrar, até que achei e agora está linda, quieta, ornando a sala de estar.
No quarto, o barulho me avisa sobre o homem deitado. O ronco do homem que dorme um sono sem sobressaltos, embalado pelos meus sonhos despedaçados. O homem com quem me casei, que me escolheu, me prometeu, o homem que se esqueceu de ter sido aquele por quem me apaixonei. O homem que me machucou. Me estuprou. Mais uma vez.
Da janela eu vejo os carros passando, naquela rua movimentada que um dia eu frequentei. Fecho a janela sem suportar a ideia de que o mundo pode continuar quando dentro de mim tudo está dormente.
A perna chama, quer acordar. Eu prefiro que não. Sento na mesa da cozinha, de costas para o relógio de parede que insiste em se movimentar. Tento respirar o mais devagar possível, para que o ar deslocado não atrapalhe esse equilíbrio complexo que a inércia é capaz de provocar.
Devia eu fugir? Ficar, discutir, confrontar, esquecer? Devia eu questionar, mais uma vez, quando foi que o sim virou não e quando foi que o não pareceu sim, e quando foi que sim ou não passaram a não fazer a menor diferença?
Se tudo o que restou é esse barulho que não me deixa escutar nada além. Se a pessoa que está ao meu lado não quer estar ao meu lado, quer estar em cima de mim e atrás de mim, não quer saber mais onde eu estou, só quer saber onde ele está, onde está ele, não, sim, não sim, agora, dentro, fora, onde está ele, ele, ele, ele, ele.
Até que não exista mais nós e só exista ele.
Não existe mais nós.
Não existo mais.
Qualquer mínima centelha e sei que tudo pode estourar.
Traço um plano. Respiro fundo. Penso em arrumar a cama, lavar os lençóis. Tirar esse cheiro das minhas narinas, da minha pele. Da minha alma. A perna não se move, o silêncio não se move, ainda não consigo fazer o barulho parar.
Digo para mim mesma, em voz alta, prefiro que tudo fique como está. No mesmo lugar.
Não há mais para onde ir. Eu só preciso esperar. E não acordar.
Carla Guerson é feminista, escritora, leitora compulsiva, uma apaixonada por narrativas. Escreve contos, poemas e crônicas, publica em revistas literárias e no seu perfil: https://carlaguerson.medium.com/