três poemas de Geraldo Lavigne de Lemos

essa imagem refletida

a verdade reflete
na superfície áquea,
visão que se mostra
raramente nítida.

atravessada por seres
sob as ondas dos pingos
e cousas caídas na água cortada
e deslocada por barcos e correntes.

a verdade não repousa no fundo das águas límpidas,
tampouco paira suspensa nas túrbidas.

tão frágil que a aura deforma,
tão tímida que a folha encobre,
tão irresoluta que a névoa eclipsa.

a verdade,
essa imagem refletida,
até sermos líquidos noutra vida.

pesadelo em abril de 2020

era noite
o frio invadia os lares
e retorcia o sossego

vozes tomavam os cômodos

era noite
corpos eram entregues
como oferenda

pessoas se chocavam

era noite
a morte arrastava multidões
fora de época

pessoas se atiravam

era noite

era noite aqui
e ninguém mais dormia

o dia da mentira

no dia 1º de abril de 1964 contaram uma mentira
que durou 20 anos e 11 meses

ainda vivemos o rescaldo dessa tragédia
e já ventilam outras petas

como a de uma revolução que nunca revolucionou
(mas que causou 434 mortes e desaparecimentos
reconhecidos pela comissão nacional da verdade,
afora os relatos de pelo menos 1.918 prisioneiros políticos
torturados por 283 formas diferentes descritas
e estimativas que ultrapassam 20.000 pessoas)

a mentira tem perna curta (como teve a de 64)
e vida longa (como a de 64)

não quero. com n
de não. que os ratos continuem nos porões,
os choques nos quartéis, as pimentinhas nos molhos, os
dragões nas lendas, as geladeiras nas cozinhas e
os afogamentos nos acidentes, não em nossos corpos e
cabeças.

chega de história mal contada.

Geraldo Lavigne de Lemos é advogado e poeta, membro da Academia de Letras de Ilhéus, autor de seis livros. Publicou literatura nas revistas Revista da Academia de Letras da Bahia, Diversos Afins, Mallarmargens, Subversa, InComunidade, Ser MulherArte e Acrobata, nos jornais Diário de Ilhéus (Ilhéus-BA), Fuxico (Feira de Santana-BA) e A Gazeta (Vitória-ES) e no blogue LiteraturaBR.