A fila de formigas atravessa toda a varanda, passo o dedo entre elas, espalho o rastro que elas deixam. Catarina me ensinou, elas se orientam soltando um cheiro no chão. Mas essas formigas não se abalam com meu dedo atrapalhando o caminho, algumas carregam pedaços de folhas, vão apressadas pro formigueiro. Às vezes tento ajudar, tiro a folha dos seus ombros, deve ser tão pesada pra elas e pra mim é tão leve. Vai, formiga, continua andando, eu levo a folha pra você, não adianta, elas ficam confusas e saem da fila. Outras vezes sou menos boa, esmago uma com o dedo e observo as amigas se juntarem para carregá-la nas costas, como numa ambulância. Catarina diz que elas não estão se socorrendo, mas levando a formiga ferida pra virar comida. Não sei se acredito. Quando estou má, queimo algumas com o fósforo. Formo um montinho com seus corpos. Quando o monte fica grande que baste, levo para o quintal de trás e faço um enterro. Meu pai balançando na rede, para com isso, Luísa, olha que as amigas delas vêm à noite picar você. Ele sempre diz isso, mas nunca acontece. No jardim dos fundos cavo um buraco na terra com o palito de picolé, enterro as formigas queimadas, boto uma flor por cima, me ajoelho e rezo pelas suas almas. Depois o vento carrega a flor e nunca mais sei onde elas estão enterradas, depois a noite chega e na hora de dormir sinto um breve medo de as outras formigas virem me picar, mas logo esqueço e adormeço entre as mãos de Vick Vaporub do meu pai nas minhas costas e as risadas da Catarina ao telefone. Desde que arrumou um namorado ela fica horas rindo ao telefone, às vezes quero saber o porquê de tantos risos, mas enquanto ela ri meu pai massageia Vick no meu peito e isso é mais gostoso do que rir com a Catarina. Minha irmã mais velha, minha única irmã, bonita, grande, mais forte do que eu. Quando ela sai mexo no seu armário, experimento seus cremes e tento andar de skate segurando na borda da cama, mas sempre caio no chão. Catarina me dá dicas importantes da parte do mundo que ela conhece e eu não, no caderninho anoto tudo o que ela diz, desde quando minha letra não passava de garranchos com erres e jotas invertidos e carinhas desenhadas nos os. Tudo que minha irmã me diz e acho útil pra vida, anoto: “nunca atenda o telefone na primeira chamada”, “para iluminar a pele passe leite com mel no rosto e deixe por dez minutos”, “o mar cura as feridas porque tem iodo”, “nunca mostre medo na frente de um cachorro, eles farejam o medo”, “ande olhando para o alto, só os losers andam olhando pro chão”. Loser, uma das palavras preferidas da minha irmã, antes de entender o que era, eu já sabia que não queria ser uma, por isso andava sempre olhando pras nuvens e pras copas das árvores, mesmo com medo de pisar em algum buraco ou em cocô de cachorro. Por isso quem achou o Jimmy caído no chão foi a empregada e não eu, íamos voltando do mercado e passei reto pelo pato quase morto no chão, mas a Cida viu e chamou: olha, Luísa, um patinho! Nossas cabeças se juntaram para olhá-lo de perto: um filhote de pato pequeno, azulado, tremendo, de olhos fechados, caído na grama. Ele tá com frio, Cida!, aninhei o pato nas mãos em concha e enfiei no bolso do casaco, vou cuidar de você, vou te esquentar, rápido, Cida, vamos pra casa, ele tá com frio.
Chegar com o pato em casa foi um rebuliço, meu pai dizia que devíamos ter deixado ele lá, que a mãe devia estar procurando o filhote, mas Cida disse que tinha olhado muito bem e que não tinha pato nenhum por lá, pelo contrário, tinha era umas gaivotas voando e esperando a hora de comê-lo, batizamos o patinho de Jimmy Spring e minha mãe arrumou uma caixa de sapatos e um abajur para mantê-lo aquecido. Quando o tirávamos da caixa, ele empurrava o chão com a perna direita, mas a esquerda quase não se mexia e ele acabava rodando em círculos. Tadinho, tem a perna paralisada, por isso a mãe o abandonou, diagnosticou Catarina, e começamos todos a pesquisar as causas de paralisia da pata nos patos, todos menos eu que ria do trocadilho e Cida que voltou à cozinha pra terminar o almoço. Foi acidente, é vírus, é defeito de nascimento, é falta de vitamina B, fui com meu pai comprar complexo B na farmácia e uma seringa para colocar água, comida e vitamina no bico de Jimmy, fomos na loja de animais, mas não tinham nada para patos, o dono sugeriu ração para pintos amolecida em água morna ou mingau ralinho de arroz.
Jimmy na caixa só queria ficar encolhido embaixo da luz acesa: não comeu, não bebeu água, só uma vez abriu os olhos para nos olhar. Estudou cada rosto com curiosidade e um traço de afeto, pareceu que ia se animar, mas deitou de novo na caixa e fechou os olhos. Respirava acelerado e, enquanto meu pai procurava um veterinário que atendesse patos, começou a jogar a cabeça para trás, esticar o pescoço e as pernas e ficar duro como uma pedra, ele tá tendo convulsão, explicou minha mãe, e segurou o Jimmy com firmeza para evitar que ele quebrasse o pescoço. Em pouco tempo não podíamos mais soltá-lo: as convulsões eram cada vez mais longas e menos espaçadas, até que no fim de uma delas minha mãe olhou para a gente e, ainda com as mãos fechadas em torno de Jimmy, anunciou: o coraçãozinho dele parou. Catarina e eu choramos, mas enquanto eu chorava de tristeza, as lágrimas dela saíam com raiva: por que, mãe, por que Deus fez a Cida achar o Jimmy se era pra ele morrer? Minha mãe sentou na cama e segurou suas duas mãos, depois a puxou para perto em um abraço e Catarina chorou mais ainda. Então minha mãe puxou a mim também e, com nós duas sentadas lado a lado na cama, nos olhou de um jeito estranho que era um misto de amor, pena e paciência: vai ver Deus fez isso pra ele não morrer sozinho e triste no frio. Já pensaram? Pelo menos ele morreu no quentinho, dentro da nossa casa, aqui na minha mão, no meio de todos nós. As palavras da minha mãe foram fazendo sentido aos poucos, conforme a tarde ia se arrastando e íamos repetindo uma pra outra que ele estava com frio caído na rua, que ele não ia sobreviver na natureza com uma perna paralisada, que as gaivotas iam comê-lo e que ele tinha passado sua curta vidinha feliz, aquecido e sendo amado. Decidimos enterrar seu corpo no jardim, mas ninguém queria colocá-lo direto na terra. Concordamos que ele precisava de um caixão ou, pelo menos, de um paninho. Uma caixa de celular foi do tamanho perfeito, forramos com minha meia felpuda de algodão, deitamos Jimmy na caixinha, tampamos e fomos todos para o quintal dos fundos. Meu pai cavou um buraco ao lado da amendoeira e enterramos Jimmy ali, mas dessa vez eu não quis ajoelhar nem rezar o pai-nosso. Olhe pro chão quando andar, às vezes ele esconde tesouros. Foi a primeira lição de minha própria autoria que escrevi no caderninho.
Juliana Garbayo dos Santos é médica psiquiatra e mestre em estudos editoriais. Natural do Rio de Janeiro, mora atualmente em Portugal. Contos publicados em antologias: “O último trem”, antologia Prêmio Vip de Literatura Edição 2018; “Duro de mudar”, antologia 8º Concurso Microcontos de Humor de Piracicaba; “Sabedoria”, antologia A face do medo, Concurso literário da Editora Folheando e “Pour Elise”, IV Concurso Bunkyo de Contos.