capítulo do romance ‘Descanso’, de Rafaela Riera

Selo Auroras, Editora Penalux 2020.

Capítulo 20: Eugênio Dahl

capa_descansoSempre fui um covarde para dor. Lembro quando caí da minha bicicleta, ainda moleque. A dor é instantânea, mas você demora para reconhecer. Entender que aquele queimado que de repente esquentou toda a sua perna e que transborda calor para fora dela é dor. Que o calor são seus nervos e o seu sangue expostos. Antes que você entenda isso, já caiu com o rosto na terra e rolou colina abaixo. E novamente, a dor é rápida, mas nosso entendimento é lerdo. Você não entende que a perna prendeu na correia, que a bicicleta tombou e você rolou agarrado nela. Sendo “esfaqueado” pelo guidão, pelo arame da roda e até pelo metal do freio que quase atravessa a palma da sua mão. Você só entende isso quando já parou de cair. Quando tenta mexer o seu corpo e nota que ele se fundiu no metal. Seu corpo é duplo. Foi só aí, vendo meu sangue empapuçar a terra que entendi que tudo aquilo era dor. Ela já existia antes de eu ser capaz de dar um nome para ela. Por isso que sei que a dor é a sensação mais primitiva de todas. E é por conhecer ela tão bem, que sempre fugi de um reencontro.

Por isso, me animei em ter uma morte bem longe dela. Mas até isso, esse mundo me negou. Durante dois anos tentei fazer meu requerimento para o Descanso. Foram cinco inscrições canceladas ou negadas. A morte pura não era para mim. Eles haviam decidido e eu não podia fazer mais nada além de esperar que a natureza tivesse a piedade que o homem não teve.

Quando sua primeira opção de morte é negada, você precisa arranjar outra. Mas não é fácil escolher algo assim. Principalmente quando todas as opções envolvem dor. No começo, tentei fazer longas corridas pelo bairro. Um coração tão acabado como o meu não deveria aguentar muito. Esperei um infarto, mas só me mantive saudável e vivo por mais tempo.

Pensei em veneno. Mas o desespero de ter meu estômago destruído enquanto vomitava o resto de mim não me pareceu algo muito bom. Lembrei dos ratos que comiam chumbinho na minha casa. Minha mãe tinha pena de recolher os corpinhos e meu pai nunca estava em casa. Era eu que pegava, um por um, e colocava na lixeira. Os olhinhos pretos estavam sempre esbugalhados. Não quero isso para mim.

Depois, pensei em me enforcar. Afinal, é uma das formas mais famosas de suicídio. Porém, imaginar meu pescoço quebrando enquanto luto para respirar é algo horrível. Além disso, me contaram que algumas pessoas se cagam ou se mijam quando morrem assim. Não. Muito deprimente.

Um tiro resolveria fácil. Mas imagina se eu erro! No lugar da morte rápida vou encontrar um labirinto de miolos e dor que preciso atravessar até achar a paz. Arriscado demais.

Estava quase desistindo, até que um dia, fazendo minha janta, a ideia perfeita surgiu. O fogão. É claro. O gás do fogão era tudo de que eu precisava. Fechei todas as portas e respirei fundo. Tossi várias vezes. Meu corpo amoleceu e eu senti um sono horrível. Mas os bombeiros entraram antes que eu pudesse vencer. Fiquei uma semana internado. E foi lá, enquanto lutavam para me salvar, que achei a minha parceira. Uma enfermeira novinha. Sempre que vinha até mim, me olhava bem demorado. Achei que era pena. Comecei a odiar sua presença. Até que me entregou um cartão.

“Eles podem ajudar o senhor”.

“No quê?”

“No que o senhor quer”.

Não esperava isso dela, com aquele jeitinho de boa moça.

“Você não deveria tentar me salvar?”

“Eu salvo quem pode ser salvo. Eu sei que o senhor vai tentar até conseguir”.

Só liguei para o número quando cheguei em casa. O homem que falava era seco e direto. Isso teria um preço. Um valor que eu não podia pagar.

“Não existe outro jeito?”

“Existe”.

E agora estou aqui, olhando essa porta. Achei que seria um lugar mais bonito. Soube que nos Centros de Descanso, as paredes têm girassóis pintados, grandes janelas e um jardim. Aqui, temos areia, cimento e uma casa que fede a bolor. Aperto a campainha e na mesma hora um homem aparece. Ele é tão grande que diminuo.

— Nome?

— Eugenio Dahl.

— O que você quer aqui?

— Comprar uma moto. Vi um anúncio. Falei com o Elder no telefone.

Era esse o código que eles me repetiram incontáveis vezes no telefone. O gigante me deixa passar. A sala é pequena e o corredor comprido. Atravessamos um lugar que um dia foi jardim e hoje é apenas areia. Meu fim vai acontecer na casinha dos fundos. É difícil dar esses últimos passos. Lembro de mim, pequeno, tendo que andar até em casa depois de cair no morro. Cada passo exigia a força de uma vida.

Assim que entramos na casa, me pedem para colocar uma camisola. Ela está amassada e me pergunto quantas pessoas a vestiram antes de mim. Vou até um quarto pequeno e ponho a minha roupa nova, estou com medo. E assim como a dor, eu só o percebo bem depois, quando já me dominou.

— Senhor Eugênio?

Uma moça de branco me chama. Ela me estende a mão como uma mãe e eu seguro forte nela.

— Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui com o senhor.

Finalmente terei o que quero. E eles terão o que querem também. Como não tinha o dinheiro, entrei em outra categoria de “serviço”. Não tomarei o remédio usado no Descanso. Serei sedado, como em uma cirurgia. E ali, apagado, meus órgãos serão retirados e entregues para quem tem dinheiro para comprar. Uns pagam verdadeiras fortunas para sobreviver, e outros fazem o mesmo para morrer.

Eu limpo as lágrimas com vergonha. Era o que eu queria. Pra que chorar? E no fim, ainda vou fazer o bem para alguém que quer a vida mais do que eu. Mas continuo tremendo. Vamos para uma nova sala, vejo muitas pessoas com roupas cirúrgicas. Todos me olham.

— Bom dia, senhor Eugênio. Sou o Dr. Montes. Vamos deitar?

Os dois me ajudam, as luzes são fortes e doem o olho. Uma outra mulher procura a minha veia. Não solto a mão que me segura. Penso que vou salvar uma criança. Até imagino uma. Loirinha, olhos claros e a cabeça branca cheia de cachos. Uma criança que vai poder fazer muitas coisas. Brincar, aprender e crescer. Ter uma vida melhor que a minha. Uma que terá um sentido.

— Senhor Eugênio, eu sou a Mônica. Vou colocar você pra dormir. Vamos fazer desse jeito: assim que o remédio entrar no seu corpo vamos contar juntos até dez. De trás pra frente. Me avisa quando estiver pronto?

Não existem girassóis. Nem jardim. Nem uma última refeição. A sala cheira a álcool e tudo é azul. Minha vida vai acabar. E eu venci a dor, ela não vai me alcançar. Vou morrer em paz. Solto a mão da enfermeira e agarro a de Mônica. Com a outra mão, ela segura a seringa conectada ao tubo que sai da minha veia. Meu coração bate bem forte. A sala toda se enche com o seu som. Não precisa lutar mais, passarinho. Em breve, você sairá dessa gaiola feita de ossos. E eu também.

— Pronto.

Sinto um gelado na minha veia que vai subindo até o fim do braço.

— Vamos lá, Eugênio. Conte comigo.

— Dez, nove, oito…

Rafaela Riera nasceu em Curitiba, em 1991, e vive em São Paulo. É formada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Positivo e trabalhou como redatora publicitária por sete anos. Hoje, o que ela mais gosta de fazer é escrever, se dedicar à literatura, com o projeto Novas Clarices, e ser mãe da Helena, de quatro anos. Descanso é o seu primeiro livro.