fragmentos do poema dramático ‘O passo do macaco’, de Sérgio Medeiros

O passo do macaco (Cultura e Barbárie Editora, 2021)

capa_medeirosSe o mundo se esmigalhasse, só sobrariam pedacinhos. Só isso, não é mesmo? Digamos que uns poucos artistas possam ter testemunhado a cena (enquanto ascendiam um a um do mundo, o qual não existe mais). Depois, decidiram, aqui chegando, escrever (para nosso deleite?) o que viram ou vislumbraram então. E onde escreveriam, se não houvesse mais papéis? Ora, nas paredes desta galeria de arte esvaziada de obras, aonde vieram se abrigar os referidos espíritos artísticos. Depois, cada espírito leria em voz alta e eventualmente corrigiria diante de nós (se fosse o caso) a sua visão do que sucedera na Terra. Se o mundo se esmigalhasse, mas esta sala fosse preservada, a arte poética poderia nos mostrar algo crucial: que o mundo antigo foi substituído pelo mundo da arte atual, abrigado nesta casa empoeirada. Na beira de uma das migalhas do mundo, numa migalha flutuando a esmo no cosmos, iríamos a uma galeria para testemunhar a arte refazer o que foi fulminado quando o mundo se esmigalhou. Talvez a galeria, qual uma estação espacial, paire agora quase sem trepidações sobre os destroços do mundo. Talvez esta sala, esta galeria de arte, este ateliê contemporâneo, onde certas sombras estão reunidas, seja o único décor a que se pode aspirar agora…

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Mas talvez esses hieróglifos queiram dizer que / quando o mundo estremeceu / o calor subiu / uma moto passou com rapidez pilotada pelo senhor que usava apenas um calção frouxo / o qual expunha a impoluta brancura das suas coxas e das suas costas curvas // uma mulher rechonchuda vestindo um casaco marrom fechado até o pescoço e uma calça bege apertada também avançou / bem vagarosa / pilotando uma moto menor /// com as pernas no ar bem esticadas para a frente / um homem de preto usando uma máscara também preta / sobressaía numa moto mais ampla e mais baixa do que as outras duas / e deslizava no asfalto escaldante como se estivesse num trenó na neve.

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— o totem esganiçado da madrugada me pediu que eu aceitasse a minha nova identidade (a de recém-chegado a terras estrangeiras) a fim de poder seguir em frente com as minhas próprias pernas //
— da perspectiva totêmica o risco que eu corria era ficar hesitando entre o passo bem dado e o passo mal dado sem me deslocar verdadeiramente pela Cidade Luz //
— como se eu ainda andasse em círculos no meu cubículo na Cidade Morena //
— então o totem me chamou e me fez andar.
O
Totem
Me
Chamou
E
Me
Ensinou
O
Passo do macaco… e depois…
* * *
E depois…

Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista-MS e vive atualmente em Florianópolis-SC, onde leciona literatura na Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC. É poeta, contista, dramaturgo, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros livros de poesia, A idolatria poética ou a febre de imagens (Prêmio Biblioteca Nacional 2017) e Trio pagão. Traduziu, com Gordon Brotherston, o poema maia PopolVuh e a crônica histórica A retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, escrita originalmente em francês. Publicou, entre outros ensaios, A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai. Como dramaturgo, reuniu três obras satíricas no volume As emas do general Stroessner e outras peças. Colabora no jornal O Estado de S. Paulo.