das viagens que se quer ficar, crônica de Luciana Rangel

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Do livro Está (quase) tudo bem (Folhas de Relva, 2020).

Do Rio de Janeiro a Belém são três horas e meia de voo. O mesmo tempo de viagem de Berlim a Lisboa. A mesma sensação de encantamento com o novo. Talvez a sensação de um alemão que chega na capital de Portugal. O avião pousou com chuva, ao fim da tarde. Conseguimos chegar ao Mangal das Garças, mas a situação se agravou e fomos presenteados com um temporal de boas-vindas. Era lindo, um calor e uma chuva que parecia que vinha do chão, pois te molhava por dentro da roupa. A água quicava no solo e subia pelas pernas. Não dói, nem incomoda. Estar inteiramente molhada em um calor sauna é algo adoravelmente relaxante. José era nosso motorista. Era magro, bronzeado, cabelos lisos. Um tipo elegante e comum. Não se incomodou com nossos risos e nossa água enlameando seu carro. Fingia que não via e nos contava histórias, dava dicas da cidade. Sabia muito sobre Belém, o clima e a hora da chuva.

Chove todos os dias no lugar mais lindo que eu já conheci. O andar acima do paraíso. Era um deslumbramento eufórico, completamente proibido aos jornalistas, muitíssimo recomendado aos seres humanos. A cidade era repleta de árvores frutíferas. Tinha cheiro de manga.

Belém é pobre, abandonada. A maior sorte do mundo terem se esquecido de Belém. Aquele centro intacto, casebres centenários caindo aos pedaços, desbotados, sujos, grandes contadores de histórias. Retratos do ciclo da borracha e da riqueza que por lá andou. Casebres com alma. Uma personalidade forte tem Belém. José nos apresenta a comida. Sofisticada, aromática. Filhote é um peixe delicioso, o peixe dos peixes. Vejo tudo superlativo, estou sendo seduzida pela terra e me deixo levar. Frutas que nunca mais vou lembrar o nome. Tem fruta no suco, no sorvete, na pizza. É tudo gostoso. Sinto-me onde deveria estar. O taxista não aceita ficar com o troco, me devolve. O garçom devolve uma parte da gorjeta, pois acha que dei muito dinheiro. Entro numa loja para comprar algo que nunca me faça esquecer a cidade. Escolho um CD de um cantor local. Acho muiraquitãs, a pedra protetora em forma de sapo, aos baldes. Quero presentear sobrinhas, irmãs, filhos. Acredito realmente que ela proteja e traga boa sorte. O cinegrafista acha graça da minha crença, mas não questiona. Me pede ajuda para comprar um presente para a namorada. Eu ajudo e tomamos o décimo sorvete do dia. Dessa vez de uma fruta que eu nem sabia que existia. Vamos cedo para o hotel, pois precisamos acordar às três da manhã para filmar o Mercado Ver-o-Peso. O maior, o mais antigo da América Latina. Durmo mal. Estamos no hotel mais caro da cidade. O hotel é horrível. Móveis da década de 1960 são de uma madeira quase podre. O quarto cheira a mofo. A cortina é desbotada. O banheiro é sujo. Azulejos velhos e quebrados. Tudo isso numa rede hoteleira que se diz quatro estrelas. Mas nada atrapalha a minha animação em estar na cidade e conhecer o mercado. Acordo cedo, tomo banho. Como todo mundo faz, vou para o bufê do café da manhã e como por horas. Frutas que conheço, frutas desconhecidas, tomo chá, tomo suco. Como um pão de coco. Provo de tudo para registrar com o paladar aquele momento único.

A equipe apareceu pontualmente na recepção. A movimentação do hotel àquela hora já era grande. A cidade acorda com a lua no céu e dorme com a chuva. Chegamos ao mercado às quatro horas, antes do amanhecer. Cravei em minha memória as centenas de cestas de açaí espelhando a luz da aurora. Um céu de estrelas de açaí. O cheiro, a cor forte do fruto. Centenas de homens negociavam. Precisávamos filmar rapidamente, pois as vendas aconteciam em um ritmo acelerado. Fotografo, aspiro o aroma dos frutos, provo. Ando entre as cestas. Faço meu trabalho com concentração e experiência. Quero viver intensamente aquele pedaço de terra e de gente. E vivo. O dia vai amanhecendo e vejo um pouco mais além das barracas, a neblina desaparece e vira um mundo de peixes, frutas, mangas e barcos. O açaí esvai-se dos cestos. Mas ainda há ervas, legumes, frutas. Começamos a circular pelos galpões. Entramos em um transe sensorial. Esqueço-me de ser eu. Não sou nada, sou apenas o que provo, o que sinto, o que cheiro. Há poesias nas paredes dos galpões. Artesanato. Me dispo do trabalho e me visto de viver. Sou uma vida no meio daquilo tudo. Sou uma mulher no meio da multidão olhando o artesanato. Uma carioca visitando Belém. Nunca fui tão brasileira como em Belém. Senti orgulho de ter um laço com aquelas pessoas. Lisonjeada por estar embalada por cheiros e sabores. Curti cada minuto, cada gota de chuva. No Mangal das Garças, uma reserva como toda reserva deveria ser, garças passeavam ao meu redor enquanto ligava para o meu pai. Conversamos por algum tempo. Ele estava fraquinho. Sentei-me numa pedra enquanto a equipe filmava. Choveu bastante e fingi não ter guarda-chuva. Fui libertada da dor, da indecisão, da culpa, fui lavada de minhas dores. Belém é a porta da floresta. Belém foi a porta que faltava para me abrir para as minhas fragilidades. Voltamos para o hotel para arrumar as malas e ir para o aeroporto, precisávamos voar para Marabá. De lá, pegaríamos um carro e viajaríamos horas e horas para chegar à tribo dos Xikrin. Desço mais cedo para o lobby, José já está lá. Faço o pagamento dele, agradeço. A TV alemã não dá gorjeta. Eu dou. Ele agradeceu e disse que naquele dia completava 50 anos. Dou os parabéns, meio sem graça. José é um tipo fino e apático. Para ele está tudo bem, tanto faz. Ele é tão profissional e educado que seus sentimentos não são necessários. Fica incomodado com o atraso do grupo. Um dos colegas perdera a hora. No fim deu tudo certo. Em produção de TV, tudo precisa dar certo. Nos despedimos de José. Ele me falou da vida na cidade com pouco entusiasmo. Em dois intensos dias de trabalho, era a primeira vez que realmente papeávamos. Contou-me que tem dois filhos e é professor de história formado, o que me explicava a sua eloquência. Está frustrado. Não me disse, mas seu desânimo em contar a história mostrou a infelicidade de estudar anos para virar motorista. Ele tem dois filhos, repete. A escola particular é cara. “Você estuda com eles também? Ensina história?” Ele responde irritado que não. Uma irritação sofisticada. Pergunto mais, pergunto se seria possível dar aula e ser motorista ao mesmo tempo. Pergunto se a mulher dele trabalha, pergunto por que ele não mudou de cidade. Pergunto, pergunto… e ele se despede aliviado, tirando apressado as muitas malas do carro. Ele não gostou de mim. Eu também não gostei dele. Era bom profissional, excelente. Contrataria de novo. Mas ele não sentia o cheiro de manga. José não suspirou com o mangal. José me lembrava o Brasil doído e real em um lugar que eu só queria o Brasil imaginário. Eu só queria a fantasia. Acabou. José ficou em sua vida e eu segui meu roteiro. Tinha datas, horários, endereços, tudo super bem orquestrado, diferentemente da minha vida pessoal, completamente desestruturada.

Luciana Rangel é jornalista e escritora carioca. Mora na Alemanha desde 2005. Em sua trajetória, soma experiência na imprensa internacional e nacional. Suas produções sobre história, política e cultura foram premiadas pela União Europeia e TV Globo. Recebeu também o Prêmio Petrobras pelo documentário Brasil: País da saudade. Como autora, participou da antologia bilíngue Saudade é uma palavra estragada (Bübül Verlag), de Escrever Berlim (Editora Nós) e do Salão de Outono do Teatro Maxim-Gorki de Berlim. É doutoranda do Instituto Latino-Americano da Universidade de Bielefeld.