quase um andor
os segundos são aves disfarçadas
por vezes leves e ágeis
noutras
trazem consigo toda uma eternidade
há humanos que controlam o tempo
e suas ansiedades
nunca me dei para essas contagens
muito embora parte de mim
seja ânsia de um porvir
que nem sempre chegou
chega ou chegará
o meu passar do tempo
segue envolto em mistério
tem de tal sorte vida própria
que me curvo humilde
diante dele
assim tenho sido
por ele surpreendida
ao longo da estrada
como agora
em que me dou conta
de que cada semana dos últimos três meses
revela-se a mim como um ano inteiro
anos desapercebidos
da fronteira que atravessei
no carnaval
sentindo a juventude
com que a montanha sempre me enfeita
acordo
passado o corpus christi
uma senhora ancorada
numa espécie de padiola
sozinha e sem ornamentos
restam memórias
alguns lamentos
e a certeza de que
a contagem dos anos deva ser
daqui para frente invertida
alguma verdade há de vir
deste tormento
e se verdades não há
luzes iluminarão
o que sempre fiz questão de ver brilhar
até mesmo na escuridão
enquanto isso
refaço questionamentos:
quantos anos ainda tenho?
o que deixei de fazer
que ainda acredito deva ser feito?
com quantos afetos se prepara e tempera?
amargos adocicados pelo olhar
se para ver
não mais dispenso os óculos
para sentir
basta-me viva.
no tempo dos homens
amanheceu a segunda-feira
no tempo dos homens
no meu calendário…
meu calendário está perdido
na gaveta das lembranças
experiências que me compõem
mas meu relógio soa ligeiro
de hora em hora
a me gritar pelo espelho
às vezes, faço-me de tonta
e ignoro solene
isso que chamam
de passar do tempo
melhor era passar anel
como fazíamos
quando crianças
inocentes dos muitos mundos
que há no mundo
e o maior mistério
era a descoberta
da mão certa
hoje procuro as mãos
talvez não as certas
mas as afetuosas
que me apoiem
e nas quais
eu possa me apoiar
não será preciso
que me conduzam
os caminhos saberão
por onde nos levar
mas careço do sorriso
do olhar amigo
de abraços que acolhem
e aplacam as angústias:
angústias divididas
que nos tornam iguais
na dor e na busca
por uma razão para tudo isto
a que chamam vida.
tempo
há muito tenho notado
a presença de um artista
tatuando em meu corpo
silencioso
trabalha linha a linha
formando teias
verdadeiros bordados
que uns chamam de estrias
prefiro tratar por linhas
ou traços
dos quais retiro versos
entoando rimas
que brotam como um sopro
em olhos de células
nada inflamadas: espertas
vestem-se de tecido vivo
e aparecem para a festa
neste corpo feito ao leite
transformado pelo vento
em cacau setenta por cento
os dias das vergonhas
passam longe
ruga, estria, celulite
sim, eu as tenho, todas
obra de arte
do tempo artista
que me presenteia
quase todos os dias
também com pintas lindas
pretinhas e branquinhas
nos braços, no peito
e nas canelas
altas horas
quando todos dormem
elas dançam
comigo
o balé da vida.
Jussara Resende é brasiliense, graduada em Comunicação Social e Direito. Faz da escrita sua morada pessoal e profissional. Seus poemas, contos e crônicas transitam por temas que vão desde as relações afetivas à filosofia do cotidiano, marcados pela realidade e pela composição urbanística de Brasília. A poeta divulga seus textos nas redes sociais, contando com algumas publicações em revistas eletrônicas.