quatro poemas de Davi Koteck

não apenas mastigar
salivas queimadas e o gosto
de fórmica no canto da língua
você dirigindo na contramão
com os faróis apagados
é noite e
enfrentamos fantasmas feitos de areia
há muito pela frente
tudo que me for possível, ou menos

* * *

antes de partir me conta
sobre teorias absurdas
a psicanálise selvagem
lê os poemas da tua vida
e se não souber dizer
escreve um agora
conta sobre a tua infância
um barco pequeno e branco
o guaíba pintado de blues
os amores descascados
mapeia tuas cicatrizes
mais de mil vezes
até que eu possa contar tudo de novo pra ti

* * *

viajo porque preciso volto porque te amo

sentamos no chão do aeroporto
imaginando destinos prováveis para
o resto dos passageiros
você com a mala pequena
uma caixa de sapato enterrada
com segredos embaixo da terra
quem irá abrir um clube de jazz
na periferia de Paris
quem visitará um filho perdido
no dia dos pais
o título daquele filme que assisti
num dia cansado
se você for mesmo olha para trás
repetiremos outra cena comum

* * *

e se acordasse dizendo
que não sinto mais tua falta
e se só sentisse saudade agora
do teu gato amarelo e gordo
ou da maneira que você se concentra
em frente ao computador
mas não de você
de gritar mazel tov quando a louça quebrar
ainda que agora eu só use copos descartáveis
e mesmo que agora eu só beba água da torneira
hoje é o terceiro dia que acordo sem sede

Davi Koteck nasceu em Porto Alegre (RS) em 1995. Publicou o livro O que acontece no escuro (Editora Taverna), e participou da antologia Qualquer Ontem (Editora Bestiário). Tem contos e poemas publicados na São Paulo Review, Ruído Manifesto, Etudes Lusophones (França), Revista Travessa em Três Tempos, Mallarmargens, e outros. Edita a Revista Rusga. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel (Editora 7letras, 2020) é sua estreia na poesia.