
circunstância da luz
estamos voando em círculos
os pássaros também
presos
nos feixes de luz
exaustos
sem saber
que rodeiam
a própria morte
tartarugas perderam o horizonte
ao nascer ficam tontas
desbussoladas
vão errantes pela praia
morrem demais
não só a falta
o excesso
de luz
também
liquida
diz a cientista das estrelas
diz o guardião da noite escura
diz o vendedor de um novo tipo
de luz amiga das tartarugas
diz o pesquisador das consequências do azul no olho
diz a especialista em ossos de passarinhos
diz o homem contra postos de gasolina
mais claros que a luz do dia
aquela noite em Budapeste
agora sei
não eram morcegos
em dança notívaga
mas bandos de pássaros
presos na luz dos holofotes
por inépcia
dificuldade
ou cálculo
as coisas mudam
bem devagar
uma cigana me disse
nem sempre vale mais
o que magoa menos
vi estrelas tatuadas no seu braço
foi na Avenida Rio Branco
antes de uma grande inundação
o mundo tem tantos problemas
a poeta nem consegue ser boêmia
abstratora sismógrafa coletora
de quintessências fenomenais
não quero falar dos bichos abatidos
mas da raposa-poema
nascendo noite após noite
das páginas de um livro
vem e pousa ao meu lado
vamos ver as hortênsias
o opala da noite
o sentimento modulado
o ano inteiro
a vida inteira
outras circunstâncias
o poema depende
de coisas pequenas
conseguir
esperar
ver
o animal saindo
da fábula real
tabaco prosa
raposa ao relento
passos de veludo
o melro derrotado
dentro de um quadro
coisas girando
no desespero
de outro livro
tudo depende
de pequenas coisas
um olho machucado
intensidade do talvez
o animal pequeno
rasgando o poema
enrolando nomes
em folhas de tabaco
você também vai flutuar
sumir do filme
irretocável do que quase
nada segue sendo sempre
espera
inundação
estrago
dedo enfiado na ferida
todas as palavras
que trocamos
moedas sujas
o poema não depende
de nós
de mão em mão
as imagens
voltarão a circular
entre o fosso e o postigo
depois do fim do tempo
das coisas girando
guerra do doce
contra o amargo
a impressão de tudo
se apagando ao redor
até discretamente
sumir
sumiremos também
nas letras
furos
no alfabeto
versos de circunstância
gosto quando nas aulas
alunas desatentas
despertam do profundo cansaço
como deidades muito antigas
em ondas de sobrevivência
a vida numa certa idade se parece um pouco ao cansaço mítico
— um comboio comprido passando depressa
mas devagar demais depressa —
e dizem de uma só vez toda a verdade
sobre os textos que não leram
(uma amiga diz que
coisas mágicas acontecem
em sala de aula
mas também coisas súbitas
como pessoas
pedindo licença ajuda
mostrando cicatrizes
receitas
e depois sumindo
para sempre)
gosto quando nas aulas
alunos muito atentos
fazem as perguntas
que mais gosto de fingir
saber responder
o que é anacronismo?
o que significa signo?
gosto quando nas variações da vida
que são as aulas
me perco no meio de uma frase
perco todas as palavras
peço ajuda às alunas cansadas
distantes em seus comboios
infinitos vagarosos porém frenéticos
e ninguém ousa dizer
professora não temos a vida toda
ande com essa frase precisamos dormir
fazer xerox sofrer
transar e outras coisas
menos palpáveis
voluptuosas
ande com isso que não temos
a menor ideia da sua ideia
de frase
às vezes me salvam dos lapsos
às vezes me jogam dentro deles
um pouco mais
profundamente
às vezes não quero ser salva
há dias — todos os dias — em que sei que sou
o professor de natação
sem água
Laura Erber nasceu no Rio de Janeiro em 1979. É escritora, editora e pesquisadora. Publicou Os corpos e os dias (Editora de Cultura, 2008), A retornada (Relicário Edições, 2016) e Theadoro Theodor (Editora Quelônio, 2018). Dirige a Zazie Edições, editora independente, sem fins lucrativos, que publica livros digitais em sistema de open access. Atualmente vive em Copenhague.