As mãos dele, ensanguentadas, sujas.
Com muita revolta quero gritar
a morte tão sofrida e dolorosa
de todos estes e de muitos mais:
A morte da empregada doméstica prestativa
É dele
A morte do feirante engraçado
É dele
A morte do desenhista de histórias infantis
É dele
A morte da atriz de novelas, aposentada
É dele
A morte do maior escritor do país
É dele
A morte do jornalista, radialista e advogado
É dele
A morte do político reacionário
É dele
A morte da dona de casa entediada
É dele
A morte do segundo maior escritor do país
É dele
A morte da criança autista do prédio ao lado
É dele
A morte do político progressista
É dele
A morte do político centrista descentrado
É dele
A morte da pastora e cantora gospel
É dele
A morte da médica pós-graduada
É dele
A morte do maestro e da maestrina
É dele
A morte do surfista e ator pornô tatuado
É dele
A morte da artista obesa e diabética
É dele
A morte da socialite enturmada
É dele
A morte do segurança do metrô com três filhos
É dele
A morte do sem-teto esfomeado
É dele
A morte do empresário bem sucedido
É dele
A morte do economista renomado
É dele
A morte do sogro de meu melhor amigo
É dele
A morte do porteiro bem apessoado
É dele
A morte da sonhadora professora de inglês
É dele
A morte do poeta premiado
É dele
A morte da mulher do galerista
É dele
A morte do cirurgião plástico conceituado
É dele
A morte dos padres de nossa senhora aparecida
É dele
A morte do compositor visceral engajado
É dele
A morte do programador de computadores
É dele
A morte do halterofilista bombado
É dele
A morte do neto de meu colega de trabalho
É dele
A morte do filósofo aburguesado
É dele
A morte do rápido motoboy
É dele
A morte da modelo siliconada
É dele
A morte da mãe do prefeito eleito
É dele
A morte do estudante descuidado
É dele
A morte do idoso que eu via pela janela
É dele
A morte da gerente de RH estressada
É dele
A morte do artista visual modernista
É dele
A morte do motorista descompensado
É dele
A morte da avó da primeira-dama
É dele
A morte do adolescente ensimesmado
É dele
A morte do compositor de samba enredo
É dele
A morte do dramaturgo desbundado
É dele
A morte da cantora intimista
É dele
A morte do caixeiro viajante desempregado
É dele
A morte de tantos e tantas iguais a mim ou a você
É dele
Cada morte
Cada uma destas mortes
É dele
(Repita mais de 200 mil vezes e mais e mais
E grite
Use sua indignação ou desespero
Sua raiva
Sua voz
Como uma arma
Até que o amém se transforme
De “assim seja” em “assim não seja mais”,
nunca mais)
Jozias Benedicto é escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Tem especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-Rio. Suas videoinstalações, performances e pinturas que unem literatura e artes visuais foram apresentadas em seis mostras individuais e em exposições como a XVI Bienal de São Paulo e o Salão Nacional de Artes Plásticas. Atua também como curador independente. Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas, foi finalista do Concurso Sesc de Literatura 2012-2013. Como não aprender a nadar conquistou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 (Contos) e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da Diretoria da UBE-RJ. Recebeu premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por Um livro quase vermelho e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por Aqui até o céu escreve ficção, publicado pela Editora Patuá em 2020. Além disso, publicou dois livros de poesia, Erotiscências & embustes (2019) e A ópera náufraga (2020), ambos pela Editora Urutau.