o trovador de Toledo, conto inédito de Rosângela Vieira Rocha

Descabelada, com roupa de casa, os pés enfiados em chinelos de borracha, ela desce o morro lentamente. A calçada é muito estreita e tem de se agarrar às paredes dos prédios, para não cair. O declive acentuado faz com que ande quase agachada. Mas não é só por causa do declive que se encolhe. Sente cólicas fortíssimas e sangra. As pontadas fortes provocam-lhe tonturas. Ou seria uma queda de pressão? Sua pressa a impedira de pegar o estetoscópio no armário. Justo ela, que mede a pressão arterial alheia o dia inteiro, como médica residente numa clínica.

Essa caminhada não rende, constata, com desgosto. Ainda faltam uns quatro ou cinco quarteirões. Sempre achou o hospital perto, e se vangloriava com os amigos de morar nas proximidades de um hospital público. Mas essa é uma noite diferente de todas as outras, a mais triste que já teve. Como pôde chegar a isso? Que decadência. Então, a mulher valente tem medo da mãe, em plena década de sessenta? Palavras duras ainda ressoam por todo o seu corpo: você me traiu, Adriana, com essa gravidez prematura. Não foi esse o trato que fizemos, quando prestou o vestibular. Eu me propus a ajudá-la a realizar o seu sonho, pagaria parte das mensalidades da faculdade, compraria aparelhos, e futuramente você auxiliaria a sua irmã menor. Mas agora, pondo no mundo uma criança antes de ter marido, como vai ajudar a Aninha? Que vergonha, engravidar sem ser casada. Você é uma traidora, não tem palavra, não levou o nosso trato a sério. Solteira e grávida, que horror. Não criei filha para fazer esse papelão. O que vou dizer à sua avó, às tias, à família toda? Que minha filha mais velha não tem vergonha na cara? Mas eu não vou me vingar, quem vai se vingar por mim é Deus, não vou precisar levantar um dedo. Sabe como? Você nunca, mas nunca, nunca será feliz.

Um forte arrepio toma-lhe o corpo. Sente frio, o tecido do seu vestido caseiro é muito leve, e venta. Ouve ruído de trovões, enquanto vai se arrastando, ladeira abaixo. O sangue escorre pelas pernas, não pegou nem sequer um absorvente, tal a pressa com que saiu de casa. Há quantos dias tinha ocorrido aquela conversa? Uma semana, talvez? Não consegue se lembrar, tenta fazer contas, mas as agulhadas fortes não a deixam pensar direito. É uma hemorragia, agora há sangue ao redor de si, vai deixando um rastro vermelho pelo caminho. Ainda bem que está muito escuro, é tarde e não há mais gente na rua.

Ao dobrar a esquina, percebe haver uma festa no enorme casarão cor-de-rosa. Felizmente as árvores de acácias, carregadas de flores amarelas, a tornam invisível. É uma comemoração ao ar livre, que parece muito animada. A música alta contrasta com o silêncio da rua. Reconhece a voz de Gilda Lopes, bonita e límpida:

Nas noites enluaradas
Na formosa Toledo
Alguém esconde em segredo
Um amor proibido.

Sente-se cada vez mais fraca e as dores fortes provocam-lhe enjoo. Decide contar os passos, para ocupar a mente com algo diferente das cólicas. Sabe que precisa de força, faltam ainda dois quarteirões para chegar. E se encontrar algum colega por lá? Tenta se lembrar se alguém da sua turma faz residência naquele hospital, mas não consegue. Sente mais frio ainda ao cogitar essa possibilidade. As arrogantes Marluce e Sara não trabalhavam ali? Não, agora estão na clínica São Guido, lembra-se. E o Zeca? Que bobagem, está fazendo confusão. Zeca é filho de gente rica, foi estudar na Europa. A simples lembrança de Zeca a faz vomitar ali mesmo. Foi apaixonada por ele no início do curso e rejeitada sob a alegação de que “tinha pernas finas demais”. Mal-educado e cruel, aquele bigodudo. Disse aquela frase completamente dispensável sem anestesia nem nada. Assim, de repente, no terceiro ou quarto encontro. Pernas finas demais! Não argumentou, de tão chocada. Foi a última vez que o viu, a partir daquilo não mais o enxergou. Tem essa propriedade, a de não ver mais quem a fere.

Resolve descansar um pouco sob um dos galhos de acácias. Preciso adquirir forças, tenho de continuar, sua mente grita. Mas o corpo, este deseja ficar esticado ali, coberto com o vestido ensanguentado. De repente, um casal sai da casa, caminhando até o carro. O homem está com uniforme da aeronáutica, cheio de comendas. Deve ser um brigadeiro. Se tivesse coragem, pediria uma carona até o hospital. Mas empapar a poltrona do carro dos outros de sangue? Responder a perguntas de um militar? De alguém de patente tão alta? E se acabar presa, como o filho de dona Gertrudes? Melhor ficar bem encolhida ali mesmo, até o homem dar a ré no Ford Galaxie branco e partir.

O trovador de Toledo
Pelas noites escuta
E toda gente pergunta
Qual será o segredo
De uma janela apagada,
De um balcão deserto.

Esforça-se mais um pouco. Agora, anda praticamente de gatinhas, sentindo enorme fraqueza. Devo ter perdido sangue demais. Certamente vou precisar de transfusão, raciocina. Grossas gotas de chuva começam a cair. Era só o que faltava para piorar as coisas. Se o chão ficar escorregadio, talvez seja melhor tirar as sandálias de dedo. É provável que machuque os pés, nas pedras irregulares da calçada. Mas ainda assim é melhor que uma queda, decide. Em poucos minutos a chuva se transforma em tempestade. Mas agora falta apenas um quarteirão.

Tenta pensar num show de Gilda Lopes, chamada a “Fabulosa”, a que assistiu certa vez. Tão bonita era a cantora, que não sabia se prestava atenção na voz belíssima ou na figura da moça. Sempre invejou quem consegue sustentar sons agudos, ela com sua voz grave e rouca. Mas Gilda é cantora de óperas, relembra. Tem uma técnica muito apurada e é soprano.

A chuva lavou o vestido ensanguentado, grudado ao corpo. Sente-se nua, assim descalça e mal coberta pelo pano fino. Uma residente do curso de Medicina, quem diria. E chegarei ao hospital como uma mendiga, molhada e descalça. Encontrarei alguém conhecido por lá? Um colega, um professor? Terei de preencher formulários, responder a perguntas. Como poderei provar que não provoquei isso? Será que minha palavra bastará? Avisarão à polícia? Tenta se lembrar do protocolo, já estudou os procedimentos em várias disciplinas, embora nunca tenha se interessado por ginecologia. Tudo que encontra é o branco, o vazio. Não se recorda de nenhuma vírgula do protocolo. Desde o início do curso sua paixão pela endocrinologia tinha sido tão forte que só pensava em hormônios. Como pode ter se esquecido de algo tão primário?

Continua a andar, agora ainda mais devagar, chapinhando na enxurrada. Chora. Esse sangue expulso de suas entranhas seria de um menino ou de uma menina? Que pena, o rosto, o corpinho, nunca se formarão. Ela não o queria realmente, mas jamais faria aquilo de caso pensado. Bebê, me perdoe. Não estou à sua altura, não soube lutar por sua vida, me deixei levar pelas circunstâncias, o medo me consumiu. Não pude retê-lo, meu corpo e minha mente o rejeitaram, eu não soube vencer o mundo. Sou fraca, meu bebê.

Já consegue avistar o imponente prédio branco. À medida que se aproxima, a voz da mãe vai aumentando de volume: você me traiu, não cumpriu o trato. Nunca será feliz. As palavras duras causaram feridas fundas, mas não a impedem de continuar o caminho. Posso até não ser feliz, fala alto. Mas daqui a pouco me farão uma curetagem, provavelmente passarei por transfusão de sangue, tomarei soro e ficarei internada pelo menos quarenta e oito horas. A felicidade é sempre transitória. Agora, a urgência é estancar a hemorragia, não ter infecção e permanecer viva. Vestir roupas enxutas, aquecer-me com um cobertor, sair da chuva e da escuridão, tomar antibióticos receitados corretamente e quem sabe um prato de sopa quente, quando puder.

Finalmente, chega ao grande portão do hospital e dirige-se ao pronto socorro. E logo é atendida por uma colega idosa, que não lhe faz muitas perguntas. Após a curetagem, a colocam numa cama limpíssima, na enfermaria. Antes de se render ao torpor provocado pelos medicamentos, pensa na mãe e em sua maldição. Sabe que até as pragas das mães têm limites, não valem para sempre, e não é por serem nossas mães que se transformam em pitonisas. Adormece ao som da voz de Gilda Lopes:

E uma janela apagada
é o que restou, mais nada,
dentre as lembranças que a noite
consigo guardou um dia.

Rosângela Vieira Rocha é jornalista, advogada, escritora e professora aposentada do Departamento de Jornalismo da FAC/UnB. Nasceu em Inhapim, MG, e mora em Brasília desde 1968. É autora de catorze livros, adultos e infantojuvenis. Nos últimos cinco anos, escreveu três romances: O indizível sentido do amor (Editora Patuá, 2017), Nenhum espelho reflete seu rosto (Editora Arribaçã, 2019) e O coração pensa constantemente (Editora Arribaçã, 2020). Recebeu vários prêmios literários e tem contos e artigos em diversas coletâneas e livros acadêmicos. Participa ativamente do Movimento Mulherio das Letras. É colaboradora da revista literária digital Germina.