s/título, poema de Jussara Salazar

UM MAR COR DE JADE
MAR NEGRO
PEDRAS ANJOS
NAVIOS DE PASSAGEM

| REMIX |
Um close-reading expõe uma quantidade de corpos
um falso bloco de nudistas
algaravias noturnas sob um azul violento
que se divide em fatias
cortadas com esmero ao vento
bajo el sol de una faca cabralina, oh João!
— o mar azul, o céu azul —
duas lâminas, duas medidas.
Uma só cicatriz. A cidade desnuda. A cidade definha.

Entre as manobras do prático
as redes
hoje vão capturar uma colheita magra de peixes
e algumas carcaças humanas abandonadas por algum predador marítimo.

Não falarei da cidade
mas da mulher negra

Direi ao mar: os teus peixes morrem. Mas o mar não escutará
e moverá as negras ondas as negras mãos líquidas que não gesticulam
mas gritam palavras desconhecidas em línguas diabolicamente estranhas

Não falarei enquanto falo ao mar
E ouço nomes que se assemelham ao nome dela. Mar
O querubim de olhos engraçados e sem um braço repete também esse nome
como um mantra
uma loa
um poema monótono
um poema bélico.
Não falarei sobre a dúvida ou
as bifurcações impossíveis das quadras em forma de triângulo
que se amontoam nas ruas de um bairro sujo e distante
Das pequenas ondas lentas, mornas e cinzas com a chuva monótona
E tampouco falarei das ondas. Nunca as ondas
roçando o teu torso macio de anjo pelas ruas
agora vagando sem rumo, mutilado, boiando
apodrecendo nesse vaivém das águas
A cidade é o cão do poeta. Hoje a cidade está nua
_____NOLI ME TANGERE
Soa a palavra escura. Incompreensível
Não caminho mas caminho
hoje escrevo sobre tuas cinzas. Escrevo
sem um pássaro para ouvir ou cantar
Só o silêncio e a pedra antiga me escutam
Escrevo para a dúvida
corpo em abismo. Escrevo
para construir um céu ou um pomar
para tingir um vestido
Cantar a morte ou derrubar um obelisco
E desescrevo e o céu desaparece
como tu desapareceste na noite
entre as balas dos que não te querem. Escrevo
para desdizer o poema nunca escrito
e que venham os espíritos
os cães vadios ditem palavras
bebam o veneno
roam o osso
e depois cantem
aquela ária retorcida sobre o teu corpo
Para escrever palavras santas sento ao lado do senhor
abro a janela para nunca mais sair
e brincar e furiosamente. Serei um cão
Filha da palavra escura. Incompreensível. Sou. És as cinzas
Escrevo
Para costurar tua mortalha com agulha sombra e silêncio
ir do fim ao princípio alinhavando
_____Cantar para o corpo
_____unindo o algodão branco
_____e o visgo do barro negro
_____à sombra do verso torto

Para desmanchar o poema dobro o sudário
porque amanheceu e as luzes se apagaram
e a rua sangra sob o massacre
Sob a luz não: nenhuma dor
Guardo teu corpo. Agulha sombra e silêncio para as cruzes de agosto.
Escrevo
Para esquecer o poema às 5
enquanto lavo o rosto
e visto o casaco
e o século acaba sem velas acesas
Pés descalços sigo teu cortejo
que passa
oh jardins destruídos. Entre cadeiras ensolaradas caminho
beirando os muros da cidade
E quando o sol surgir espalharei tuas cinzas entre flores
sobre esse mar cor de jade

Jussara Salazar é escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá, poemas de Leticia Volpi (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (Buenos Aires, 2008), Carpideiras (2011) com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012, O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (2014) e Fia (2016). Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.