três poemas de Nayara C. P. Valle

* * *

Na minha rua os passarinhos são donos do céu
Ao entardecer ensaiam melodias improvisadas
de notas longas e comoventes
Ainda em casa na companhia de outras casas
da rua, há tanto tempo que é impossível dizer
Hoje, o adeus do sol desperta lirismo
na semente de coentro da horta
As canecas que não se tocaram estão vazias
Quando recolho-as, ainda há algodão preso
nos círculos de arame farpado do muro
Já bem tarde a noite desponta recortada
como peças de um quebra-cabeça

* * *

Ouço um grito na rua
cada vez mais agudo
dentro deste grito outro grito
ainda mais alto

quando passa a sirene
vejo uma poça de sangue
refletida no arame farpado
que protege o muro da casa

Proteção
é apenas uma palavra

* * *

não-retorno

O sol forte incide na varanda
Refrata na garrafa de café, já vazia
seus sonhos mais remotos

Uma palavra que quase existiu
estava prestes a dizê-los por inteiro
mas veio a época em que os termômetros mediam o tempo

Lá na última estação de trem
lamentam a primavera
de filhos que nunca conceberão

Nayara C. P. Valle nasceu em Barra do Cuieté, Minas Gerais, e atualmente reside em Belo Horizonte. Formada em Letras-Português e pós-graduada em Jornalismo Cinematográfico. É autora de Esmeril (Editora Urutau).