I.
enquanto
o mundo se afunda
para que viva no meu rosto
porque ainda não há
fenda
por onde os pulmões
por onde uma lâmina
por onde a espinha
por onde
amor absoluto
por distante que seja
por onde
inseguríssima manhã
ditando iniciais ao corpo
por onde
teia vocal circulando
em curto
espaço deslocado
por onde
quem desaguando
comigo se despenha
II.
cada dia isto
a carne
por dentro da pele
madrugada sondando
não sei que lugar
por onde
a consumação dos dedos
aqueduto de vários nervos
exortando a vida
para não entristecer
sozinha
isto
querendo dizer
múltiplos braços cruzando
a mesma atmosfera
por onde
alguém que mo diga
III.
por onde
puxada a ferros desde o começo
eu e a vida
impendendo sobre
décadas cobertas de frases
e às vezes
muito acima disso
olhando
estações palavras portas
a girar
se me chamas canção
gerando canção
mistura de anos na garganta
que não é senão
minha
e só uma coisa
por onde o resto acontecia
IV.
por onde
ignorando o lado escuro
a zona impossível
sem retorno
abrindo-se
por onde
nem mesmo o que ignoro
e trago comigo
por onde
um peito contra o solo
sangue
do meu sangue
então leite
desabitando as estrelas
monotonamente
V.
por onde
meio do céu se te chamo
isto
porque não há perfis
por onde
nem horóscopos
nem lanternas nem ossos
nem adjectivos cheios de gente
a compor a solidão
aquilo
valendo o sol
e o seu aspecto em cada
nome
por onde
o espírito
mexendo invariavelmente
como se fruto
deixando-me seduzir
atalaia transformando
a boca em ninho
acto contínuo
por onde
eu e tu um só corpo
pedra branca apocalíptica
subindo-me até aí
aí
o que não me foi ensinado.
Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [PT], com um projecto sobre Teixeira de Pascoaes. Além de uma paixão pelo teatro que a levou a sair do lugar de espectadora, tem vindo a publicar escrito, ensaios e poemas em revistas e plataformas literárias (Revista Sítio, Forma de Vida, Jogos Florais, Subversa, Ruído Manifesto, A Virada, Literatura e Crítica, Gazeta de Poesia Inédita, entre outras). A sua mais recente edição (2019) foi a de um livre-affiche, Hiante, feito em colaboração com o músico electroacústico João Castro Pinto, com a chancela helvética da Grimaces Éditions.