acto contínuo, poema de Sofia A. Carvalho

I.

enquanto
o mundo se afunda
para que viva no meu rosto
porque ainda não há
fenda
por onde os pulmões
por onde uma lâmina
por onde a espinha
por onde
amor absoluto

por distante que seja

por onde
inseguríssima manhã
ditando iniciais ao corpo
por onde
teia vocal circulando
em curto
espaço deslocado

por onde
quem desaguando
comigo se despenha

II.

cada dia isto
a carne
por dentro da pele
madrugada sondando
não sei que lugar

por onde
a consumação dos dedos
aqueduto de vários nervos
exortando a vida
para não entristecer
sozinha
isto
querendo dizer
múltiplos braços cruzando
a mesma atmosfera

por onde

alguém que mo diga

III.

por onde
puxada a ferros desde o começo
eu e a vida
impendendo sobre
décadas cobertas de frases
e às vezes
muito acima disso
olhando

estações palavras portas
a girar
se me chamas canção
gerando canção
mistura de anos na garganta
que não é senão
minha

e só uma coisa
por onde o resto acontecia

IV.

por onde
ignorando o lado escuro
a zona impossível
sem retorno
abrindo-se
por onde
nem mesmo o que ignoro
e trago comigo
por onde
um peito contra o solo
sangue
do meu sangue

então leite
desabitando as estrelas
monotonamente

V.

por onde
meio do céu se te chamo
isto
porque não há perfis
por onde
nem horóscopos
nem lanternas nem ossos
nem adjectivos cheios de gente
a compor a solidão

aquilo
valendo o sol
e o seu aspecto em cada
nome

por onde
o espírito
mexendo invariavelmente
como se fruto
deixando-me seduzir

atalaia transformando
a boca em ninho

acto contínuo

por onde
eu e tu um só corpo
pedra branca apocalíptica
subindo-me até aí


o que não me foi ensinado.

Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [PT], com um projecto sobre Teixeira de Pascoaes. Além de uma paixão pelo teatro que a levou a sair do lugar de espectadora, tem vindo a publicar escrito, ensaios e poemas em revistas e plataformas literárias (Revista Sítio, Forma de Vida, Jogos Florais, Subversa, Ruído Manifesto, A Virada, Literatura e Crítica, Gazeta de Poesia Inédita, entre outras). A sua mais recente edição (2019) foi a de um livre-affiche, Hiante, feito em colaboração com o músico electroacústico João Castro Pinto, com a chancela helvética da Grimaces Éditions.