Henrique dirigiu-se à sala. Sentou-se na poltrona que lhe fora deixada pela avó materna. Era castanha, com umas manchas amareladas e uns pontos descosidos, marcas do uso e do tempo. Tinha um apoio para os pés e um suporte para colocar copos, embora ele o usasse para depositar as folhas amarrotadas, outrora esboços de desenhos que, por não terem a qualidade ambicionada, não eram dignos de ser olhados por outros olhos senão os dele.
Estava feliz. Não tinha razões para não estar, embora se saiba que o cérebro humano não é tão linear assim e pode levar-nos rapidamente a um estado de tristeza, mesmo que tudo à nossa volta corra conforme o planeado.
Hoje fixou o pensamento sobre a poltrona, normalmente não o faria, sentava-se apenas, de forma mecânica e irracional. Mas hoje recordava aquela senhora, que tinha tido a sorte de poder apelidar de avó, e que lhe deixara tal objeto, não em qualquer documento escrito, mas por ter repetido várias vezes ao longo dos anos: “esta será tua quando eu… sabes?”. Não gostava de falar na morte, não tinha a frieza necessária para enfrentar uma condição na qual não tivesse oportunidade de estar com a sua família. A sua reflexão foi interrompida pelo som do telemóvel, era o seu pai. A voz trémula e praticamente irreconhecível, que se unia a um choro desesperante, dizia-lhe que a sua mãe lhe falecera nos braços. De impulso, Henrique levantou-se da poltrona e saiu. A felicidade foi-lhe arrancada, as recordações da poltrona e da sua avó depressa se dissiparam.
Tinha vendido o carro há uns meses. Por viver no centro de Lisboa, decidiu que não precisava dele; arrependia-se hoje desta decisão, porque esta o obrigava a esperar pelo próximo comboio até Coimbra, terra que o viu crescer e local onde os seus pais decidiram permanecer, mesmo depois dele se ter mudado para a capital. Comprou o bilhete às 16h40, o comboio partia dentro de dez minutos. Percorreu a gare, ouvia o bater do seu coração, acelerado, o suor escorria-lhe pela cara e havia uma ansiedade e um nervosismo persistente que o mantinha alerta e, ao mesmo tempo, o cegava em relação a tudo o que o rodeava. Mantinha os olhos fixos no comboio, era verde e branco; Estava lá ao fundo, ele via-o, quase que o sentia e, no entanto, parecia-lhe tão longe como o caminho que ainda teria de viagem até chegar à sua família.
Pela terceira vez nos últimos cinco minutos, olhou para o relógio. O tempo parecia ter parado e, ao mesmo tempo, sentia-se culpado por deixar o seu pai sozinho durante este período, que lhe pareceu mais longo do que a realidade comprovava. Colocou a mão sobre o corrimão que dava acesso à sua plataforma e percorreu-o. Estava sujo, peganhento. Pensou na quantidade de pessoas que já lá teriam pousado as mãos e, num gesto brusco e apressado, retirou a sua.
O comboio estava cada vez mais perto. Olhou novamente o relógio, 16h45. Já conseguia tocar na primeira carruagem, mas o seu lugar ficava na terceira, tinha de continuar a andar, com a mesma urgência. Ouviu a última chamada, entrou…
Já sentado no interior do comboio, a impaciência e o sentimento de impotência apoderaram-se de Henrique. Tentou ler, escrever, ver as notícias no telemóvel, mas os seus esforços revelaram-se inúteis; Seriam duas horas de sofrimento, pensou.
Ao fim do que lhe pareceu uma eternidade, chegou a Coimbra. Depressa encontrou um táxi e, sem grandes explicações, disse que tinha pressa em chegar ao hospital. Armando, nome com o qual o taxista se apresentou a Henrique, ficou apreensivo com o pedido e, como tal, perguntou se ele se sentia bem. Henrique explicou aceleradamente e sem detalhe a situação; Nenhum dos dois falou mais depois disso, pelo menos até ao momento do pagamento.
Chegado ao hospital, subiu umas escadas e percorreu um longo corredor até encontrar alguém a quem poderia pedir direções que o levassem até aos seus pais. Apercebeu-se que já se teriam passado mais de 15 anos desde a última vez que entrara neste hospital, num dia em que partiu o braço direito, resultado do seu envolvimento numa luta com um rapaz que tinha tentado beijar a sua namorada da altura. Foi um namoro ingénuo, característico da idade, do início da adolescência, mas naquela época pareceu-lhe correto defender a sua honra, arremessando dois socos na direção do outro rapaz, apenas para depois sofrer o triplo.
Após falar com um funcionário, que prontamente lhe indicou o caminho, deparou-se com a porta do quarto que do outro lado revelava o corpo debilitado da sua mãe. Ouvia as máquinas a trabalhar, ouvia o pranto do seu pai, mas faltavam-lhe as forças para entrar; Num impulso, reuniu a coragem necessária, abriu a porta e caminhou na direção deles. Ela não estava morta, tal como o pai lhe tinha transmitido, pensou. Mas nos olhos dela não via vida, nem qualquer reação, as máquinas respiravam por ela, havia um hematoma no braço, provavelmente causado pelas várias tentativas que a enfermeira fizera para conseguir espetar a agulha que agora a alimentava apenas de soro.
Tentou comer algo, perto da hora a que costumava jantar, e sugeriu ao seu pai que fizesse o mesmo, embora nenhum dos dois tenha conseguido cumprir essa tarefa, outrora banal e rotineira, mas que nas últimas horas se tornara hercúlea, por força das circunstâncias.
Alcançou uma médica, uma que já tinha observado no quarto da sua mãe, mas a quem não teve a coragem de perguntar nada até este momento. Falaram durante algum tempo, ela informou Henrique da gravidade da situação e da pouca probabilidade da sua mãe passar daquela noite. Irrompeu num pranto, as lágrimas surgiram, foi a primeira vez ao longo daquele dia em que se permitiu chorar. Filipa, nome da doutora que ficaria para sempre gravado na ficha médica da sua mãe, estava certa sobre tudo o que disse. Henrique sentou-se numa outra poltrona, no corredor do hospital, na sua cidade natal, a dois metros do quarto onde a sua mãe respirara pela última vez, sem ter tido a possibilidade de se despedir dele.
Quem diria que um dia que começara calmo para Henrique, acabaria com o choro amargurado de um neto e filho que, para além sentir a falta da sua avó, teria agora também de lamentar a morte da sua mãe.
“É a vida”, todos lhe dizem desde esse dia fatídico, embora a sua se tenha alterado drasticamente, porque afinal, há pessoas, dias e momentos que nos mudam a vida, para sempre.
Inês Filipa Vieira Brandão nasceu a 29 de março de 1998, em Lisboa. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde tirou o curso de Línguas, Literaturas e Culturas. Publicou o seu primeiro livro infantil a Fevereiro de 2020, intitulado A Flor Margarida. Vive no centro de Lisboa, é professora e sonha um dia fazer da escrita a sua carreira profissional. Página do seu livro no [link].