primeiro capítulo do romance ‘Você me espera para morrer?’, de Maria Fernanda Elias Maglio

SEIS ANOS

Ilana arranca um chumaço de grama e coloca na panelinha vermelha, despeja um pouco da água que está no pote de margarina, mexe com um graveto, tá pronto o papá, nenê, agora come. Fala com a boneca de olhos vidrados de azul, o rosto rabiscado de caneta, um tufo de cabelo amarelo, quase branco, saindo do alto da cabeça. A boneca não tem roupa nenhuma, ainda assim não está pelada, porque não tem o que faz menina estar pelada. Abre as perninhas de plástico e olha: nenhum risco, nenhuma coisa escondida. Desce a saia e a calcinha até a altura dos joelhos, abre as pernas que não são de plástico e olha: o risco e as coisas escondidas. Encosta o indicador em algo que lembra um botão, o corpo se retrai, em seguida ela ri, sem barulho. Toca de novo e dessa vez nem se contrai, só o riso que ninguém ouve. Escuta a voz da mãe na cozinha e puxa saia, calcinha, a boneca ainda de pernas escancaradas, sem nada para mostrar, a comidinha de grama ao lado, nenê danada, nem comeu o papá. Leva o indicador embaixo do nariz e sente o cheiro do lugar que a mãe chama de lá. A mãe diz, lava direitinho lá, tem que lavar bem lá pra não cheirar, e sempre cheira, não importa o quanto sabonete esfregue (e é bom esfregar lá), sempre um cheiro de uma coisa que ela não sabe. A irmã tem o mesmo lá e ela queria perguntar, Line, quando você passa sabonete lá, fica cheiro de sabonete?

Mistura o resto da água do pote de margarina na terra, enrola brigadeiros de lama, pensa em fazer um bolo, uma festa para a filha que não tem lá.

Aline chega e diz, posso brincar, Lana? Ã hã, Ilana responde. Aline é mais alta, a tia Dodora sempre fala que nem parecem gêmeas. Todo mundo diz que Aline aparenta ser mais velha, até os tios de São José dos Campos que vieram no natal passado, uma mesa bonita com uva, azeitona espetada no palito, mortadela, cereja, pensa em cereja e lembra do bolo de lama. Diz para a irmã, tem que fazer um bolo, Line, é aniversário da nenê. Aline olha a boneca no cimento, as pernas para cima formando um triângulo sem fechar, os pés apontando para o céu sem nuvens, essa boneca é muito feia, Lana, faz de conta que é o nosso aniversário. Ilana não gosta que a irmã tenha dito que a filha é feia, porque ainda que seja feia, é filha. Queria que a mãe pensasse assim também, que, ainda que os cabelos sejam grossos e as unhas roídas todas, é filha. Pega a boneca do chão, a pele de plástico quente do sol, dá um abraço e cochicha: você é bonita, nenê. A mãe nunca diz nada dessas coisas, só fala, vem almoçar, vem jantar, vai tomar banho. A tia Dodora sim, fala umas coisas que dá vontade de chorar, mas não é de triste, ela diz, você parece uma princesa, Lana, quer um leite com chocolate, faço um quentinho pra você. Se a tia Dodora fosse a mãe, certeza que ia contar o nome verdadeiro do lá.

Aline está com a mão direita mergulhada no balde azul, mexe o punho como se fosse colher, estou fazendo o nosso bolo, Lana, vai ter três andares. Ilana toma coragem e pergunta: como chama de verdade o lá, Line? Aline diz, lá onde, Lana? O lá de menina e aponta o indicador roído para o meio das próprias pernas. Ah, chama perereca, não sabia? Ilana faz, ã hã, para encerrar o assunto com a irmã, precisa pensar, perereca, perereca. Ela tem medo de perereca, quando aparece uma no banheiro do sítio, corre e chama a tia Dodora, o tio Valter diz, não faz nada, Lana, é só bicho da natureza. Agora não vai ter mais medo, porque perereca é bom da gente colocar o dedo e uma vez colocou um batom dentro da calcinha, encostando no botãozinho, passou o dia inteiro e uma hora a mãe desconfiou, porque Ilana cruzava muito as pernas. A mãe deu bronca e puxou o cabelo com força, onde já se viu botar as coisas lá, deixa seu pai te pegar de sem-vergonhice. Ela gosta quando o pai não está em casa, só a mãe, o cheiro da cebola fritando no óleo, melhor ainda quando ela e a irmã estão de férias no sítio, sem a mãe, nem o pai, a tia Dodora mexendo doce no tacho, ariando panela, o tio Valter cuidando dos porquinho bebês, cavoucando a terra para mostrar minhocas, olha essa que bitela, parece cobra, e Aline pergunta para o tio como elas não sufocam debaixo da terra e o tio Valter explica que a terra é o ar delas.

Aline terminou o bolo que seca ao sol, uma vela de graveto espetada na lama, será que boto umas folhas, Lana, pra enfeitar? Ilana faz, ã hã, e continua enrolando os brigadeiros, tem um monte, tenta contar, mas se perde, não sabe o que vem depois do dezessete, acha que o dezenove, mas não tem certeza. A mãe grita, vem almoçar, e Aline diz, vamos cantar parabéns bem rápido, Lana. Em um minuto cantam parabéns, dizendo, viva a Lana, viva a Line, sopram a vela, sem fogo nenhum, e juntas seguram um pauzinho para cortarem o bolo. Aline sussurra no ouvido da irmã, vamos fazer um pedido, Lana, um só pra nós duas, e Ilana pergunta, o que a gente pede? A gente vai pedir pra uma não morrer antes da outra.

* * *

Estão sentadas, já lavaram as mãos e os braços, o pai não gosta de sujeira na hora da refeição. A panela está na mesa, o que tem dentro é macarrão, porque hoje é domingo, a mãe fez laranjada e salada de tomate com orégano e óleo. A mãe não abre a panela e nem serve a laranjada para as meninas, porque o pai ainda não sentou. A porta do banheiro encostada, escutam o jato de urina caindo na água da privada, um jorro contínuo e depois duas golfadas, barulho da descarga, torneira aberta. O pai senta e não diz nada, ainda tem sono nos olhos e na roupa amarrotada. Ilana pensa que deve ter dormido de roupa, ouviu a mãe contar para a tia Dodora que de sábado o pai chega para amanhecer o dia e deita de roupa e tudo, sem nem lavar os dentes. Ilana não sabe o que a tia Dodora respondeu, passou um caminhão na rua bem na hora e quando acabou o vrum de tremer as paredes, a mãe já tinha voltado a mexer o arroz doce e a tia falava, o cheiro tá bom, Ana.

O pai tem a boca tão cheia que é preciso abri-la para dar conta de engolir a comida. Ilana olha com o rabo do olho a boca do pai muito aberta, os dentes do fundo pintados de prateado. A dentista em que a mãe levou chama de estrelinha, Ilana tem uma e Aline, três. Doeu muito para pintar a estrelinha no dente, antes uma máquina com barulho de abelha fazendo zuuuuuuuu e abrindo um buraco, a dentista dizendo, peraí que o bicho tá saindo, e um cheiro que não é de lugar nenhum, Ilana pensou que pudesse ser de osso. O tio Valter contou que dente é osso, mas ela acha que não, porque osso fica escondido na carne e dente aparece quando a gente ri ou enche muito a boca de macarrão.

A mãe recolhe os pratos, copos, a jarra com três dedos de laranjada e diz, vão brincar, sem barulho, o pai foi descansar. Aline fala, vamos desenhar, Lana, eu faço um desenho de bicho e você adivinha, depois a gente troca. Ã hã.

* * *

Aline desenhou leão, girafa, cachorro e jacaré e Ilana só não adivinhou o jacaré. É a vez de Ilana desenhar e a ponta do lápis vermelho quebrou, justo quando desenhava a asa da borboleta e Aline não sabe ainda que é uma borboleta, era só o começo do desenho, pega apontador, Lana, tem um na gaveta do telefone que eu vi.

Não tinha nenhum apontador na gaveta, só duas bics azuis, uma lista telefônica, três clipes, um pedaço de papel escrito alguma coisa que ela não sabe, ainda não aprendeu a ler. Pensa que quando aprender, vai entender tudo e vai escrever muitas vezes, perereca, perereca, perereca. A porta do quarto do pai está encostada, nenhuma fresta. Para em frente à porta e escuta o barulho do ronco, imagina a língua mole, os dentes prateados mastigando o macarrão, ela perguntou para o tio Valter porque vaca mastiga sem parar e ele respondeu que vaca não tem o que fazer da vida, então fica mastigando. Ela quer ter o que fazer da vida, não quer ficar mastigando e não quer mais nenhuma estrela, não quer sentir nunca o cheiro de osso de novo. O que você tá fazendo aí, Lana? Ilana se assusta com a voz da irmã, dá um pulo para a frente, em direção à porta encostada, que abre em uma fresta, revelando o pai deitado de barriga para cima, está só de cueca, o ventilador em cima da cômoda, o corpo coberto por uma transpiração de gordura, já passa da uma da tarde e um calor que só pode fazer nesta terra, é o que diz a tia Dodora quando está muito quente e está muito quente todos dias. Aline solta uma risada, segurando a boca com a mão, olha o coiso dele, Lana. E Ilana vê: a cueca do pai estufada feito sonho de padaria, lotada de creme até quase estourar. O pai ronca, a boca muito aberta, o ventilador zunindo, a colcha vermelha, a cueca gorda. Ilana tem vontade de chorar, o pai ali brilhante de suor, olhando assim não parece mau, não parece capaz de fazer ruindade, judiar de criação e ela ouviu o tio Valter dizer que quem judia de criação é gente ruim. O que estão fazendo aí? As duas se assustam com a chegada da mãe e soltam dois gritos idênticos, o mesmo tom agudo, nunca parecem tão gêmeas como quando são involuntárias. O pai acorda com o barulho e diz, que é isso, com a boca de muitos dentes e língua mole. A mãe fala, nada não, João, pode tornar a dormir, e o pai olha em direção à própria cueca estufada de creme, faz um movimento com a cabeça, as meninas não percebem. A mãe manda as duas para o quintal, entra no quarto e elas escutam a chave rodando, um trec metálico.

* * *

Quer brincar de amarelinha, Lana, a gente desenha de tijolo? Ilana não quer, está sentada no chão e raspa um graveto do cimento, pensa sobre uma infinidade de coisas, dentista, perereca, sonho de padaria, queria perguntar uma coisa para a irmã, mas não sabe o que. Aline pula uma amarelinha invisível, alternando um pé, dois pés, um pé, dois pés, deixa de ser boba, Lana, vem pular. De repente sabe o que queria falar para a irmã. Antes de perguntar diz, senta, Line, para de pular igual cabrita. Aline se assusta com a ordem da irmã, que não é de dar ordens, e se senta no chão de cimento. Por que você pediu aquilo, Line, da gente morrer igual? Aline ri e diz, foi só uma coisa da minha cabeça, Lana, bobeira. Ilana diz, eu gostei, isso de uma morrer quando a outra morrer. Ilana quer explicar, mas não consegue, só entende que gostou. Combinado, Line, quando eu morrer você morre também? Tá combinado, Lana, só não vai morrer agora. As duas riem e Aline convida de novo para pular amarelinha, Ilana agora aceita.

A irmã pega o tijolo e desenha um círculo imenso e não escreve nada dentro, só desenha uma nuvem e ambas sabem que é o céu e que na outra ponta, dentro da bola, vai ter um tridente que será o inferno e Ilana tem medo de inferno, capeta, essas coisas todas, queria combinar com a irmã de, quando morrerem no mesmo dia, no mesmo segundo, irem direto para o céu. Aline procura uma pedra no canteiro e já deve ter esquecido de que vão morrer no mesmo dia, tomara que de mãos dadas, para nenhuma sentir medo, com sorte demora muitos anos, muitos, muitos, tantos que ela nem sabe contar, depois do dezessete vem o dezoito, agora ela se lembra.

O sol arde a pele das meninas, o cimento, a boneca, o pote de margarina, o barro endurecido, os riscos de tijolo da amarelinha. O céu é de um azul impossível. Um avião passa alto, as irmãs param o jogo e balançam as mãos em tchau.

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Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, Enfim, imperatriz (Editora Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Contos. Publicou também o livro de poesia 179. Resistência (Editora Patuá, 2019).