rosa, de Rafael Mendes

A janela escancarada, o verão jogando amarelinha nas ruas. Tu nua sobre o parapeito, teus olhos castanhos de terra arada e ansiosa pelo plantio. Na sua mão uma laranja, que poderia ser tanto fruta quanto revelação da memória, orbe de nosso amor ainda jovem ou mesmo uma opala bruta de sangue. O sol caindo atrás dos prédios da Rua Augusta, eu deitado na sua cama, sentindo o olor de teus lençóis, teus livros empilhados desordenadamente pelo quarto, um desenho de margaridas pendurado bem ao lado da sua cama. Tu veio até mim, boca suja de laranja, e me beijou, falando sobre teatro, abrindo mapas que eu não conhecia. Ali eu já era um louco, se me largassem num hospício eu gritaria teu nome, nosso amor.

Escuta, Rosa, então não te amei? Se o ínterim entre aquela tarde — quase natal, teu corpo gestando uma retidão moral pura diante da parede azul petróleo — e esta noite de céu apagado, resoluto em não ser fuga das atribulações, onde nossos corpos já nem precisam verbalizar o adeus, fomos felizes, como poderia não ter me amado? Diga, Rosa, como? Eu lembro do teu corpo nu sobre o parapeito. Uma febre de melanina emanando, escorreita seiva de suas funduras me lavando, nossa primeira vigília. Eu tinha toda a sede e você foi tonéis de vinho.

O amor nascido de um acaso, uma chave esquecida, acompanho o Pedro até o metrô Armênia, você aparece, sorrindo, gesticulando e falando rapidamente, cheia de ânsia para resolver problemas, para fazer coisas. Lembro que teus olhos percorreram meu corpo, me senti desejado, ardi. Me ofereceu uma garrafa d’água, eu queria que me oferecesse suas mãos, sua fala, que apresentasse teus planos para salvar o mundo. Eu iniciaria uma guerrilha, leria novamente Marighella, roubaria dois bancos, se você me amasse. O segundo encontro. Aniversário de um amigo. Não me recordo se foi do Pedro. Não importa, não estávamos presentes. Os corpos próximos, nossas mãos se tocaram por acidente algumas vezes, e quando isso acontecia, teus olhos chispando. Quando a noite acabou todos na expectativa de um beijo, da confissão da paixão. Na volta o Pedro disse ela está apaixonada e na outra ponta do vagão podem sentir sua paixão por ela.

Por acaso não nos amamos, Rosa? Me recordo dos lampejos: banhos quentes após o sexo, cervejas compartilhadas nas últimas horas da noite, aroma de pães frescos que assávamos aos domingos, teus dedos frágeis segurando uma colher com pudim. Foi tudo tão intenso, nós não sabíamos como falar do amor, tudo era beijos, tato, medições dos pontos cardeais do nosso corpo. Naquela viagem que você foi a Minas Gerais, você e suas amigas querendo salvar o mundo, registrar a tragédia de Mariana, na véspera da partida você fazendo suas malas, experimentando roupas, e eu só pensava em roubar uma camisola, qualquer peça, para dormir tranquilo com teu cheiro de amêndoa. Rosa, sofri tanto naqueles dias. Você ligava no final do dia, contava do trajeto, das conversas nas paradas para almoço. Quando chegou em Mariana cada palavra sua tinha desespero, que ecoava através da fiação que nos conectava. Você retornou e nada foi o mesmo.

Você por acaso me amou, Rosa? Nas salas de teu silêncio havia uma canção de despedida, marinheiros deixando a baía em busca de uma terra já perdida. Teus olhos escapavam dos quadros e fotografias, focavam apenas a distância até a saída mais próxima. Nas suas palavras residiam luto. Você foi se distanciando até nossa última manhã juntos. Fomos ao samba com sorrisos enormes, a cerveja descendo pela garganta com sabor de liberdade, você com teu vestido solto e leve, brincos pequenos suspensos nos teus lóbulos, no teu punho uma pulseira que comprei dos hippies, disseram que representava o amor. Depois, as janelas do carro vaporizadas por nossos suspiros longos, não tínhamos medo de um assalto, não nos importamos nem com os feirantes que montavam barracas enquanto nos amávamos. Fomos para um motel. Na banheira teus cabelos molhados brilhavam, você sorria, sim, sorria, eu querendo eternizar teu sorriso, teus olhos, suas manchas nas costas, teu cheiro. No início do dia seguinte, me levou para comer no teu café preferido, mas você não tomava café como eu, então pediu suco de laranja, e todo aquele amarelo, aquela luz, aquele ouro, reluzindo entre teu corpo e suas mãos. O porteiro do teu prédio já me conhecia, disse bom dia e sorriu, como se enxergasse em nós algum éden, ele conhecia meu nervosismo, o cigarro fumado em tragadas curtas, até você aparecer para me receber. Foi a última vez que eu o vi. A última que vez que eu a vi.

Nunca mais visitei sua rua, teu bairro. Quanto eu chorei, Rosa, você não tem ideia do quanto eu chorei. Minha mãe me consolava, você foi feliz, não foi meu filho? Guarda a boa memória, guarda esse amor com carinho. Não queria guardar nada, eu queria entender, Rosa, eu ainda quero entender. No mundo que eu vejo os movimentos precisam ter ordem, eu gosto de estabilidade, meu coração tem um sistema de amortecimento com molas. Tu não me ligava mais, não escrevia. Foi só silêncio. Rosa, se eu soubesse desenhar ainda poderia traçar cada linha da sua face, a calma de teus dedos, teus lábios tênues, teu cheiro Rosa, teu cheiro. Nossos amigos nada falavam, tentaram cuidar do meu desagravo com abraços, ligações na madrugada. E foram meses, Rosa, meses assim. Outras mulheres me olhavam com pena, uma disse que queria cuidar de mim, pois meus olhos naufragavam em devaneio.

Então, no carnaval, você me escreve Rosa. Dizendo que me amou, talvez ainda me amasse, mas precisou me abandonar. Tinhas teus propósitos, tuas causas. Tu sempre acreditou que poderia mudar o mundo, que precisava transformar teus privilégios em equidade. Não havia espaço para mim, o amor demandava, o amor é um bebê que quer cuidados, alimento, roupas limpas. Tu não podia. Talvez em outra vida, talvez em outro planos nós seriamos amantes por toda a vida. Eu não quero outros planos, Rosa, a morte é a morte. Aposto apenas naquilo que eu tenho. Eu tenho essa vida, esse amor. Rosa, ainda te gosto tanto.

Rafael Mendes é tradutor e poeta. Residiu em Franco da Rocha, Dublin e atualmente mora em Barcelona. Publicou em 2018 Ensaio sobre o belos e o caos pela Editora Urutau. Tem participação nas seguintes antologias: Poetry in the Time of Coronavirus (EUA, 2020, no prelo), Parem as máquinas (Off Flip, 2020, Brasil, no prelo), Writing Home: The New Irish Poets (Dedalus Press, 2019, Irlanda), 32kg: Uma antologia Brasil-Irlanda (Urutau, Europa, 2017). Seus poemas já foram publicados nas revistas Ruído Manifesto, Gazeta da Poesia Inédita, Revista Gueto, Mallarmargens, Vício Velho, Subversa, FLARE magazine, The Irish Times, entre outras. Edita o blog de tradução Poetry Bilingue.