três poemas inéditos de Itamar Vieira Junior

, por exemplo,
não tem nada a ver
os fantasmas vestidos de branco
os ruídos das correntes
os homens sérios
sinto-me menos livre do que antes
atormentado
não mudaram nada
os ratos
continuam roendo o edifício
não se preocupam com o que me preocupo
poderia descansar um pouco do jogo
da brincadeira
do país
“agora venha tomar banho”
o que isso significa quando o que está em jogo é o que não compreendo?

roubei dinheiro
queimaram minhas mãos
todos estavam certos
era perfeitamente natural
sobrenatural
é a linguagem e dela me falam
há uma placa ali, mas nada diz
combina?
um, dois, três, um com o outro
um gozo múltiplo
só estou repetindo o que me dizem
e mudo a página
duzentos e quarenta e um
é a sua vez
é uma ideia estranha imaginar o que dizem
algo vai acontecer, sussurram
eu espero
pode ser não pode ser
no final podem dizer que é invenção
mas é claro que estou ali
que estou aqui
que sou palavra
já não posso imaginar
atiram uma, duas, três cabeças
por cima do muro
não há nada nosso nesse contexto
há o que o mundo exige
não há como dizer que tudo é um sonho
há fragmentos de referências

quando começo é o começo
gradualmente
é uma dimensão, uma estrutura
pouco a pouco vou me perdendo
uma ponte que atravessa de um abismo a outro
o que não vemos é de uma grande riqueza
cortado a alicate
esculpindo cristais
a organização, o método, o sistema, o comando, a hierarquia
a lista de coisas que exigem
a burocracia
para extinguir o possível

“eu tenho o que é preciso”
perdido em algum lugar daquele outro quarto
sem abandonar
há algo realmente puro?
o que equilibrar?
eu que estou condenado,
por exemplo,

escolhas

É preferível a casa violada
a casa cerrada
o sentimento acerca das coisas
às coisas cercadas de sentimentos
é preferível as pichações nas paredes
ao idiota limpando-a
ou o ponto de partida
ao ponto de chegada
é preferível a falsificação
à crucificação
quase sempre é preferível a mentira
à verdade
a criatura
ao criador
ou a personagem
ao autor
é preferível a página rasgada
a que está inteira
a paz solitária
ao amor que aprisiona
é preferível desferir o golpe
a oferecer a outra face
ou deixar tudo no começo
a terminar sem nada
é preferível a prisão da rotina
à liberdade vigiada
guardar um pensamento consigo
a revelá-lo como um poema

entre

Aventurar-se no espaço
entre a parede e a cama
tentando alcançar
o que pudesse ter entre as mãos
a luz tremula
desenhando sombras no domínio
a boca seca
silenciosa como o aviso
agoniza o corpo
entre a cama e o abismo
as mãos mais que nuas
sentem o acaso
entre os dedos cresce
o que colheu neste vão
sujo, o corpo refuga
o metal
entre o abismo e a correnteza
algo que se movimente
como o começo

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É escritor, geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA). São de sua autoria os livros de contos Dias, de 2012, vencedor do XI Prêmio Arte e Cultura (Literatura — 2012), e A oração do carrasco, de 2017, obra selecionada pelo edital setorial de literatura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, e o romance Torto arado, vencedor do Prémio LeYa em 2018.