a culpa é dos poetas, de Liliane Prata

Poucas horas depois de sair da prisão, Estevão virou pó. Foi assim. Estevão era um poeta que foi preso após publicar poemas com versos livres — sua licença lhe dava direito de publicar apenas poemas rimados. Quando ele foi libertado, soube que sua licença poética havia sido cassada e que a partir de agora só tinha autorização para escrever sobre como ganhar dinheiro de acordo com a visão quântica. Após caminhar por ruas vazias, chegou desolado em casa, onde morava com seu amigo Joel, e a única coisa que o animava era reencontrar seu cachorro.

— Cadê o Ulysses? — Estevão perguntou, após assobiar pela casa.

— Puxa, cara, lamento, mas ele foi recolhido — Joel respondeu, tomando um copo d’água.

— Como assim, recolhido?

— Recolheram todos os cachorros que se recusavam a aprender a falar. Eu me esforcei, todos os dias dava aula para o Ulysses, mas ele continuou latindo.

— Será que é porque ele é um cachorro?

— Disseram que era má vontade da parte dele e que ele não havia se esforçado o suficiente.

— Puxa vida! Ei, não tô vendo as plantas… E as plantas aqui de casa? A samambaia?

— Recolheram também. De acordo com uma nova lei, todas as plantas precisam assinar uma via se comprometendo a fornecer mais oxigênio por hora e a limitar a produção de gás carbônico, e ela se negou a assinar. Ficou parada, diante do fiscal da prefeitura.

— Putz, cara… Preciso de uma cerveja, tem? Ou vai me dizer que elas foram recolhidas?

— Pelo contrário, os fabricantes agora são obrigados por lei a quadruplicar o valor alcoólico de cada lata, além de anexar um papelzinho com ensinamentos morais em cada uma.

— Sério? Bom, o papelzinho eu não sei, mas o álcool a mais não é uma ideia de todo ruim, né?

— Olha, para mim é meio complicado, porque acordo cedo para trabalhar amanhã e se eu beber uma lata já vai ser foda, mas tudo bem, bebo meia lata…

— Você tá trabalhando com o quê?

— Motorista.

— De Uber?

— Se liga, Uber não existe mais, porque todo mundo parou de sair de casa. Por isso as ruas estão vazias… Depois de mais uma pandemia mundial, todo mundo trabalha em casa ou dorme no escritório ou dorme na rua, estuda pela internet ou não estuda e fica sozinho ou se encontra online, não tem por que pegar Uber.

— Você é entregador de comida, então?

— Se liga, ninguém mais come comida depois que os laboratórios farmacêuticos desenvolveram as modernas injeções mensais de satisfação estomacal. É mais prático, as terras estavam todas inférteis e a comida estava toda envenenada, mesmo.

— Puxa, você não está sentindo falta de comer?

— Ah, quem ficar triste com isso, é só tomar um novíssimo antidepressivo de efeito instantâneo! E ele vem com sabor pizza.

— Entendi. Bom, não me diga que você dirige para o gover…

— Isso aí. Eu passo o dia recolhendo coisas nas casas das pessoas.

— Você é um agente de recolhimento?

— Bingo!

— Foi você… Foi você mesmo que recolheu o Ulysses?

— E as nossas plantinhas. Mas olha, insisti com eles antes, tenho coração. Eles que não facilitaram o diálogo, então…

— Será que era melhor eu ter ficado na prisão?

— Legal! Estou feliz que você está falando isso, fica mais fácil te recolher pra lá. Vem comigo.

— Hã? Mas por quê, cara? O que eu fiz?

— Mais de dez perguntas depois que você chegou, e agora os pontos de interrogação foram limitados a três por dia. Nem adianta disfarçar, o algoritmo ouve tudo!

— Puxa vida! Posso pelo menos terminar minha cerveja?

— Olha, até poderia, antes de mais esse ponto de interrogação. Agora, infelizmente, você vai ser cancelado.

— Puxa vida, eu…

Shssissjjjjjj foi o som do spray oficial. E foi assim que Estevão virou pó. Alegremente, Joel fez uma carreirinha, cheirou tudo e foi todo empolgado trabalhar na manhã seguinte.

| este conto faz parte do livro Tem alguma coisa na água, ainda inédito. |

Liliane Prata é autora de O mundo que habita em nós e Ela queria amar, mas estava armada (finalista do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Contos), entre outros livros. Tem alguma coisa na água está em pré-venda. Site: http://www.lilianeprata.com.br/