a noite e mais um dia, de Franklin Carvalho

“Aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa…”
(Euclides da Cunha, Os sertões)

capa_ordemA forma errada de começar esta história é se perguntando quem é o soldado Pedro Expedito, quantos anos ele tem ou há quantos é policial. Não sabemos nada disso, porque ele também não sabe. Expedito parece muito novo, um garoto de dezoito anos com o corpo delgado e a pele e olhos variando de mel a castanho-escuro, a depender da estação do ano e de seus rigores climáticos. O cabelo, se o deixasse crescer além do corte militar repetido a cada semana com navalha, teria o castanho destes mestiços indígenas que são comuns em Uauá, minúsculo viveiro de gente no sertão da Bahia.

Uauá é terra que Pedro habita como um sonâmbulo. Ele nem sabe quando chegou à cidade, que fica numa das partes mais áridas do continente sul-americano. O soldado policia o pouco mato, a pouca população, policia o calor e as moscas e também não sabe porque o faz. Tampouco sabem dele os seus colegas de batalhão, inclusive os mais novos, trazidos recentemente de outras regiões para reforçar a guarda. Nem os superiores na capital lhe perguntam nada.

Estranham aquele morto-vivo, e não há só um esquisito como ele, mas três ou quatro iguais que compõem a corporação desde eras ignoradas, com farda renovada somente por força da norma. Nem adianta indagar por suas famílias porque eles, os sonâmbulos, não têm ninguém, e a única documentação sobre eles é composta por papéis desbotados. Como por encanto, porém, ninguém põe a mão sobre essa verdade. É que há mortos-vivos também nos mais altos postos das chefias executivas.

Esta não é ainda a parte mais grave da história. Preocupamo-nos com a saúde do soldado Pedro Expedito. Sem parentes, ele dispende quase todo o soldo pagando um quarto numa pensão antiquíssima, onde os seus colegas também estão instalados numa ordem de caserna, alimentados pelo rancho pálido que a proprietária fornece a par de algum adicional. Assim também com a limpeza dos cômodos. Só a lavagem e a goma das fardas aqueles homens fazem na pensão, por regra. Risque-se das demandas de solteiro as gripes, disenterias, infecções e ferimentos que aqueles homens não têm, são de ferro. Expedito, porém, é incomodado por terríveis pesadelos nas noites em que consegue dormir.

Ele sonha com casebres miseráveis de barro amontoados uns sobre os outros e encharcados por chuvas torrenciais, e famílias paupérrimas tremendo numa penumbra mal cortada por lampiões de querosene. Acorda no meio da noite e, sentado na cama, medita sobre o realismo daquelas visões, abalado como se já houvesse habitado tamanha miséria alguma vez. E não entende, dias seguidos aquele pesadelo recorrente, porque Uauá, mesmo sendo cidade pobre do sertão, não chega àquele extremo de degradação, de violência e de fome. As imagens dos sonhos parecem-lhe as periferias dos grandes centros urbanos brasileiros que ele vê pela TV da delegacia em que dá plantão, mas Pedro não conhece as metrópoles, isso está bem claro em sua memória, nunca viajou até elas.

* * *

As coisas vinham nessa marcha, assim mesmo desconformes, até o dia em que o soldado e alguns colegas foram chamados para resolver um desentendimento na zona rural, na fazenda de um grande proprietário. O patrão daquelas terras tinha despedido por desgosto uma trabalhadora que vivia ali havia tempos, cabocla que aparentava cinquenta anos de idade, os dois já não se suportavam. Existia muita mágoa na contenda e os outros peões da fazenda correram para defender o chefe, quase bateram na empregada. Vencida a animosidade maior, a viatura policial voltou à cidade carregando a mulher e suas poucas posses, ela desistida de qualquer revide, mas indignada.

— Esse povo está assim porque o patrão é padrinho deles. É meu padrinho também, e a gente respeita porque padrinho é a voz de Deus na terra. Isso é consagrado com água benta. Mas patrão e padrinho têm que merecer a consideração, para tudo há limites. Até o Rei Saul, que era ungido de Deus, foi repugnado.

A equipe a bordo ouvia aquela rebelde com senso de muar, feliz por voltar à base no horário regular do expediente. Não havendo queixa a se registrar, deixaram-na pelo caminho, em alguma rua mais pobre onde disse ter parentes. Finalmente, o carro dispensou os homens na delegacia já no fim da tarde de verão, que escurecia pelo crepúsculo e pela formação de uma tempestade funesta.

Mais tarde, na pensão, veio a ração de todas as noites, pão duro e sopa de restos do almoço. Nenhum rádio, nenhuma televisão. Lá fora a chuva barulhava tão terrível quanto aquelas que Pedro Expedito via em seu sonho, cheias de raios. Como sempre acontecia, às oito horas todos naquele ambiente sem diversão se recolheram e ele fez o mesmo. Quando o soldado foi entrando no seu quarto, no entanto, uma lufada de ar frio lhe cortou a passagem e o despertou para uma lembrança da tarde, do rosto da mulher conduzida; e uma palpitação sacudiu o seu coração. Descorado, sentou-se imediatamente na rede que cruzava o cômodo e se deixou ficar ali, algum remorso por não ter ajudado aquela dona, algum não entender desse remorso, até que apagou. No abafamento que era o geral da noite suava as roupas domésticas puídas, mas caiu no sono de pedra.

Teve novamente o pesadelo dos casebres com as mesmas cenas, com muitas mulheres enroladas em trapos negros abraçadas 84 85 a crianças nuas, raquíticos mães e filhos, mas daquela vez havia um odor de podridão que nunca tinha sentido, um barulho de bombas e de tiros que nunca tinha ouvido, a água lhe molhava e Pedro Expedito acordou. Acordou muito bem desperto, vendo tudo com uma nitidez incomum na sua vida sem datas. Acordou num campo de guerra, e sabia exatamente o que estava fazendo.

Estava com outros policiais e soldados do exército marchando na lama dentro da noite, e todos usavam armas muito antigas. A farda da tropa tinha se reduzido a farrapos depois de os homens se debaterem no labirinto dos becos e nos barracos cheios de armadilhas. Os militares, exaustos, lutavam contra os moradores daqueles casebres, um povo ainda mais esgotado, mais faminto e mais exasperado que eles, mas que resistia usando galhos de espinheiros, trastes incendiados e armas caseiras.

Pedro também se recordou de que não estava numa dessas periferias urbanas modernas, nem caminhava nos dias atuais. Ele pisava o solo encharcado de uma noite tempestuosa na guerra de Canudos, nos seus últimos dias, em outubro de 1897. Assaltou-lhe então o desespero, seu e dos homens que, transportados de vários lugares para a batalha, topavam ali com a resistência dos habitantes do local, dispostos a lutarem até a morte na tática de tocaias e ciladas.

O objetivo das tropas era justamente abafar o povoado que em poucos anos havia surgido e se dilatado com milhares de habitações. A cada semana chegavam no local muitas levas de migrantes miseráveis em busca da redenção espiritual prometida por Antônio Conselheiro, messias alucinado que ponteava em Canudos. Lavradores, ferreiros, beatos, carpinteiros, artífices e loucos, despossuídos e desocupados queriam também beber da solidariedade de uma congregação completa, e convergiam com seus últimos recursos e ferramentas para uma vida comunitária em torno da religião. Tomados por perigosos, párias, sub-raça e desordeiros, foram atraindo progressivamente a inimizade e a perseguição dos senhores da terra e do gado das vizinhanças, dos burocratas, da imprensa, do poder político e dos militares Brasil afora.

Ao se ver naquela noite de chuva da guerra — ele não estava sonhando! — Pedro Expedito sentia o cansaço verdadeiro de um soldado em batalha. Andava com outros companheiros para um dos postos militares que ficava no morro da Favela, ali em Canudos, enquanto ruminava um episódio marcante daquele confronto. À tarde havia chegado no acampamento um grupo de trezentos prisioneiros, somente mulheres, crianças e velhos que resolveram se entregar às forças do estado, todos em condições lastimáveis. O exército acreditava que aquela rendição era outro ardil, servia somente para aliviar os combatentes de Conselheiro e gerar sobrecarga aos batalhões fardados.

Perambulando pelas ruelas, encharcado, silencioso e perdido, o soldado meditava na situação dos trezentos prisioneiros, porque ele já sabia que o exército não admitia cativos. Pelo contrário, todos os inimigos que caíam eram executados das formas mais cruéis, fosse por vingança, fosse por desprezo, fosse porque havia gente fardada que se comprazia em matar, e os generais não se importavam com o expurgo.

Pedro Expedito não fazia aquilo, matar pessoas detidas. Nem assistia às execuções, mas todos os soldados sabiam como elas eram feitas e quem as praticava. Ele tinha interesse naqueles casos porque guardava a recordação dos rostos deformados, dos olhares torturados, dos corpos secos, da muita gente que vira tombada pelas cercanias. Após tantos meses de guerra, também temia que o horror, partindo dos seus, partindo dos contrários, se desatasse ainda mais atroz, e o fizesse perecer absolutamente em vão.

Para não sucumbir àqueles pensamentos tão duros, Pedro Expedito afrouxou a camisa na gola. Chovia mas era outubro, fazia calor, e ele olhou para cima esperando alguma fresca. Foi um momento de feliz distração, um rápido desafogo, mas o venceu um 86 87 tiro errado, uma bala perdida cruzada no seu abdome. Impossível saber de onde partira o projétil, porque àquela altura havia disparos de todos os lados, com armas dos mesmos tipos, que uma das partes do conflito tomava da outra.

* * *

O soldado acordou em sua rede na pensão, muito assustado. Passou a mão por dentro da camisa e percebeu na lateral esquerda, à altura do umbigo, uma cicatriz que nunca notara ali. Entendeu que não havia sonhado, não era como das outras vezes. Estava lembrando. Recordava fatos de mais de cem anos e tinha sobrevivido aquele tempo todo sem nenhum estremecimento, sem qualquer ventura ou mínima delícia, nem mesmo uma pequena dor que alterasse a sua rotina.

O mais estranho é que continuava morando no mesmo sertão, não mais em Canudos, não. Canudos, após o desastre da guerra, havia se despovoado e depois renascera como uma pequena cidade pobre. Uauá, o lugar em que Pedro Expedito passava aquele transe mais de um século depois, ficava a apenas sessenta quilômetros do antigo campo de batalha. No entanto, ele nunca se perguntara sobre o conflito em torno de Antônio Conselheiro e seus seguidores, nem cogitara estar ali, tão próximo, a origem e o cenário dos seus pesadelos. E nunca fora visitar Canudos, ao contrário de muitos pesquisadores e turistas que atravessavam Uauá em direção ao sítio histórico da guerra.

Sentado ereto na rede, só uma réstia de luz invadindo o quarto por uma fresta na janela de madeira, o silêncio eterno lá fora, Pedro Expedito sentiu um frio intenso abraçá-lo. Lembrou-se da sensação que teve ao levar o tiro, como se um animal peçonhento, ao fisgá-lo, espalhasse fogo e gelo fatais no seu sangue. Procurou controlar a respiração cada vez mais intensa, que lhe vinha como soluço. Então se lembrou do chamado policial da tarde anterior, que o colocara em contato com a empregada despedida da fazenda. Veio-lhe tudo à mente, como se o veneno do animal peçonhento tomasse também o seu cérebro. Conhecia aquela dona de muito tempo.

Ela também tinha sido prisioneira em Canudos, mas não do grupo dos trezentos. Fora detida sozinha em pleno combate, dias antes daquela massa famélica se entregar. Na ocasião, não estava disposta a facilitar o interrogatório. A tudo respondia não saber e, tomada de sereno desprezo, despejou uma maldição quando a fustigou o general da campanha:

— Vocês não estão aqui para prender. Vocês é que são os presos de Canudos. Não serão capazes de voltar para casa, como os soldados que vieram antes. E mais, ficarão todos cegos, tateando por estas terras!

Pedro Expedito sentiu-se desmanchar como uma rocha que o tempo varresse, erodindo. Por que ele tinha vivido tanto tempo? Para ver a miséria de Canudos se espalhar por todo o país, todo o continente, em outros conflitos e periferias batizadas de favela? Para assegurar-se que aquele caos, aquele traçado torto, aquela precariedade iam se manter, restando salvos e protegidos sempre os mesmos donos de tudo, atrás dos mesmos muros, atrás dos mesmos guardas?

Então notou que havia mais perguntas do que ele poderia resolver, como uma espiral, como um redemoinho, e sua vista se turvou completamente. Mesmo assim se sentia aliviado de alguma forma, esvaziando-se, vomitando ali na rede uma lama antiga que preenchia a sua boca desde o dia em que caíra baleado em Canudos. Havia de tudo na lama, ensinamentos sobre Deus, manuscritos de ordens militares e recortes de jornais com notícias inventadas sobre a guerra. E havia a fuligem de corpos humanos, de animais e da flora incendiados.

A voz da dona rebelde também não saía do pensamento do soldado, e ele resolveu procurá-la imediatamente e lhe fazer todas as perguntas que lhe surgiam em torrente. Por isso levantou-se, 88 89 mesmo com dificuldade, mesmo sem conseguir enxergar, e foi apalpando as paredes em direção à rua, onde tentaria encontrar aquela mulher. Não deixou, porém, de regurgitar mais lama envenenada pelo caminho. A cada minuto daquela marcha torpe sentia-se mais leve ainda, cuspindo uma grande mágoa, descobrindo por si mesmo todos os mistérios, quebrando um encanto, uma maldição antiga, vivo novamente.

Mas ao se perceber ao ar livre, com a chuva e o vento golpeando-o, desistiu. Ficou de repente abismado porque a cegueira o envolvia ainda mais e o afastava do mundo, e também o afastava da memória. Acreditou que seria inútil procurar pessoas que deveriam estar tão perdidas quanto ele, antigos soldados e prisioneiros sem paradeiro, sem nome e sem rosto, que os livros de História nem sequer lhes reservara lugar, eles cegos também. Ali mesmo, na porta da pensão, nem mais conseguia recordar as faces dos seus companheiros e da mulher rebelde que alterara o seu cotidiano na véspera, ela era só uma voz a perturbá-lo.

Pedro Expedito voltou ao seu quarto e procurou dormir, mesmo incomodado porque sentia a rede rançosa, impregnada do odor acre de suor. Antes de adormecer, pensou em reclamar do fedor com a dona da pensão no dia seguinte. Foi o que fez.

Embora tenha acordado muito cansado, mal lembrando-se de algum pesadelo com o velho tema recorrente, embora enxergasse o seu quarto asseado, como a dona da pensão sempre o mantinha, ao sentar-se na copa para tomar o café matinal ele a chamou e pediu que quarasse e lavasse a rede e as cobertas. Ela não se opôs, tinha um enxoval sobressalente na casa para emprestar aos hóspedes em situações como aquela.

Isso resolvido, Pedro Expedito foi trabalhar. Em seu caminho até a delegacia, o sol fazia o mormaço saltar da terra molhada pela chuva da véspera.

| conto da coletânea A ordem interior do mundo (Editora 7Letras, 2020). |

Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante também na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017), na Festa Literária de Paraty 2018 e em outros eventos literários. Tem contos publicados na Revista Gueto e na Ruído Manifesto.