pós-verdade
Manhã de chuva, carrancuda
como um general russo.
Do nada, desanda a pensar:
a metalinguagem repôs (perigosa-
mente) o solipsismo do eu-lírico romântico.
Por que não o som do caminhão de lixo
ou a pitanga no bico do pássaro
contra um céu ardente ardósia?
A mancha de mostarda em sua blusa?
A menor distância entre dois pontos
não é você, Ego, seu tonto.
Céus, que luta mais inútil
se pode travar num papel?
Pra que se encalacrar com este encavalar
de palavras parvas que não levam a nada,
nenhum Valhala, Alamut, nenhuma Atlândida?
E o pior cego, insisto, é o que disse
que a vida não vale um alpiste
e que o dia é fake news e não existe.
Faça o seguinte, ou não faça:
Substitua a arrogante arte da recusa
pela simples e grata aceitação das coisas.
vontade de crer
Preso no inferno da torre
ou sem boia, em mar aberto.
Impossível curar este porre.
Tudo vai dar certo.
Nada será como nunca.
O real abraço e nada aperto.
Cansaço desta espelunca.
Tudo vai dar certo.
Estamos à beira do abismo.
O amor naufragou aqui perto.
Tempos de barbárie e cinismo.
Tudo vai dar certo.
Do nada, pessoas somem.
Nosso plano foi descoberto.
Deletaram nossos nomes.
Tudo vai dar certo.
Pior do que está pode ficar.
Dias sombrios, céu encoberto.
Mentiras turvam o ar.
Tudo vai dar certo.
Sem grana, cama, namorada.
Da janela só este deserto.
A espera deu em nada.
Tudo vai dar certo.
Patifes e assassinos por toda parte,
Hipócritas ditam o que é correto.
Só nos resta o agora, esta arte.
Tudo vai dar certo.
Acabou a caneta, o vinho tinto.
O esplendor será secreto.
O espelho nunca esteve tão sozinho.
Mas tudo vai dar certo.
breve história da solidão
No escuro de uma caverna,
nas paredes de Pompeia,
na superfície de um papiro,
na solidão de uma tela,
num grafite imprevisto
ou na imensidão sidérea,
esses escritos, frágeis rabiscos,
querem dizer apenas isto:
existo.
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Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, PR, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O enigma das ondas (2020). É autor do romance policial O Trovador (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2015).