um cachorro vê os homens, de Beatriz Thibes

percebem que o silêncio se parece com a morte. silenciam de várias formas: uns morrem de desastre, alguns vão pro convento, outros se suicidam. estão sempre próximos à crueldade. raramente se organizam de forma a cantar o amor e a carne. chegam a sentir profundamente mas logo criam um método de punição. a vida acontece sempre com a morte. na morte. estranho segredo. eles guardam estranhos segredos e vivem sussurrando. alguns. outros gritam. os que gritam obrigam o sussurro.

girei várias vezes, sem poder respirar. é possível que ele tenha achado que eu dançava: olhos fechados, a nuca aberta: a vida já não era boa nem má. acontecia. a vida das gentes vez em quando acontece. dançar de olhos fechados. acontecer não é isso?

ele acontece sempre em sua impermanência. no mais das vezes prefere certeza nenhuma às certezas gravemente mornas. hans dançava bem, e isso me causava um desconforto. ele parecia de antemão estar em constante queda, serpenteando o rabo pra solidão. eu, ao contrário, era possível que ao cair meu rosto fitasse o inferno.

de olhos fechados, girei várias vezes. girei de olhos fechados pra não dar de cara com os olhos de hans. pela morna certeza de que se eu caísse ou tropeçasse, ele saberia se meu desequilíbrio se parecia com a morte ou com a vida. e eu saberia, pelos olhos dele, se estava a viver ou a morrer. olhar pros olhos de hans era mirar o inferno. era ser o inferno. abri os olhos. abri os olhos de vergonha da solidão. quem suporta sem nenhuma vergonha a solidão? mas quem sabe eu também tinha outras razões. tropecei uma vez, outra vez. olhei pra hans de raiva.

ele me olhava de volta com um olhar de surpresa por sermos cúmplices. solidão com solidão. ele sabia coisas a meu respeito — esses olhos de quem não sabe que vai morrer, de quem não aprendeu a morrer. eram meus esses olhos. eu não sabia morrer. eu não sabia viver: insulto maior.

lindo e miserável, hans me convidava a toda essa esquisitice de conviver bonito com o quase. com a ideia de ser feita pra acabar. eu não desejava isso, como numa espécie de contradição viva, eu não desejava a queda, a perda, o intratável. abri os olhos também por isso: perversão. arrogância. eu queria ser mais do que eu.

praticam a ação sobre-humana de se por de pé. não se sentem livres pra fracassar. fracassam e morrem. morrem de medo. silenciam também por isso: medo. começam assim e terminam por não saber viver, quase sem querer.

hans era a favor do medo. ele era a favor de sentir até o último fim — até que se possa nomear — o que permaneceria apenas vago e sufocador. de repente o medo é isso: o desamparo de estar vivo. sufocador ainda, mas menos vago. ou quase. ser a favor do medo é procurar entender esse desamparo. hans me olhava sabendo mais do que eu a prática do acontecer das coisas. maldita a fé, maldita a esperança e mais maldita ainda a paciência.

fechara os olhos pra não dar de cara com as mãos sem linhas. dançava! manca! com todos os medos! dançava, ainda assim, por isso mesmo. no enquanto: se dança e se cria a véspera. se cria. tem de haver um caminho. ajoelhou. ia rezar. mas logo se cansou de estar apoiada nos joelhos e se apoiou também nas duas mãos. maldita a fé. estava de quatro. apoiada nas mãos sem linhas, com todos os medos. maldita a esperança. assim ficou um tempo, com certeza nenhuma, nem mesmo as mornas. entre insatisfação e liberdade.

mais insatisfação que liberdade. morrer buscando lugar. agora sabemos, sempre soubemos. a morte é lugar nenhum. a vida é lugar nenhum. olhou pra hans de raiva. merda! vamos morrer, hans, vamos morrer um pro outro. solidão sem solidão. vamos morrer um do outro.

cada vez mais, eu não sei pra onde. eu não sei pra onde estamos indo. descer e depois? hans late fazendo elegia. a morte é tanto lugar

59.745 pessoas, hans. cinquentaenovemilsetecentasequarentaecincopessoas. por desastre. vê? a morte é tanto lugar — e não chateia os imbecis e não insulta os arrogantes. desastre? onde será que isso começa? será que termina?

abdicando de ser cão, passou à humanidade: detestava a morte. e eu, eu queria poder ver as coisas como um cachorro vê, ou via. essa era a minha vontade: não detestar a morte. eu queria não detestar a morte. hans se dizia com os olhos: schatten! dizia-me.

eu tentava dizê-la com o corpo

como dizê-la? como dizer a morte?

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estava de quatro. apoiada nas mãos sem linhas, com todos os medos

talvez ele não tivesse abdicado de ser cão. talvez fosse ele assim meio gente meio bicho, daqui. cá da ideia de deus. maldita a fé, maldita a esperança e mais maldita ainda a paciência.

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tem sido difícil acreditar que estaremos vivos. tem sido difícil acreditar que estamos vivos. estávamos?

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hans, enrolado em si mesmo, adormeceu. vez em quando é bom que se feche os olhos. não ficar por cá, voltar à delicadeza. inaugurá-la talvez. levantei-me, eu dançava, tentando imitar o festival de afetos que é a vida. a solidão, aquela solidão-movimento, o corpo-véspera, as mãos sem linhas — (des)acariciando o mundo. assim não foi?

entre sono e vigília, inventávamos histórias, no de repente — o corpo-voz. nós, entusiasmados e vivos e sonhados. aprendendo a viver na verdadeira dignidade. inventar histórias é aprender a viver na verdadeira dignidade.

o amor pelo mundo voltara, girou várias vezes: ela se olha com o que a vida (ainda) tem de movimento — se equilibra. se desequilibra, aproveita o gesto: dança. contra a realidade, por ela — há o sonho. o corpo — seguindo as próprias ideias

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um truque que drible o real e o devolva na medida em que faça viver

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um movimento, inteiro e instantâneo, que disfarce a espera

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descansar sem muita pressa, eu e você — comungando a falta de sentido de tudo

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esperar sem muita pressa

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setentaecincomilquinhentasevintetrês, ele me diz. eu perdi a noção dos dias. eu perdi a noção do tempo. perdemos a noção. não estamos vivos. não sabemos estar vivos. a gente chega a não detestar a morte?

a gente não chega a não detestar a morte, aprende a dizê-la

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hans sou eu

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129.575 mortos, centoevinteenovemilquinhentosesetentaecincocorpos, anuncia a tevê em menos de nove segundos.

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a vida, ilimitada e impossível, nos despedaça

tudo será difícil de dizer

Beatriz Thibes é graduada em Letras (português-francês) pela Universidade de São Paulo (2018). Estudou na Université Paris-Sorbonne IV (2016). Cursou o Clipe-Poesia (Curso Livre de Preparação do Escritor), oferecido pela Casa das Rosas, em 2017. Atualmente é professora de francês.