Selmo e Regina estavam casados há trinta anos. Ambos aposentados por tempo de contribuição no segundo governo Lula. Selmo fizera carreira na gerência de magazines, depois de ser exonerado do serviço público pelo Plano Collor. Trabalhou na Sandiz, na Mesbla e passou treze anos na chefia do SAC da C&A. Regina era pedagoga. Logo que tirou a licenciatura, foi contratada por um colégio particular de classe média alta e lá ficou por toda sua vida profissional. Era conhecida como tia Rê. Escreveu um manual sobre a construção do pensamento na pré-adolescência, publicado por uma editora anã, cuja tiragem foi toda comprada por amigos, parentes, pais e alunos. Com o resgate do 1. □□□, Selmo e Regina deram entrada no primeiro apartamento, com financiamento do Banco do Brasil. O restante aplicou em duas poupanças: uma para cada filha.
Cláudia era a mais velha. Formou-se em Biologia pela UFF, e agora trabalhava para uma 2. □□□ que administrava ações socioeducativas para crianças 3. □□□□□□□□□□□ e em áreas de manguezais. Por conta disso, foi morar em 4. □□□□□□□□. Eliana sempre foi rebelde. Viveu, na adolescência, o surgimento do movimento grunge, que levou quinze anos para superar. Pintou o cabelo de verde, usava camisões de flanela e coturno num verão tropical de quarenta graus. Fumava demasiadamente e se sustentava com empregos curiosos. Até que sofreu um acidente automobilístico e saiu do coma dizendo ter recebido um chamado. Mudou-se para o Canadá onde, de acordo com fotos que mandava, por e-mail, para os pais, ingressara numa comunidade religiosa que acreditava na Segunda Vinda. Também casou-se espiritualmente com um 5. □□□□□□□□□.
Sozinhos, num apartamento de dois quartos e uma varanda ampla, Selmo e Regina passaram a cumprir hábitos. Faziam o desjejum juntos, liam o jornal e almoçavam. À tarde, Regina sentava para escrever uma série de romances policiais há dez anos engavetada, enquanto Selmo 6. □□□ se concentrava na pintura, ora na jardinagem, ora em passatempos. À noite, assistiam uma série ou um filme na Netflix e dormiam. A exceção eram os sábados, quando chamavam um Uber e iam comer pizza e tomar vinho. Em algumas datas especiais, tinham encontros íntimos. Mas, agora, resumiam-se a carícias e chupamentos.
Então teve início a pandemia do Covid-19. Selmo e Regina se assustaram, por serem do grupo de risco, mas não embarcaram na loucura do papel higiênico e do álcool em gel. Enfrentaram o 7. □□□□□□□□ com parcimônia, fazendo compras por delivery, que higienizavam com água e sabão, depois espirros de álcool setenta graus. Selmo aprendeu, com vídeos de receitas no Youtube, a fazer pão e massa de pizza. O recorte do mundo que viam era a vista da varanda. Baixaram aplicativos de banco no celular, passaram a fazer exercícios e meditação, assistiam lives, tomando cerveja. A grande preocupação era com as filhas, sobretudo com Cláudia, que vivia no Norte do país, onde se concentrou altos casos de contágio e morte. Mas estavam bem, 8. □□□□□□□; falavam-se por Whatsapp duas vezes por semana. De resto, era o isolamento.
Quer dizer, tinha os hábitos. Selmo até tentou, esquivou-se de um e 9. □□□□□, mas havia um costume que, para ele, era insuperável. Todas as manhãs, bem cedo, saía de casa para comprar o jornal. E não era tanto pelas notícias, e sim pelas palavras cruzadas. Uma mania de longe: sentar-se à mesa do café e resolver o puzzle. Então, quando tudo fechou, enviou um zap ao jornaleiro, pedindo que deixasse a edição do dia com o porteiro, que, avisado, depositava-a sobre o capacho. O pagamento era feito via transferência bancária, cobrindo os custos mensais. Regina vestia as luvas de plástico, a máscara e pulverizava os cadernos, um a um, com lysoform, antes de entregá-los a Selmo. A chaleira àquela hora já estava piando, então era só escaldar o pó, sentar-se e dar início ao ritual.
Naquela manhã, o tempo estava negro. Temperatura sufocante, ar irrespirável e ventos fortes varriam todo o país. Selmo colocou sua caneca fumegante sobre o tampo de madeira e iniciou a leitura. Na manchete da capa, o presidente declarava que, diante da marca de cento e cinquenta mil mortos, a pandemia tinha sido superdimensionada. Regina pediu uma parte, mordeu uma torrada com brie e leu que o vice-presidente elogiava um 10. □□□□□□□ torturador da ditadura. Selmo, a essa altura, tinha passado os olhos na editoria de esportes e abria o Segundo Caderno, afoito pelas palavras cruzadas, que mal percebeu que uma 11. □□□□□□ tinha sido repreendida e proibida de se manifestar contra o governo. Enquanto Regina lia que o país voltava a figurar no mapa da fome, ele tinha preenchido metade dos quadradinhos. Até que…
BO□□□□□□O, fazia alguns segundos que Selmo tinha travado nessa. (pústula, deslustre, mancha), ele não conseguia desvendar. Pulou para uma transversal. (organização de homens armados que não integram o exército de um país) MILÍCIA, o L encaixava. BOL□□□□□O, nada ainda. Chamou Regina, que olhou, frisou a testa e saiu para encontrar o dicionário. Selmo completou mais uma palavra e, agora, encaixa ali um S. Regina retornou, de cabeça baixa, lendo: tumor, aquilo que é doente na sociedade, corrupção, pessoa de mau caráter, de hábitos infames, de conduta perniciosa. Selmo encaixou mais um O na palavra, quando se deu conta de que o L estava na posição errada. Ferida, bostela, continuava Regina. E se olharam: BOSTELOSO, gritaram juntos. Brindaram com suas canecas de café quente e sorriram.
Cumprido o mais grave dos hábitos, Selmo e Regina terminaram o desjejum dividindo um mamão papaya. Não precisam fazer o almoço, pois tinha sobrado, do jantar da noite anterior, metade de uma lasanha cuja receita pegaram do programa da 12. □□□□ □□□□, no GNT. Selmo, então, foi cuidar da sua hortinha, enquanto Regina tirava a mesa e organizava a louça. Em seguida, ela embrenhou-se no sétimo volume de sua série policial, no qual o delegado investigava um esquema de corrupção, onde um laranja depositava cheques na conta da esposa de um 13. □□□□□□□□□□ político. Tinha uma queima de arquivo ali, em algum lugar. Ou mais de uma.
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Sérgio Tavares nasceu em 1978. É crítico literário e escritor, autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, e Queda da própria altura, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Participou da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.