quatro poemas inéditos de Flávia Andrade

microversos da carne-viva

saber a perda antes da perda dói mais
pisar no tempo da cidade indolor
Procurar abrigo na pele rasgada pelo sentido

a mulher é o bicho que pisa o tempo
em carne-viva

microversos da presença metafórica

as duras palavras do silêncio esculpiram minha angústia
o reviver
a reminiscência do tempo do afeto voador

os dias sobem e descem e o pássaro da presença ausente sobrevoa meu tempo
ensaia um canto mas não pousa nos meus dedos

observa outras rotas
em meus sonhos tento pegá-lo
mas há penas que escorregam

nas asas ressentida imponência
cantos de mágoa e ferida aberta

Sobrevoos de partidas
que desejam vingar-se

entrelinhas de aves metafóricas
nomeiam afetos impossíveis

epiglote (pandemia)

agora o que resta?
nos tiraram o abraço
o ar
a fuga
se antes chorávamos os sem teto cobrindo
agora
além do choro da ausência do muro que protege
Choramos a rua
vetada
nos tiraram as estradas a calçada a vizinhança a feira
o mar

restam os devaneios
nos roubaram os sussurros em meio a barulhos de concreto duro
Aquele que nos carregava para nossas multidões
Antes invisíveis — agora desejáveis
Nas massas
o barulho disforme que antes nos obrigava a lamber ouvidos em palavras gritadas
cala agora desde dentro da nossa traqueia

resta ela
A traqueia
intubada

vetado o vento
resta o ar mecânico e as torres caras do oxigênio comprado
restam mãos cansadas
que pulsam bravamente os corações desistentes

restam corações sem respiradores
não foram sorteados na loteria dos vivos
desmerecidos
envelhecidos

nos tiraram avós e filhos
Nos levaram os abraços e as flores no cemitério de partidas
que já antes nos negavam

Choros?
Já diziam feios
os lutos?
Fraquezas de quem vive
Vetado o adeus
Agora e lá ontem
enterro do luto

lá e hoje
resta
a fraqueza resignada e a abafada perda
a traiçoeira perseguição da palavra trocada
se choraria a saudade de quem amo e foi
resta engolir e ficar
negação da dor
moral do declínio

restam as fugas para dentro
a deglutição obrigatória
do intolerável

nos levaram as ruas da revolta

Roubados os narcisismos
agora exaustivos

roubada a perspectiva
a ilusão da certeza
da planilha de meses vindouros

Restam memórias e pesadelos
agora bem-vindos

Restam
Os filtros do ar
olhos
o embaçado do vidro para ver o mundo
inacessível
e resta
o silêncio

na sala

Olhando esse tapete da sala
cada vez que me distraio
eu te vejo
e vou te ver
deitado e suado
cansado
fingindo menosprezo
sorriso de lado e essa timidez que se quer esconder em tabaco e excessos
nesse tapete
é sempre tua imagem alucinatória
E de ilusões e delírios se fazem minhas memórias imaginárias
eu em você
no teu sofá
Aquele que dá para tua rua
teu semblante e tua expressão de susto de minha imagem descarada
é sol é claro é dia
essa mulher sedenta
Montaria clara
Fome da tua carne que recusa convenções
a fome
não conhece as regras
e na tua cozinha estamos de novo
e num bar numa rua de paralelepípedos
e no caminho daquela universidade que não nomeio
no cerrado dos meus olhos
Pensamento aberto
É sempre você nesse tapete
é você essa música e esse corpo largado
Imaginário
Desejado
real
teu poema era para ser
pretensão de segredo
Toda vez que a gente sai
Falta
e na volta você fica
Rindo para mim
debochado e tímido
Espírito inquieto e sempre estranho
Tua estranheza se familiariza com a minha
Mais que muito
E depois de volta aqui
Com os acordes insones e esse violão roubado
no tapete da minha sala
E toda vez que você não vem
Falta
e toda vez que você não diz:
Vem
Falta

Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e Mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesias. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formas do conhecimento e da compreensão humana. Faz da escrita seu caro divã. Não entende Hilda Hilst, Conceição Evaristo e Clarice Lispector com a razão, mas com os sentidos. Sente-se contemplada pelos sentimentos em letra dos grandes poetas e acredita que escrever poemas é condição de possibilidade da própria vida. É autora do livro A Cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras, publicado pela Editora Patuá. Curadora da página Mulheres na poesia.