TIA ALINA ERA GERMOFÓBICA.
“Você sabe sua tia como é, cheia de frescura.”
Era a frase que eu mais ouvia antes de me mudar para sua casa, na época da faculdade.
O que, para o resto da família, era frescura, para tia Alina era “protocolo de higiene”.
“Pro-to-co-lo”, ela repetia, entrando pela porta dos fundos, colocando o jaleco na máquina de lavar e se enfiando embaixo do chuveiro.
Porque tia Alina era médica. E não era médica de consultório não. Tia Alina trabalhava num dos maiores hospitais da rede pública de saúde.
Imagine agora um carcereiro claustrofóbico ou um piloto de avião com medo de altura. Esta era a tia Alina. Se as suas manias de limpeza surgiram antes ou depois da profissão, disso nunca soube. O certo é que tia Alina era daquelas que lavava até as roupas novas antes de usá-las, e viu meu primo caminhar a muito custo, sem nem ter aprendido a engatinhar direito, já perto dos dois anos, porque ela simplesmente recusava-se a colocá-lo no chão.
“Tente ser cuidadoso”, minha mãe recomendava. “Não vá me fazer vergonha na casa dos seus tios.”
E eu bem que tentei.
Mijar sentado foi a minha primeira providência. Era uma mudança de hábito justa, visto que o quarto onde fui hospedado não tinha banheiro próprio e eu precisaria usar o do corredor, destinado às visitas. Eu tomava todas as precauções para manter a privada sempre limpa, e devo confessar que mais de uma vez me aliviei no chuveiro, durante o banho, só para evitar o ritual de desinfecção que tantas vezes me atrasou pela manhã, antes de sair para a faculdade.
Foi o meu primeiro tropeço.
Tia Alina não perdoou. Sentiu o cheiro atípico vindo do ralo e me chamou a atenção em plena mesa do almoço. Eu havia de convir que aquela não era mais uma questão de frescura ou de higiene da parte dela, mas de preguiça e falta de educação de minha parte: até o cachorro sabia o lugar certo de mijar naquela casa. Só não achei justo que ela precisasse fazer comigo o que fez com o bicho quanto era ainda um filhote, esfregando o mijo na minha cara assim, na frente de todo mundo. Terminei a refeição curvado sobre o prato, em perfeito silêncio. Rejeitei o suco de laranja, aquele líquido âmbar que debochava da minha falta e não me ajudaria a engolir o bolo de vergonha que se formou na minha garganta. Meu tio e meu primo me olhavam num misto de constrangimento e cumplicidade — ela havia aproveitado a ocorrência para passar um sabão também neles, que por vezes incorriam no mesmo vício. Dei minhas últimas garfadas e pedi licença, me trancando no quarto por todo o resto da tarde.
Não ousei usar o banheiro naquela noite.
Na manhã seguinte, tomei meu banho e deixei para fazer minhas necessidades nos banheiros da faculdade, nos reservados imundos usados por animais como eu, que não sabiam o lugar certo de mijar. O controle que eu tinha com a minha bexiga eu não tinha com aquele recente trauma, que me perseguiu por todo o resto da semana. Almoçava na casa da minha tia e logo voltava para o campus, passando as tardes e as noites na biblioteca só para ter onde fazer xixi. Foi assim durante todo o semestre. Só usava o banheiro da casa para tomar banho e escovar os dentes. Nos fins de semana, trocava o banheiro da biblioteca pelo do shopping, que passei a frequentar com o mesmo intuito de atender o chamado da natureza. Mapeei todos os assentos sanitários da cidade e mal parei em casa naquele ano.
Meu lugar vazio na privada, obviamente, se fazia menos notado que o meu lugar vazio na mesa das refeições. Minha tia atribuía minha ausência ao empenho nos estudos e reluzia de um orgulho que brilhava como os azulejos do banheiro, nunca antes tão limpos. Nossas discordâncias só voltaram a aparecer, como manchas de mofo no mármore da pia, num dia em que fui ao banheiro renovar meus suprimentos de papel higiênico (não era sempre que tinham rolos nos banheiros da faculdade), e encontrei jogado no cesto de lixo o copo de vidro com o meu suco.
Eu havia levado aquele copo para o quarto meses atrás, quando tia Alina me obrigou tomar o suco de laranja com cenoura que fez para reforçar a imunidade e eu aleguei um refluxo para me livrar de beber aquilo na frente dela. No quarto, não hesitei em atirar o líquido pela janela, ignorando o faro comprovado de tia Alina, que na certa seria capaz de identificar o odor entre as plantas. Ela não era muito de sujar as mãos na terra do jardim, no entanto. Eu nem me lembrava mais daquele copo, que havia ficado largado ao pé da cama, quando consegui comprar um laptop com o dinheiro de minha primeira bolsa de iniciação científica e o advento da internet tornou minhas necessidades fisiológicas um pouco mais… urgentes.
E distraídas.
Tia Alina não ousou me recriminar de novo. Talvez por ser algo que envergonhasse a mim, claro, mas também a ela, muito mais que o outro delito que até seu marido e seu filho já haviam cometido, e ela não soubesse nem como começar a abordar aquele tipo de coisa, num pito na mesa do almoço ou mesmo numa conversa particular. Mas o copo com meu suco estava lá, na cesta de lixo do banheiro das visitas. Não deixava de ser uma espécie de recado unicamente direcionado a mim. Imaginei o nojo de tia Alina, apanhando aquele copo com a ponta dos dedos e levando até o banheiro. Teria ela pensado em lavar e reutilizá-lo, antes de jogar no lixo?
Passei a evitar olhar tia Alina nos olhos.
Até porque, a partir deste episódio do copo, as suas preocupações com a higiene do corpo passaram a integrar um projeto muito mais amplo: o da higiene da alma. Cristã fervorosa que era (como aliás eram o meu tio e agora o meu primo, recém-matriculado na escola dominical), tia Alina passou a reivindicar minhas idas à igreja junto com a família.
“Você tem que obedecer as regras da casa”, dizia meu pai ao telefone.
E de novo: eu bem que tentei.
Fui expirar meus pecados no culto e logo percebi o empenho que a minha tia exibia na regência do coral, solicitando das vozes a mesma limpidez que ela tentava imprimir na sua, pigarreando, preparando a garganta para os cânticos e louvores dirigidos ao seu Deus. A imagem de tia Alina de olhos fechados, com uma mão pinçando o microfone e a outra se desenvolvendo no ar, marcando o compasso das canções, me revolvia o estômago com uma sensação que na época eu julgava ser o bolo da minha vergonha, gradualmente, se dissolvendo.
Afinal, eu vencera o constrangimento e estava lá com tia Alina: sendo um bom sobrinho, sendo um bom cristão.
O pastor começou o testemunho e senti uma nova pontada no estômago. Perguntei ao meu tio onde era o banheiro — no templo divino haveria de ter um trono reservado à obra de seus pobres fiéis. Meu primo me levou até os fundos. Por hábito, sentei na privada (imaculada como a do banheiro de tia Alina, bem diferente daquelas da universidade, às quais eu já me acostumara), mas logo estava ali ajoelhado, como um santo, vomitando todo o almoço daquele domingo. A náusea não era o bolo da minha vergonha diminuindo e sim aumentando, se misturando ao testemunho que ouvi do pastor naquele dia e aos sermões de tia Alina, reproduzindo suas opiniões na mesa do almoço sobre a sujeira dos homens aos olhos de Deus.
A germofobia de tia Alina passou a flertar com muitas outras fobias que, entre os amigos que fiz na faculdade de jornalismo, eu tinha vergonha de confessar. Recusava as caronas que ofereciam para ir ou voltar da universidade. Tive que abandonar a casa de tia Alina e me mudar para uma república antes de me tornar um outro tipo de pessoa, no momento em que ela percebeu que seu projeto de limpeza espiritual não surtiria efeito numa alma suja como a minha.
Voltei ainda um par de vezes à sua casa, já como visita, e não consegui nem usar o banheiro novamente nem beber o suco de laranja que ela oferecia durante as refeições. Tia Alina nos reunia em torno da mesa, nos convidava a agradecer ainda de pé a Deus, pelo alimento, e assim que nos sentávamos eu esperava que ela revelasse os meus segredos, mencionasse a urina durante o banho ou o copo cheio do meu suco, me ridicularizando diante de toda a família enquanto nos servia uma travessa de salpicão.
Demoraram alguns anos até que eu esquecesse de toda essa história, e foi preciso que o mundo enfrentasse uma pandemia para que eu finalmente passasse a julgar tia Alina com um pouco mais de condescendência. Sua casa deveria ser atualmente o lugar mais seguro do mundo, eu pensei, e me revolvi na lama de um cinismo que insistia em ignorar que, como profissional de saúde, tia Alina estaria agora na linha de frente contra o vírus, provavelmente salvando vidas, enquanto eu podia me dar ao luxo de trabalhar em casa, escrevendo textos que ninguém leria enquanto estivesse ocupado na tentativa de sobreviver.
Quando, na reunião de pauta do jornal via Skype, sugeriu-se uma reportagem sobre as estratégias de confinamento de médicos como tia Alina, não hesitei em fornecer o seu contato para a colega escalada para a matéria. O texto, no entanto, saiu na semana seguinte sem as aspas da minha tia.
Não precisei consultar minha colega para saber o porquê.
A imagem de uma tia Alina ajoelhada diante de um quartel do exército já circulava há alguns dias nos grupos de WhatsApp mais inflamados da família. Era impossível não reconhecer tia Alina, que tantas vezes havíamos visto de máscara cirúrgica, orando junto com as suas colegas de igreja, protestando contra a quarentena e a democracia. Tia Alina trocara a ciência pela religião e pela política, com a mesma facilidade com que abandonara o jaleco branco e agora trajava a camisa da seleção brasileira de futebol, com a bandeira da pátria amada amarrada no pescoço.
Revi o vídeo muitas vezes. Sua condição de funcionária de um hospital da rede pública de saúde nem chegava mais a ser uma ironia, segundo os parentes que consultei: tia Alina há muito vinha fazendo da sua posição de funcionária concursada a principal bandeira contra o SUS e contra as corrupções de um sistema que, dizia ela, conhecia por dentro. “Deixando inclusive de cumprir a carga horária dela pra ficar militando no Twitter”, criticava um primo mais exaltado, no chat privado.
Na imagem pausada na tela do meu celular, por entre os fios ainda loiros da sua franja e a máscara caseira, fabricada com um tecido verde e amarelo, eu via os olhos azuis de tia Alina bem abertos.
Eles não exibiam traço algum de vergonha.
Tiago Germano é autor do romance A Mulher Faminta (Editora Moinhos, 2018) e da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), vencedora do Prêmio Minuano de Literatura e indicada ao Jabuti. É mestre e doutorando em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e foi bolsista do Programa Institucional de Internacionalização da CAPES na School of Literature, Drama and Creative Writing da University of East Anglia, na Inglaterra, por onde passaram o Booker Prize Ian McEwan e o Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro.