cada palavra, uma morte, de Rodrigo Novaes de Almeida

capa_mondrongo_antifaNaquele tempo, não tínhamos dimensão de nossa ruína. As instituições democráticas ainda pareciam funcionar. Tivemos eleições para escolher nossos representantes do legislativo e do executivo. Alguns poucos já denunciávamos que as arbitrariedades cometidas pelos três poderes nos levariam à ruptura do tecido social e à barbárie. Não nos escutaram. Diziam que era exagero. Então, aconteceu. Já são trinta e três milhões de mortos. A guerra civil fragmentou o país. As organizações internacionais nada puderam fazer para evitar a catástrofe. Estados Unidos, China, Rússia e União Europeia não se entendem mais e travam suas próprias guerras que, apesar de permanecer na esfera econômica, atualmente vêm acompanhadas da ameaça nuclear. Logo o planeta se tornará um deserto radioativo e estaremos todos mortos e bem, porque a extinção da espécie será melhor do que o inferno que criamos para nós.

Antes da guerra eu era professora de História. Ninguém pode saber disso nos dias de hoje, eu não seria estúpida de contar e não há mais registros que nos comprometam — há anos o Ministério da Educação deixou de existir. O Brasil tornou-se a terra arrasada que os fundamentalistas neopentecostais tanto desejaram. Agora, pertencer a um templo é obrigatório e o sincretismo religioso que se manifestava em diferentes campos da nossa cultura também não existe mais. Não sei por que ainda penso nessas coisas. Talvez por nunca ter esquecido, quando entrei pela primeira vez no templo para o qual fui designada, a náusea terrível e inexorável que senti. Eu pressentia que a vida a partir daquele momento, com essa gente no poder, seria uma lenta putrefação.

Sobre os escombros do que restou do país, partes das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, sobrevivo como carteira. A empresa dos Correios precisou ser reestatizada pelo governo de extrema direita, depois que os investidores estrangeiros foram embora, esse mesmo governo que provocara todo o mal através do qual passamos. Primeiro perseguiu todas as lideranças de esquerda, e as matou. Depois, as de direita que o apoiaram; a direita rentista, neoliberal, que se acreditava herdeira da longa tradição da burguesia que, um dia, em um passado agora apagado dos livros e que os fundamentalistas dizem nunca ter existido, inventou o Iluminismo.

Hoje não carrego cartas comuns em minha bolsa, mas um desses telegramas do governo central. Todos sabemos do que se trata. É a morte. Ou, antes, a notícia da morte de alguém amado para seus entes. Neste caso, para o senhor e a senhora Araújo, um casal de idosos pelo qual tenho afeição. Eu os conheci há alguns meses, quando passei a fazer as entregas no distrito que residem. Oferecem-me biscoitos e, às vezes, chá. São muito simpáticos, e sofrem por não ter notícias do filho desde o início da guerra. Eles têm esperança de que esteja vivo em algum lugar do Norte, onde as batalhas continuam. O rapaz foi lutar contra o regime que neste momento nos mantém reféns. Foi lutar por democracia e Estado laico. A senhora Araújo contou-me a história do filho tempos atrás, e eu disse que não a revelasse a mais ninguém, que não deveria ter me contado, pois era um risco desnecessário e ela e o marido poderiam ser presos apenas por proferir tais palavras. Então a senhora Araújo me respondeu de forma doce que não tinha medo, que era o medo a verdadeira arma desse governo e que ela não se renderia, como o filho não se rendeu e foi lutar por liberdade. Nesse dia, eu chorei, e choro agora porque sei que trago a morte de seu filho para sua casa.

Toco a campainha enquanto enxugo as lágrimas. A porta é aberta e vejo o casal. A senhora Araújo sorri ao me ver. Eu tento sorrir de volta, mas acho que não consigo. Tiro o telegrama da bolsa e entrego para o senhor Araújo, não quero que seja ela quem segure a morte do filho nas mãos. Mas o senhor Araújo lê o remetente e entrega o papel para a mulher. Ela abre o telegrama e, enquanto lê a breve linha, lembro-me que não lhes dirigi a palavra, nem ao menos um bom-dia. A senhora Araújo lê devagar aquela única linha, cada palavra, uma morte a respeito da morte do filho que não havia se rendido, que foi lutar por liberdade, democracia e Estado laico. Eu começo a chorar outra vez. O senhor Araújo me olha e em seus olhos enxergo o terror, um terror definitivo, mesmo depois de todos esses anos de execuções, torturas e genocídio dos nossos povos, porque éramos muitos antes. A senhora Araújo entrega o telegrama para o marido, que lê: « Teu filho, um traidor, foi morto pelos heróis da pátria em nome de Deus. » Era assim que o governo central tripudiava dos familiares de insurgentes, sempre que conseguia identificá-los. Logo o símbolo da traição seria pintado com tinta vermelha no muro da casa e eles se tornariam párias, mas o degredo não perduraria. A marca também significava que a milícia poderia entrar e fazer o que bem entendesse com quem morasse ali. Seriam mortos por alguma alma cristã com sede de sangue. No entanto, neste instante, não há mais ninguém na rua. O senhor Araújo dá três passos para trás, cambaleando. Sua mulher está encolhida, como se protegesse o próprio útero velho e vazio. Ele murmura:

— Nosso filho está morto, Anna?

Ela responde:

— Como este país, Otávio.

| este conto faz parte da coletânea Antifascistas, à venda no site da editora [link]. |

Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e editor. Fundador e editor-chefe da Revista Gueto e do selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores. É autor dos livros Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), finalista do Prêmio Jabuti, e A clareira e a cidade (Poesia, Editora Urutau, 2020), entre outros.